Esporte mais apreciado no Brasil, o futebol constitui importante elemento de integração para os Kaingang, etnia indígena que vive hoje em áreas espalhadas pelos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O jogo de bola tem sido fundamental para promover a aproximação entre os próprios índios, inclusive de terras indígenas (TIs) diferentes, bem como destes com as comunidades brancas vizinhas. A constatação é do educador físico José Ronaldo Mendonça Fassheber, que acaba de defender tese de doutorado sobre o tema na Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp. “O futebol tem estabelecido um novo espaço de sociabilidade para os Kaingang”, afirma.
A pesquisa de José Ronaldo concentrou-se nos índios que vivem no Paraná. De acordo com ele, entre os Kaingang os aspectos sociológicos e miméticos do futebol são especialmente visíveis. “Um dado que chama a atenção, por exemplo, é o fato de os campos normalmente estarem localizados no centro das TIs, próximos a outras instalações consideradas importantes, como os postos da Funai e os de saúde”, informa. Além disso, tal como os brancos, os índios também se reúnem para jogar e assistir a peladas. “Alguns disputam competições contra e por equipes das cidades vizinhas”, acrescenta.
Considerados um povo altamente beligerante pelos colonizadores portugueses, os Kaingang valem-se do futebol para tentar superar esta imagem, bem como o preconceito de que ainda são alvos. Assim, quando vão atuar contra os brancos, explica José Ronaldo, os índios normalmente apresentam um discurso de valorização do fair play (jogo limpo). Com isso, transmitem aos adversários que a sua sociedade é boa e que a agressividade é coisa do passado. “Eles dão tanta importância para esse aspecto, que eu presenciei uma cena inusitada. Num torneio local, os Kaingang não só ganharam o título, mas também a condição de time mais disciplinado da competição. O interessante é que os índios comemoraram muito mais a segunda conquista do que a primeira”, relata.
De acordo com o autor da tese, aspectos da cultura Kaingang permeiam a disputa esportiva. Os índios fazem questão de destacar a capacidade insuperável de seus “atletas”, sobretudo no que diz respeito à performance coletiva. Outro costume: os líderes das TIs caciques e membros do conselho - montam times com seus filhos e genros. O que poderia ser considerada uma “cartolagem” na sociedade branca, diz José Ronaldo, é na verdade uma tradição daquele povo. “Para os Kaingang, filhos e genros devem prestar serviços a seus pais e sogros. Não por acaso, quando ocorre um casamento, o genro vai morar na casa do sogro. É uma regra de residência. Entre os índios há uma frase que esclarece bem essa relação. Eles dizem que o genro é o cachorro do sogro”, relata.
Os índios também têm por hábito montar uma segunda equipe, que conta com jogadores de diferentes famílias. Num campeonato, coincidiu de as duas representações de uma mesma TI chegarem à final. “Por determinação do cacique, a partida não foi disputada. Ele colocou todos os ‘atletas’ no caminhão e levou o troféu para a aldeia. Imagino que ele não queria correr o risco de o time A, formado por seus filhos e genros, perder para o B. Além do mais, a taça já estava garantida”, diverte-se José Ronaldo.
Outro aspecto interessante diz respeito ao processo de espetacularização pelo qual passa o futebol praticado pelos índios, bem ao molde do que ocorre numa Olimpíada. Conforme o pesquisador, primeiramente existe o que ele classifica de “troca de exotismo”. Ou seja, do mesmo modo que o público prestigia o evento para ver o exotismo dos Kaingang, estes também consideram os torcedores brancos um tanto excêntricos. “Ademais, as partidas têm sido alvo de narrações que sempre trazem um enfoque sensacionalista”.
Esporte e política A associação entre esporte e política não é uma característica exclusiva da sociedade branca, segundo constatou José Ronaldo em sua pesquisa. Os caciques e demais lideranças indígenas costumam aproveitar os eventos futebolísticos para travar contato com autoridades locais e regionais, com o objetivo de tratar de assuntos de interesse da sua comunidade, tais como saúde e educação. “Com isso, eles conseguem uma interação cada vez mais sólida com a sociedade que os cerca, visto que suas terras geralmente estão localizadas numa faixa de sete a dez quilômetros das cidades mais próximas”, elucida.
Apesar da integração proporcionada pelo futebol, os Kaingang continuam sendo alvos de preconceito, vistos por parte dos brancos como “caboclos mal vestidos”. Essa postura, prossegue o educador físico, dá margem a um discurso que traz subjacente o interesse econômico. “Quando se diz que os Kaingang não são mais índios, pois se vestem como os brancos, surge imediatamente a pergunta: então, por que lhes reservar uma terra indígena? É o tipo de argumento que convém muito bem aos grileiros”, observa José Ronaldo Fassheber, que na tese teve a orientação da professora Maria Beatriz Rocha Ferreira, da FEF.