Volta
Rousseau:
a liberdade no Segundo Discurso
Antônio Cesar Ferreira da Silva
Universidade Estadual de Feira de
Santana
Rousseau envolveu-se profundamente com a
existência da humanidade, de forma que sua obra confunde-se com as
desventuras da mesma e com a sua própria. A liberdade é o seu enfoque
primordial, pois a perda da mesma ocasionou uma série de circunstâncias
adversas para os homens. Este envolvimento pode ser facilmente percebido ao
longo de sua obra. A preocupação com todos os povos que viviam sob o jugo
da violência e do controle, certamente sensibilizaram o filósofo genebrino.
O tom do jovem
Rousseau é mais freqüentemente o da queixa, em que a parcela da revolta mal
se distingue do desejo romanesco de tornar-se interessante pela
desventura...
Reconciliar-se-ia
ele com sua sorte, se passasse para o outro lado da barreira, para o lado
dos abastados? Seu partido foi tomado bem depressa: sofreu demais com a
desigualdade para reconciliar-se por ocasião de um golpe de sorte que
resolvesse suas dificuldades. Essa pobreza de que se queixa com
freqüência em sua juventude o fará ter cada vez mais a
convicção de que ela o coloca do lado bom, e ele se vangloriará
disso. A desigualdade não é uma experiência que se tem sozinho e não se
reduz ao sentimento de inferioridade: a desigualdade é uma sorte comum, experimentada
solidariamente. Rousseau foi definitivamente sensibilizado pelo que viu da
miséria camponesa e da pobreza das cidades (1)
Desta forma, Rousseau com suas
inquietações aproximou-nos da sua concepção mundo, e de sua percepção da
condição humana. Condição, numa Europa setecentista, marcada pela enorme
desigualdade que separava os segmentos sociais. Assim, fica evidenciado
nesta citação:
O extraordinário trabalho de reflexão de que dá testemunho o Segundo Discurso não vem apenas
conferir a organização discursiva e sistemática a uma longa revolta apaixonada; ele utiliza a experiência pessoal para
superá-la e levá-la ao
plano universal. Em uma data anterior, é fácil salientar, sob pena de
Rousseau, declarações já bastante significativas, mas cujo alcance
permanece limitado, seja porque essas declarações isoladas não fazem parte
de um conjunto teórico, seja porque se ligam demasiado estreitamente às
desventuras pessoais de Jean-Jacques.(2)
É com o Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens que abordamos acerca do fim
da liberdade originária, partindo do ponto de que enquanto a humanidade
preservou o que lhe pertencia naturalmente, pôde gozar dos privilégios da
liberdade. Na medida em que o cotidiano rústico e natural compunham o dia a
dia dos homens, a liberdade estava garantida. Este estado natural garantia
o perfeito equilíbrio entre os homens, entre estes e entre os demais seres.
As mazelas da civilização não haviam ainda se efetivado. “Sua relação com o mundo circundante se
estabelece no equilíbrio perfeito: o indivíduo faz parte do mundo, e o
mundo faz parte do indivíduo.”(3) O homem natural gozando de sua plena faculdade
de escolha, era livre e, portanto não estava sujeito às conseqüências da
escravidão social. Com o surgimento da estrutura civilizadora é que se
efetiva um processo que põe em risco a vida de liberdade dos homens. Para
Rousseau, o homem civilizado, afastado de suas origens, constrói uma nova
forma de existência, na qual implanta-se um sistema de controle e de
policiamento, em que a liberdade é colocada de lado. “Nesse processo que se define
literalmente como uma desarticulação,
o homem, abandonando sua primeira e brutal amoralidade, não se torna moral
senão para se crer bom e se tornar mau. A desigualdade começa logo que o
repouso primitivo dá lugar ao devir.”(4)
Diante de tal quadro uma pergunta nos inquieta: o que tornou
possível a efetivação de uma civilização do controle? Na busca para
encontrar uma resposta a esta problemática, Rousseau detém-se sobre a
diversidade dos elementos que transformaram os homens em seres de
civilização, conseguindo, desta forma, adentrar nas causas fundantes da
mesma. Na sociedade, os homens tornam-se dependentes à medida que se deixam
controlar pelos membros da sua própria espécie.
O Homem no Estado Natural
A vida livre dos homens, no
estado natural, apresenta-nos um contexto igualitário, no qual se pode
constatar, apenas, um tipo de desigualdade - a natural ou física:
Despojando esse ser, assim constituído, de
todos os dons sobrenaturais que ele pôde receber e de todas as faculdades artificiais
que ele só pôde adquirir por meio de progressos muito longos,
considerando-o, numa palavra, tal como deve ter saído das mãos da natureza,
vejo um animal menos forte do que uns, menos ágil
do que outros, mas, em
conjunto, organizado de modo mais vantajoso do que todos os demais.
