"As ciências políticas caminharam
para a fragmentação dos saberes"
Jornal da Unicamp - Como a sociologia pode retomar o diálogo com outras áreas do conhecimento?
Boaventura - Desde a sua origem, a sociologia era a ciência que tratava de todos os problemas que as outras ciências não abordavam. Portanto, de alguma maneira ela nasceu numa matriz transdisciplinar. Só que com o tempo transformou-se ela própria numa disciplina. E numa disciplina muito cunhada na experiência de três ou quatro países, cinco no máximo, onde a teoria sociológica se desenvolveu. Hoje o mundo está de fato numa situação de dificuldade com esses modelos de exclusão social. Ao mesmo tempo, é um mundo onde se tornaram cada vez mais visíveis as outras culturas e os outros saberes. A sociologia tem uma vocação especial para poder captar isso, se realmente não for capturada por uma concepção estreita da racionalidade. Isso é possível. Naturalmente que a ciência vai sempre atrás da prática. E as práticas que hoje estão consubstanciadas no Fórum Social Mundial são um desafio para a própria sociologia no sentido de corresponder a sua vocação, que é essa de compreender o mundo de uma maneira ampla.
Zolo - É um risco que a sociologia seja uma disciplina auto-referencial. É preciso confrontar-se com estudiosos de outras disciplinas das ciências humanas, em particular com a economia, direito e política.
Oliveira - A sociologia é bastante transdisciplinar e ganhou muita afinidade com algumas disciplinas. Por outro lado, distanciou-se da economia política. Não só porque a economia política desligou-se da política, mas também porque a tradição da economia política clássica é das grandes narrativas. Foi uma perda para as duas partes - a economia convencional cobre mal os processos sociais e a sociologia desconhece os novos conteúdos da economia política contemporânea. Mas, em geral, o contato com outras áreas do conhecimento é bastante intenso e frutífero. Com a lingüística, por exemplo, há abordagens sociológicas que se beneficiam da contribuição de filósofos como Habermas, cujos trabalhos têm enorme influência na sociologia.
Laymert - Abrindo-se para a centralidade da tecnologia e reconhecendo que o tempo das disciplinas já acabou.
Leila - É fundamental essa retomada. Uma área do conhecimento não dá mais conta dessa complexidade da sociedade. A busca de uma perspectiva interdisciplinar está em várias áreas, inclusive na sociologia. Quando se vê no nível internacional, isso também está claro.
Pochmann - Esta é uma dificuldade não apenas da sociologia, mas um problema das ciências como um todo. Aprofundamos, nos últimos 100 anos, a especialização do conhecimento, que é importante por um lado para conhecer detalhadamente determinados fenômenos. Por outro lado, isso inibe uma visão do todo. O desafio da integração do conhecimento, a partir das diferentes disciplinas, é um desafio colocado justamente porque as fronteiras estão borradas na disciplina do conhecimento. Não há muita clareza até onde vai a economia, a sociologia, o direito e assim por diante. Essa ausência de fronteiras claras entre as disciplinas do conhecimento exige na verdade um esforço não apenas da sociologia, mas de outras para que possamos ter uma visão transdisciplinar.
Ridenti - Pertenço a uma tradição de pensamento que vê uma unidade interdisciplinar entre as ciências humanas. Uma sociologia que se atenha excessivamente ao estudo dos fatos sociais é muito empobrecida. A sociologia tem um diálogo de nascença e indissociável com a história, com a economia, com a política e com outras ciências que, para mim, são absolutamente essenciais no mundo de hoje. As coisas que faço, por exemplo, são muito próximas da política, da história, da cultura. Acho que a tendência hoje é a aproximação, a interdisciplinaridade. O que não significa dizer que vamos apagar as especificidades de todas as ciências, mas que todas elas tenham uma interlocução, principalmente as ciências humanas.
