Saiba mais sobre a psicoacústica, ciência
que associa a psicologia com a percepção auditiva
Afinando o som das máquinas,
do liquidificador ao Rolls-Royce
LUIZ SUGIMOTO
Chegará o dia em que até o ruído do liquidificador se tornará mais agradável, em função da crescente preocupação da indústria com o conforto acústico e a subjetividade da apreciação sonora dos clientes. Saber porque o som da água que pinga da torneira irrita, enquanto o barulho de milhões de gotas de chuva aumenta o prazer de adormecer, é a questão que está na base da psicoacústica, uma ciência relativamente antiga que associa a psicologia com a percepção auditiva, em busca do que no jargão da engenharia se chama qualidade sonora.
O professor José Roberto de França Arruda, do Departamento de Mecânica Computacional da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) da Unicamp, está envolvido com outros colegas em projetos variados, que visam melhorar desde instrumentos musicais e a acústica de salas, até o nível de ruído no interior de automóveis e aeronaves. "Tradicionalmente, a abordagem em laboratório era a de atenuar o ruído e fabricar uma máquina o mais silenciosa possível. No Brasil, instituiu-se o "selo ruído" (1994), que deve indicar o nível da potência sonora de todo eletrodoméstico. Resolvendo este problema básico, vem o cuidado com a impressão que o som causa ao usuário. Para a decisão de compra, o ruído não precisa ser necessariamente baixo, mas agradável", explica Arruda.
Daí, o fato de a psicoacústica ter na música o seu paradigma. "A música é o som que queremos ouvir, o supra-sumo da qualidade sonora. Existem conceitos musicais que tentamos trazer para a engenharia, a fim de saber como deve soar um produto", acrescenta o professor, que está à frente do Laboratório de Vibroacústica, onde prepara um projeto para desenvolver novas caixas acústicas que ofereçam melhor direcionalidade do som.
Testes com júri - Já no início do século passado há registros de testes de qualidade sonora na indústria automobilística. Buzinas de automóveis eram instaladas em painéis e acionadas diante de um júri que escolhia aquelas com melhor sonoridade. Também eram usados jurados para avaliar o ruído da passagem de automóveis, já indicando preocupação com a poluição sonora. "O teste com júri é típico da psicoacústica e ele deve ser orientado por critérios psicológico. Isto porque um mesmo ruído soa de uma forma se o jurado estiver tranqüilo e em ambiente agradável, e de outra se a pessoa estiver estressada. É necessário avaliar se os juízes estão em situação de certa neutralidade", explica o pesquisador.
Os ensaios são padronizados, utilizando-se um torso instrumentado de microfones para captar as oscilações de pressão sonora. O intuito é reproduzir toda a dinâmica do aparelho auditivo e a influência da presença da cabeça e tronco humanos. Depois, há uma equalização na reprodução do som. "Ao invés de colocar várias pessoas no automóvel e dar uma volta para que todos ouçam o mesmo som, o que se faz é gravar o som do veículo e reproduzi-lo em ambiente controlado. Cada jurado põe o fone de ouvido e responde a uma série de questões. Esses testes são freqüentes na indústria automobilística", informa França Arruda.
Tais sistemas permitem a edição do som. Identificada uma componente harmônica que torna o ruído do veículo desagradável, pode-se remover aquela faixa de freqüência. Se a qualidade subjetiva melhora, o problema é repassado ao engenheiro mecânico, que vai localizar a vibração causadora daquela componente do ruído e tentar eliminá-la. Outra solução comum é aumentar o ruído de outra faixa para encobrir aquele que desagrada, efeito denominado "mascaramento". "As montadoras têm os setores de NVH (noise, vibration and harshness, ou ruído, vibração e o que pode ser traduzido como aspereza). A partir da análise em laboratório, os engenheiros vão buscar uma solução do ponto de vista da vibração ou do ruído para atingir a meta de qualidade sonora", explica o professor da FEM.
Harley-Davidson - Investir no setor de NVH é mais compensador para a indústria do que fabricar um produto caro, com alta qualidade de componentes e ajustes precisos, pois a engenharia sonora conta com ferramentas que permitem alcançar resultados próximos em veículos de menor padrão. Arruda admite, porém, que o som de um carro de luxo traduz o esmero com que foi fabricado: "As pessoas já se acostumaram a identificar o som da qualidade. A engenharia poderia, por exemplo, fazer com que a batida de porta de um carro popular soasse igual à do Rolls-Royce, mesmo que o cliente não esperasse por isso. Agora, se a batida de porta do Rolls-Royce soar como a de um carro popular, o cliente vai reclamar".
As montadoras já chegaram ao requinte de definir um ruído de motor associado à marca, podendo devolver ao fornecedor um lote de escapamentos que não atendam a suas especificações. "Nesse aspecto temos outro paradigma, a legendária Harley-Davidson, que está comemorando 100 anos de existência. Foi a primeira empresa a patentear o ruído de um motor. Ninguém pode fabricar uma motocicleta que imite aquele som, que se tornou uma assinatura, o espírito da marca. O problema dos engenheiros da Harley, agora, é garantir que o ronco do motor não seja distorcido com a adoção de novas tecnologias, o que seria inadmissível para os adeptos", finaliza França Arruda.