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O livro que Lobato não publicou
Pesquisador
resgata
esboço de
suposta
adaptação
de
Orlando
Furioso, de
Ariosto
Muito já se estudou sobre as obras de Lobato. Mas visitas frequentes
a um centro de documentação
podem ainda revelar boas novas sobre o próprio autor. Uma delas é a maneira de produzir seus manuscritos ou de readaptar uma obra. Foi em uma dessas visitas para compor sua dissertação
de mestrado que o pesquisador da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp André Garcia descobriu no Centro de Documentação Alexandre Eulálio (Cedae) um manuscrito da obra Orlando Furioso. Ao que tudo indica, o livro, que não chegou a ser editado, viria a ser uma adaptação da obra original escrita pelo italiano
Ludovico Ariosto, em 1516, e publicada em diferentes idiomas na Europa. As anotações de Lobato estão registradas em um volume traduzido pelo português Xavier da Cunha, doado pela família de Lobato ao Cedae no final da década de 1990. “Ele escreve no próprio livro de Xavier da Cunha, e não em outro papel”, explica
Garcia. Para ele, se tivesse sido publicada, a obra teria a qualidade de todas as outras produções de Lobato.
Alguns indícios observados pelo pesquisador levam ao possível desejo de Lobato de publicar a obra no Brasil.
Uma delas é o anúncio de Orlando Furioso nas páginas iniciais do livro D. Quixote das Crianças, inspirado na obra de Cervantes e adaptado por Lobato
para o público infantil em 1936. O anúncio de que Furioso estaria chegando
é feito por Dona Benta, a vovó do Sítio do Pica-Pau Amarelo: ‘Isso mesmo, confirmou Dona Benta, eram os cavaleiros andantes. Depois de lermos Dom Quixote, temos de procurar
o Orlando Furioso do célebre poeta italiano Ariosto. E vocês vão ver que coisa tremenda eram os tais cavaleiros andantes (conforme página
16 de D. Quixote das Crianças).
As pistas de que seria uma publicação
adequada ao leitor infantil estão nas próprias marcas que Lobato colocou sobre o texto de Xavier da Cunha. Adjetivos mais complexos recebem conotações mais simples, de fácil entendimento, e a linguagem é totalmente atualizada, dando uma velocidade maior à leitura. “Ele estava procurando valorizar mais a ação que o processo descritivo”, explica Garcia. O pesquisador lembra
que, naquele momento, Lobato estaria adaptando para crianças da década de 1940, no Brasil, uma obra adulta do século 16, traduzida para o português europeu no final do século 19. Isso, observado nos manuscritos por Garcia, exigiu a supressão de palavras, parágrafos e acréscimos.
Para Garcia, as intervenções textuais e tipográficas realizadas por Lobato no processo de recriação do Orlando Furioso são pistas daquilo que o Lobato editor considerava importante
do ponto de vista da linguagem,
do enredo e da ilustração para conquistar o seu leitor. A adaptação do Orlando Furioso que estaria sendo realizada
por Lobato, na opinião do pesquisador,
contaria, conforme tradição nas obras adaptadas para o público infantil, com a figura de um mediador, incumbido da simplificação do texto através das intervenções. O mediador, segundo ele, é a figura do adaptador, que não apenas exclui, mas também conserva determinados parágrafos considerados essenciais para a compreensão
da trama que dão coerência e coesão ao texto num processo de intertextualidade
e desafio de reescrita.
Como bom editor, Lobato também
teria deixado pistas de futura publicação ao fazer anotações a respeito de imagens e capas de livro, mostrando que, além do texto, ele está preocupado com o projeto gráfico
da obra: Essa imagem quero para 11 centímetros, Essa quero para 4 centímetros. Como fez com Cervantes
em D. Quixote, Lobato também anotou na capa de Orlando Furioso uma apresentação de Ariosto: Luís Ariosto Régio, Itália 1474 a 1533. “Isso também demonstra o desejo dele de editar o livro”, diz Garcia.