Maria Arminda - O que aconteceu a partir dos anos 70 nas ciências sociais e com a economia foi um processo de especialização de seus diferentes campos cada vez mais acentuado. De um lado isso é natural, principalmente quando se instituiu o sistema de pós-graduação no Brasil, que empurrou para uma fragmentação. Mas isso não quer dizer que esse diálogo foi interrompido. O que está acontecendo é que, depois desse processo de fragmentação das ciências sociais, chegou-se à conclusão de que o conjunto das disciplinas é importante para equacionar a sociedade contemporânea.
Ortiz - Acho a retomada desse diálogo muito positiva. O desenvolvimento da sociologia, da antropologia, das ciências políticas, caminhou na direção da fragmentação de saberes. Há um lado positivo nisso, que seria a possibilidade de fazer determinadas pesquisas detalhadas, com uma boa precisão. Porém, o lado negativo é que o objeto da compreensão torna-se inteiramente fragmentado, e se perde de vista que as ciências sociais na verdade se fundam na idéia de um homem total, que tenha atividades econômicas, políticas sociais e culturais. Este homem não é cindido, ele faz parte de uma totalidade. O fato de termos a possibilidade de caminhar além das fronteiras estabelecidas pela especialidade, na minha perspectiva, é muito bom.
Adorno - Não houve de fato uma interrupção. A sociologia, pela sua própria vocação e história, de alguma maneira sempre esteve conversando não só com as ciências sociais afins, mas de alguma maneira transitou por outras áreas. É evidente que em alguns momentos a questão das fronteiras disciplinares aparece com muita força. Isso começa a criar uma espécie de atitude endógena. Acho que a tendência hoje é cada vez mais a abertura, porque nenhum desses campos disciplinares dá conta da complexidade dos problemas. É muito difícil hoje eu pensar a violência sem uma perspectiva antropológica e histórica. Quando penso na questão do crime, tenho que pensar também na economia política da violência. É preciso pensar no ponto de vista da psicanálise; é preciso refletir sobre como produzem sujeitos hoje que de alguma maneira são tolerantes à violência. As fronteiras continuam abertas, às vezes mais intensamente.
Jornal da Unicamp - As mudanças verificadas no interior do mundo do trabalho são hoje um desafio recorrente. Como a sociologia deve abordar o problema ?
Boaventura - Essa é uma das questões fulcrais na medida em que assistimos a uma mudança, nos últimos 15 anos, decorrente do fato de o trabalho passar a ser um recurso global sem, no entanto, ter sido criado um mercado global do trabalho. Portanto, os mercados são segmentados, o que significa que os direitos dos trabalhadores, que estavam cunhados fundamentalmente nas experiências nacionais, foram totalmente desestruturados. O que se procura hoje é tentar ver se é possível reconquistar em nível global o que se perdeu em nível nacional. É toda a idéia dos parâmetros mínimos do trabalho. É preciso promover a dignidade do trabalhador em nível global, mesmo quando as condições nacionais são adversas. A pressão sobre o estado é muito importante para garantir esses direitos.
Zolo - Não há dúvida de que um dos grandes temas da globalização diz respeito à carente capacidade que governos nacionais têm de controlar a economia interna, em particular de garantir condições de trabalho aceitáveis. Os estados precisam ter capacidade para impedir que as forças do mercado global interferiam no direito ao trabalho. A situação dos trabalhadores é altamente insegura.
Oliveira - A sociologia do trabalho, que se dedica a este campo, enriqueceu-se muito exatamente porque tentou sair de uma visão de uma classe trabalhadora única, unívoca e homogênea, o que era induzido por certos textos e por certas tradições teóricas. Com isso, criou um campo riquíssimo. Houve uma evolução muito grande nos últimos 30 anos. Agora, de novo, entendo que a sociologia do trabalho tem por obrigação voltar a dialogar com a economia política. Sua preocupação central, que tomava a descrição dos processos de trabalho, das jornadas - que é claramente inspirada em Marx -, era conhecer o movimento da economia capitalista. Nesse sentido, a sociologia do trabalho, depois de ter feito esse longo percurso, tem por obrigação voltar a se interrogar.
Laymert - A questão do trabalho é fundamental na perspectiva do que respondi nas duas questões anteriores. O trabalho está sendo completamente reprogramado a partir da informática. Nesse sentido, o valor do trabalho mudou muitíssimo; seu foco deixou de ser o esforço para ser invenção. A sociologia já está estudando os efeitos e impactos dessa transformação na sociedade. Mas a tendência é que se examine essa questão de um modo transdisciplinar para poder entender as interferências dos outros campos do conhecimento sobre a questão do trabalho.
Leila - É preciso repensar os próprios conceitos utilizados pela sociologia do trabalho. Acho que não dá, por exemplo, para pensar essa questão hoje a partir de conceitos clássicos da sociologia. Teremos de rever alguns conceitos e buscar outros nas demais áreas do conhecimento para pensar essa especificidade da contemporaneidade.
Ridenti - Sem dúvida, há uma grande discussão se o mundo do trabalho hoje ainda é essencial. Na minha opinião, mudaram as relações de trabalho. Em grande parte são relações que escapam do domínio do tradicional, do chão da fábrica. Há uma diversificação do que poderia ser considerado trabalho. O mundo continua a ser articulado pelo trabalho, pela produção de excedente. Há o fato de que em grande parte o sistema hoje dispensa o trabalho. Vamos ter então um grande universo de excluídos, de despossuídos, de pessoas que estão expulsas do mercado. No entanto, isso não invalida o fato de que há mudanças nesse mundo. A África, por exemplo, é um continente que está hoje quase que excluído do capitalismo mundial, a não ser como fonte de matéria-prima. Esse não-trabalho é fruto da organização de um sistema articulado em torno da produção de valor, de capital. Não se faz mais hoje como era no século 19 nem no século 20. Há inovações e é preciso acompanhar isso. Uma das tarefas da sociologia é dar conta dessas transformações no mundo do trabalho e do não-trabalho, que na minha opinião continuam sendo essenciais para pensar a sociedade contemporânea.
Pochmann - Estamos diante de um mundo do trabalho muito mais inseguro quanto às possibilidades de renda e quanto ao conhecimento adequado para ocupar as vagas existentes, entre outras questões. Esta insegurança vem de certa maneira acompanhada pela própria incerteza que está associada à economia. Ou seja, a economia vai ter capacidade de expandir-se a tal ponto de gerar postos de trabalhos? Qual será o motor do desenvolvimento econômico? Será o que diz a nova economia nas tecnologias ou ainda continuará sendo a velha economia. A incerteza proveniente das atividades econômicas leva a um mundo do trabalho muito inseguro, o que tem propiciado muitas vezes o estranhamento em relação a padrões de garantias de bem-estar social que foram conquistadas no passado. Essa não é uma situação única na história do capitalismo. Tivemos, guardadas as devidas proporções, períodos tão marcantes como o que estamos vivendo hoje, como foi a passagem do século 19 para o século 20, quando a grande revolução tecnológica causou o desaparecimento de determinadas ocupações, mas em compensação o surgimento de novos postos de trabalho e, conseqüentemente, novas possibilidades de lutas e de avanços sociais. Esse cenário que estamos vivendo atualmente se deve a um quadro que combina incerteza no que diz respeito à economia, insegurança no trabalho e instabilidade dos governos. Alguns são eleitos com determinadas plataformas e terminam fazendo outras completamente diferentes daquelas a que se propuseram. Há uma espécie de mal-estar social que deriva da combinação desses três elementos.