Além de trazer a público a organização
desse manuscrito, tabelando o que teria sido traduzido pelo português Xavier Cunha e como ficaria Orlando Furioso sob o olhar de Lobato, na edição não-publicada, o pesquisador também mostra até que ponto as traduções
e adaptações podem interferir num texto original. A obra original pertencia
ao gênero poético, era dividida em cantos, como chamava o próprio Ariosto, mas já na tradução de Xavier da Cunha, teria sido transformada em prosa. Pelas mãos de Lobato, na obra que poderia ser um conto infantil, alguns parágrafos chegam a ser reduzidos
a zero, tamanha a necessidade de interferência para adaptação em seu processo de reescrever a história.
Mas Lobato vai além na sua tarefa de escritor-editor. Segundo Garcia, ele encurta os textos, divide-os criando novos capítulos, acrescenta títulos, resume um parágrafo, chegando até a censurar algumas blasfêmias, palavras pesadas. Um exemplo citado pelo pesquisador é a transformação total da página 5 do primeiro capítulo do livro. “Tabelei tudo isso. No Bloco A, texto de Xavier, no bloco B, as alterações de Lobato e no Bloco C, como ficaria o livro”, informa Garcia. O trabalho mostra a dinâmica de trabalho de Lobato e o processo de mudança de um texto adulto para um texto para criança. As anotações mostram as alterações feitas também no gênero textual.
A familiaridade de Lobato com a obra Orlando Furioso pode ser demonstrada em algumas anotações, entre elas alguns erros de revisão em relação à obra original, o que leva a crer que, antes de se apropriar” da versão de Xavier, ele já teria lido a obra em outra língua. “Lobato conhecia tão bem a história, que foi capaz de apontar erros de revisão e impressão na tradução de Xavier. Alguns apontamentos e outros ignorados pelo revisor, mas percebidos pela leitura criteriosa de Lobato”.
Trajetória
Uma das contribuições da dissertação é a recuperação da trajetória da obra de Ariosto. A segunda edição do italiano, editada em 1521, já havia sofrido algumas modificações no que diz respeito à linguagem. Em 1532, antes de morrer, ele acrescenta mais oito cantos. Garcia analisa toda a circulação do livro pela Europa, a partir das traduções na França, na Inglaterra, na Espanha e em Portugal.
No Brasil, uma das primeiras observações que chamaram a atenção do pesquisador foi a dedicatória feita por Lobato ao genro Jurandir na capa do volume de Xavier da Cunha, onde foram feitas as anotações: Dedico ao Jurandir nas vésperas de minha ida à Argentina. “Porém, não sabemos se o livro foi um presente já com as anotações, ou se ele fez as alterações depois de voltar da Argentina. Ou se ele queria que o genro guardasse o material. Por que justamente Orlando Furioso?”, indaga Garcia. O fato é que a obra acaba retornando para a biblioteca de Lobato e é doada ao Cedae com outros materiais do escritor como cartas e pinturas. No Cedae, a obra foi cadastrada como “Adaptação de Orlando Furioso de Luigi Ariosto”, apresentando data de registro de 1947.
Os vestígios de Lobato servem como reflexão sobre os procedimentos
postos em prática durante a produção de um livro, tendo em vista a representação que autores e editores constroem a respeito do público ao qual destinam suas obras. Uma linha de pesquisa do grupo Alfabetização, Leitura e Escrita (ALE) da Faculdade de Educação da Unicamp, do qual Garcia faz parte, busca compreender o que os autores e editores constroem a respeito de seu público.
Ao descobrir e digitalizar o manuscrito,
Garcia mostra todo o processo
de adaptação de uma obra em linguagem adulta para um público infantil, além de colocar à disposição
de alunos e professores todo o processo de criação e método de trabalho de Lobato, referência para qualquer estudante e leitor infanto-juvenil brasileiro. Ao revelar as peculiaridades do ídolo infantil, a dissertação coloca à disposição de educadores informações importante sobre o processo de escrita. Conhecer
um manuscrito de Lobato pode ser um estímulo para trabalhar com alunos a produção e recriação de textos. “É uma forma de ensinar a escrever”, na opinião de Garcia.
Publicação
Tese “Orlando Furioso de Lobato: uma obra inconclusa”
Autor: André Garcia
Orientador: Norma Sandra Ferreira
Unidade: Faculdade de Educação (FE)
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