Maria Arminda - A ausência do estado e a volta ao mercado é a instituição da barbárie. Todas essas medidas que estão sendo tomadas com a idéia de que se institui uma racionalidade diversa na vida das pessoas, no fundo, são formas de explicação de perda efetiva de direitos dos trabalhadores. O estado é sempre representante do coletivo. É uma instituição social em oposição aos agentes privados. O capital, se fechado em si mesmo, tem uma relação predatória com a sociedade. Os direitos foram a instituição de valores anti-capitalistas em certo sentido, que se combinaram ao capitalismo ao longo da história.
Ortiz - O problema não é tanto teórico, mas sim da constituição da sociedade, na medida em que o estado e o bem-estar perderam espaço nos países onde eles se desenvolveram mais, particularmente nos países europeus. Países como o Brasil e outros da América Latina, nunca chegaram a desenvolver um estado de bem-estar com uma dimensão maior. A questão do bem-estar é um tema político central, na medida em que as instâncias que nós expomos atualmente são muito incipientes para dar conta desse processo. A menos que tenhamos a ilusão de que o mercado resolverá as coisas, mas isso é uma ideologia. O mercado é uma entidade voraz, na verdade ele não se incomoda muito com o bem-estar das pessoas. Este é um grande problema que ganha dimensões transnacionais no mundo contemporâneo.
Adorno - Caminham na direção da vocação da sociologia, que é decifrar de alguma maneira a contemporaneidade, seja ela pensada como modernidade, pós-modernidade, pós-sociedade industrial. Nossa vocação é tentar decifrar as significações desse mundo que está em processo de mudança e tentar de alguma maneira ter uma visão que permita, para além do senso comum, compreender os significados das mudanças e de que modo essas mudanças recriam novas formas de vida e de alguma maneira superam os problemas do passado.
Jornal da Unicamp - Nada garante que, apesar de novo, o chamado estado moderno perdure, sobretudo pela influência crescente das grandes corporações. O estado sobreviverá como está ou a tendência é cada vez mais ver seu papel diminuído em detrimento dos interesses do mercado?
Boaventura - Desde que temos essa forma de estado moderno, praticamente desde o século 17, assistimos a períodos muito distintos. Basicamente são três os grandes princípios de regulação da modernidade: do estado, do mercado e da comunidade. O que temos visto é que entre o princípio do mercado e o princípio do estado tem havido uma variação pendular. Há períodos em que o estado domina o mercado e outros em que o mercado domina totalmente o estado. Nós estamos exatamente num desses períodos. Não é absolutamente eliminável a hipótese de que o pêndulo volte para um reforço dos poderes do estado. Acredito que os estados vão continuar a existir na forma que têm hoje ainda por muitas décadas. Penso também que eles vão atuar cada vez mais em rede, no âmbito das organizações internacionais que terão cada vez mais competências, embora entenda que elas precisam ser reformadas. O estado é um grande agente dessas novas formas da política global, mas já não atua sozinho e sim nessa regra .
Zolo - Estamos na presença de um processo de erosão das soberanias dos estados, que estão verdadeiramente em crise, sobretudo os estados frágeis e pobres. Estamos assistindo neste momento a um descolamento da soberania. Há uma concentração de poderes soberanos nas mãos das grandes potências econômicas, sobretudo dos Estados Unidos. O grande problema é como submeter o poder econômico, militar e político dos Estados Unidos a regras gerais e procedimentos pré-estabelecidos, ou seja, como recuperar uma função do direito internacional.
Oliveira - Trata-se de um processo complexo. O estado não diminui, até mesmo por que se você olhar os processos, inclusive em escala mundial, eles se fazem utilizando parte da riqueza pública. O estado é o único que tem poder coercitivo para fazer uso dessa riqueza. O tamanho do estado não diminui, mas ocorre aquilo que está sendo chamado de autonomização do mercado. Não significa que não há estado, mas significa dizer que a ação estatal é determinada em grande medida pelo mercado. É este o fenômeno mais intrigante e que requer, de novo, a retomada do diálogo entre a sociologia e a economia política.
Laymert - Mercado não existe sem estado, apesar das aparências em contrário. Por outro lado, entendo que esse par caminha junto. Quando se fala muito de enfraquecimento do estado, a gente teria que ver de quais setores do estado a gente está falando. Há setores que não estão enfraquecidos de jeito nenhum. Se considerarmos o orçamento da Defesa dos Estados Unidos, constatamos que o estado imperial vai muito bem, obrigado. E se a gente considerar as relações do chamado complexo industrial-militar, ele também vai muito bem. Agora, se considerarmos do ponto de vista da previdência, da saúde etc, é claro que é notado um enfraquecimento muito grande. Antes de começar a pensar no desaparecimento do estado, é preciso ver como funcionam essas relações entre as corporações, a tecnologia e o estado nessa nova configuração.
Leila - Vejo o papel do estado como fundamental para pensar inclusive esses grandes problemas da sociedade contemporânea e mesmo da sociologia contemporânea. Não se pode abrir mão do papel social e ambiental do estado. Tudo bem que ele diminua no sentido corporativo do termo, mas acho que as suas funções clássicas devem ser retomadas.
Ridenti - O estado também mudou. Há aqueles que acham que o estado nacional estaria ultrapassado na era da globalização. Os próprios eventos mundiais desse começo de século, com a postura absolutamente imperialista dos Estados Unidos, indicam que pelo menos um estado, que é o norte-americano, está muito forte. Evidentemente isso muda tudo. Na União Européia, por exemplo, você tem a constituição de uma comunidade supranacional, mas que por si só também não aboliu os estados que a compõem. Há mudanças, mas acho que é um tema específico a ser estudado pela sociologia política e por outras ciências. Contudo, vejo que o estado nacional não está ultrapassado, ainda que não possamos pensá-lo nos moldes de 50 ou 100 anos atrás.
Pochmann - Na história do capitalismo há um embate vigoroso entre o setor privado, as forças de mercado e de outro lado a tentativa de regular essas forças por intermédio do estado. Havendo capitalismo, em geral há estado. O tamanho e a capacidade do estado são resultado do conflito social, da capacidade de organização da sociedade. A perspectiva do estado contemporâneo dependerá, em primeiro lugar, da capacidade de reação da sociedade frente a operância das grandes corporações. Será possível convivermos com estados exclusivamente nacionais, quando várias corporações têm um PIB e uma riqueza superiores aos de vários países? Ou estaremos caminhando para esse conceito mais atual de governança global, com uma integração dos estados nacionais a partir de uma institucionalidade supranacional capaz de se contrapor ao poder das grandes corporações?
Ortiz - No contexto da globalização, o estado-nação já não possui mais a centralidade que possuía. Isso não significa que o estado-nação desaparecerá, mas sim que ele perde poder. A questão é: qual é o lugar do estado-nação no contexto do mundo globalizado, no interior do qual o mercado capitalista tem um papel central? A minha impressão é que, ao longo das próximas décadas, teremos um conflito muito forte entre estado-nação e mercado. Porque a contradição não é ideológica, fantasiosa. Trata-se de uma contradição estrutural da situação na qual estamos todos envolvidos.
Adorno - Como sociólogo, acredito que as mudanças são imperativas. Elas fazem parte do curso da história. Não posso imaginar, por exemplo, que a nossa herança estatal do século 18 e 19 se mantenha intacta, na sua estrutura básica neste século 21. As mudanças no campo da economia, no campo da política, o tipo de realinhamento que se faz hoje nas relações internacionais, mostram que o estado na verdade está reconstruindo seu perfil. Possivelmente teremos um estado diferente do que temos hoje. Mas não credito, por exemplo, que não tenhamos algum tipo de poder político centralizado que será responsável pela coordenação da sociedade, pelo mercado. Não acredito, por exemplo, que as corporações vão substituir o estado. Elas podem ter um poder de força, mas a capacidade que têm de regulamentar a vida como um todo é muito limitada. Os sujeitos não são meros agentes pacientes. Certamente estamos num processo bastante acelerado de mudanças da configuração do estado, mas não acho que isso signifique o seu fim.
Jornal da Unicamp - Em determinados países, Brasil incluído, a violência gera bolsões de poder paralelo. Até que ponto eles representam uma ameaça ao estado
Boaventura - São uma ameaça, sem dúvida. Um dos casos aqui na América Latina mais característico é o da Colômbia. O problema se agravou com a implosão de estados - vimos isso na África - na medida em que as políticas transnacionais da globalização neoliberal procuraram fundamentalmente minimizar o seu papel. Retiraram fundos, retiraram competências, atingindo frontalmente as políticas públicas. Isso fez com que os estados se tornassem não-operacionais em muitos países. Ao fazerem isso, deram asas a que atores assumissem funções de estado paralelo. É uma situação preocupante.
Zolo - No caso da Itália, mais precisamente no fenômeno Berlusconi, estamos vivenciando uma confusão crescente entre a dimensão pública e a dimensão privada. O governo Berlusconi é perigosíssimo e indica um futuro nebuloso, porque usou instrumentos da democracia e do estado de direito em seu benefício. Todo o aparato do estado e da constituição não consegue tecnicamente impedir essa subordinação a um grande empresário industrial do setor das comunicações e dos bens imobiliários. Esse fenômeno se verifica também nos Estados Unidos, onde grupos da administração Bush estão profundamente envolvidos no grande negócio petrolífero. Neste momento, por exemplo, grandes companhias de armas, petrolíferas e do tabaco estão despejando quantidades enormes de dinheiro para a próxima campanha presidencial de Bush.
Oliveira - São, concretamente, uma ameaça. Significa que, na definição clássica de Weber, o estado já não detém o monopólio exclusivo da violência. Nas sociedades ocidentais criadas e desenvolvidas nessa tradição, só o estado tem o poder de cometer a chamada violência legal. Isso está escapando. Revela, na verdade, uma fratura na capacidade do estado em conter a violência dos atores privados. Isso é de fato uma grave ameaça, que não se dá só nesses bolsões que são mais identificáveis, mas também na empresa que tende a invadir domínios públicos. No Brasil, você vê fundações empresariais tentando assumir funções do estado na educação, no lazer, na cultura e na formação de mão-de-obra. Isso é uma ameaça também importante à qual não se presta muita atenção. De saída, a empresa privada é absolvida, enquanto os bolsões da violência mais identificáveis são aqueles que ameaçam a ordem da propriedade privada. A empresa privada, por sua vez, é considerada o esteio da propriedade privada. Mas ela é, também, uma ameaça à ordem pública.
Laymert - Vejo esses bolsões como parte do capitalismo contemporâneo. Narcotráfico é hoje, segundo alguns economistas, uma potência mundial. Devia inclusive sentar-se à mesa com o G-7. Já que é uma potência, deveria começar a reconhecer o tamanho dessa encrenca. Nesse sentido, é preciso encarar sem hipocrisia o que é isso e em que medida esse poder paralelo está corroendo os estados nacionais, junto com outras forças. A primeira questão a ver é a quem interessa o enfraquecimento desses estados latino-americanos com relação ao narcotráfico. E, também, como seria o combate ao narcotráfico, se efetivo ou não.
Ridenti - Tenho uma certa resistência em minimizar a importância do estado, particularmente no Brasil. Acho que é muito evidente o que significa esse estado. Ao mesmo tempo é um pouco paradoxal porque você tem mudanças de partidos e esse estado acaba se inserindo na ordem mundial de uma maneira que dá muito pouca margem de manobra na esfera internacional. No plano local, o fato de você ter poderes paralelos nas favelas, por exemplo, simbolizaria num certo sentido uma dificuldade de o estado estar presente para fazer suas atividades de organização social, de fornecer segurança, saúde etc. Em alguns países da África, e na Colômbia, isso me parece mais significativo. No âmbito local, ainda que algumas favelas estejam controladas por traficantes, me parece que são bolsões muito pontuais. Não vejo que no Brasil isso esteja assumindo um caráter de desintegração social, como talvez possa ser o caso em outros países.
Pochmann - São uma ameaça, mas ao mesmo tempo são o resultado da ausência do estado. Da incapacidade de o estado exercer as funções pelas quais ele foi constituído e desenvolvido. Nós percebemos em São Paulo que temos um vazio de espaço público, de intervenção pública, e ao mesmo tempo o setor privado é incapaz de criar condições de inclusão, de tal forma que a violência termina sendo a possibilidade gerada num quadro de ausência do estado.
Ortiz - Não creio que no caso brasileiro tenhamos poderes paralelos como temos no caso da Colômbia, que tem as Farc e o narcotráfico estruturados de uma maneira institucional. Tampouco como nos países africanos. O caso brasileiro é distinto, não que não exista narcotráfico, isso está dentro no contexto do estado-nação. No entanto, a pergunta é válida já que uma das discussões, no contexto da constituição do estado-nação, é aquela que diz respeito ao monopólio da violência. Isso significa que o estado, através de suas forças instituídas - seja o exército, seja a polícia - estabeleceria uma ordem dentro do território nacional. No contexto da globalização, o grande problema é que existe uma multiplicidade de outros atores que têm capacidade de utilizar os meios de violência. Dentro desse contexto de um território ampliado do planeta, a manutenção da ordem e do monopólio da violência, é difícil. Vide, por exemplo, a invasão dos Estados Unidos ao Iraque. Trata-se de um ato unilateral de um estado-nação que acredita ter o monopólio da violência, mas no momento em que ele ganha a guerra, não consegue manter a ordem. É um problema sério que vai se multiplicar durante o século 21, na medida em que existe um desenvolvimento hipersofisticado das técnicas de violência, e na medida que é, e foi difícil, estabelecer uma ordem de paz. Antes, as fronteiras dos estados-nações eram suficientes para se estabelecer essa ordem. Hoje em dia, já não é. Os grupos que se multiplicam hoje não se multiplicam apenas em relação aos países, mas também numa esfera transnacional.
Adorno - Num certo sentido, você tem poderes paralelos em toda a sociedade. Você tem organizações civis, partidos, empresas, universidades. Não vejo nenhum problema em relação a isso. O problema é que todos esses poderes são regulamentados a partir de uma concepção legítima, baseada no estado de direito. Esses poderes estão enfeixados numa concepção fundada num pacto, fundada em acordos pelos quais nenhum poder pode se colocar acima do outro por sua livre e espontânea vontade. O problema na verdade é você encontrar poderes diferentes que tenham algum lugar onde possam ser intercambiáveis, onde as negociações possam existir, sejam os fóruns públicos de debate, sejam as casas legislativas etc. Os problemas estão naqueles poderes que agem fora das regras legítimas do jogo político, do reconhecimento da vida política, e poderes que se impõem pelo uso da força. Por exemplo, no caso de você ter crime organizado e de como você traz isso para o campo da legalidade. No caso da Colômbia, de um lado o estado perdeu o monopólio estatal da violência, o que significa que tem grupos da sociedade, por razões diversas, que reivindicam o direito de usar a violência. Quando você reivindica, como grupo organizado, o direito de usar a violência, você está reivindicando que o mais forte vai prevalecer sobre o mais forte. A sociedade moderna foi construída para proteger os mais fracos do poder avassalador dos mais fortes. O problema não é que existam poderes e que hajam poderes diferenciados, mas sim que você tenha regras pelas quais você possa tornar os poderes eqüitativos e evitar que o mais forte destrua o mais fraco.