Vejo-o fartando-se sob um carvalho, refrigerando-se no primeiro riacho,
encontrando seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o repasto e,
assim, satisfazendo a todas as suas necessidades.(5)
Neste estado, o homem não
se defronta, ainda, com os limites da propriedade. Todos podem usufruir
daquilo que os circunda. Lançam mão dos elementos vegetal, animal e
mineral, de tudo o que existe na natureza e que possa suprir suas carências
de ordem física. Têm-na à sua disposição, pois a propriedade privada ainda
não era constituída. Veremos que esta se constituiria em um dos fatores
centrais para a constituição do estado civil.
No estado natural, o homem defronta-se com
uma série de adversidades, as quais enfrenta com o seu próprio corpo. Não
possui o vigor, a agilidade, etc., de certos animais, porém utiliza de
artifícios múltiplos que vão superar suas deficiências em relação àqueles:
Os homens, dispersos em seu seio, observam, imitam sua indústria e,
assim, elevam-se até o
instinto dos animais, com a vantagem de que, se cada espécie não possui
senão o seu próprio instinto, o homem, não tendo talvez nenhum que lhe
pertença exclusivamente, apropria-se de todos, igualmente se nutre da
maioria dos vários alimentos que os outros animais dividem entre si e,
consequentemente, encontra sua subsistência mais facilmente do que qualquer
deles poderá conseguir.(6)
O homem natural rousseauniano não
se atém, como os demais animais, aos limites do seu corpo; pelo contrário: supera-os
quando faz uso das atividades coletivas. É no âmbito coletivo que ele
encontra toda sua força, e onde pode realizar-se plenamente, o que
significa a efetivação de sua liberdade, pois, apesar de estar integrado à
natureza movimenta-se de forma independente. Autonomia também entendida no
sentido de poder criar alternativas diante das circunstâncias que o possam
envolver. A liberdade natural, da qual o homem gozou no estado que
antecedeu o civil, será o sentido do seu viver.
A liberdade perdida pelo
homem, no estado civil, traz sérias seqüelas para o existir do mesmo.
Rousseau relaciona esta perda da liberdade, no Segundo Discurso, com
a capacidade reflexiva do humano. O potencial de reflexão do homem, e em
conseqüência a superação de alguns obstáculos naturais (superação dos
limites físicos da espécie humana), modificou sua forma de viver. O homem
pôs-se contra a sua própria origem. Como diz Rousseau: tornou-se depravado:
“Se ela nos destinou a
sermos sãos, ouso quase assegurar que o estado de reflexão é um estado
contrário à natureza e que o homem que medita é um animal depravado.”(7) Assim, a perda da liberdade originaria tornou
o homem um ser debilitado, um ser sociável. “Tornando-se sociável e escravo, torna-se fraco, medroso e
subserviente, e sua maneira de viver, frouxa e afeminada, acaba por
debilitar ao mesmo tempo sua força e sua coragem” (8). Porém, esta capacidade de
refletir poderá reconduzir o homem à sua liberdade perdida. Esta
afirmativa constitui-se em um paradoxo, pois aquilo que conduziu os homens
à escravidão, da escravidão os livrará: a sua capacidade de meditação. Um
outro ponto de discussão é a sociabilidade. Rousseau reconhece que a
sociabilidade centrada na desigualdade apresenta dois aspectos: a)
prejudica a maioria dos homens e b) é benéfica para poucos, a saber, os
ricos.
Assim, enquanto esteve em
seu estado natural, o homem não conheceu a desigualdade. Qual seria o fator
que provocou a metamorfose de um estado de igualdade, para um estado de
desigualdade? Os princípios primeiros que norteavam sua existência o
impedia de agir contra outro semelhante. Na medida em que percebeu a
existência deste outro (seu semelhante) o homem natural começa a realizar a
construção de uma dinâmica de intencionalidades, para com este, em que a
comparação será um referencial central. Desta forma, novas paixões se
abrigaram no interior do homem do estado de natureza. Eis que se inicia
todo um processo que culminará no desejo egoísta do amor-próprio. As
relações da ordem civil estão fundadas:
Integrado na natureza, mas isolado de seu
semelhante, o homem natural age segundo determinados princípios, possui
determinados atributos; em suma, uma constituição específica. Na nova
condição, a situação é inversa: ao mesmo tempo em que se separa da
natureza, ele se aproxima de outro homem e entra em relação constante com
seu semelhante. Sua constituição originária sofrerá, em conseqüência deste
desvio de órbita, uma profunda metamorfose.(9)
Como podemos perceber, a desintegração
do homem do estado natural eclodiu a estrutura igualitária, a liberdade
natural, que existia entre os diversos homens, ocasionando uma ruptura com
o existir natural, e, em conseqüência, um novo modo de existir efetivou-se,
e duas propriedades inatas à espécie humana contribuíram para isso: a
capacidade de ser agente livre e a faculdade de aperfeiçoar-se - a
perfectibilidade.
A perspectiva de agente
livre é um dos elementos centrais que diferenciam o homem dos demais
animais. Ser livre habilita o homem a executar tarefas específicas, de
forma tal, que o torna um ser do movimento. É a capacidade de movimentar-se
que o projeta para além de seus limites. Poderíamos dizer que o
movimentar-se humano é não uniforme, enquanto o das demais espécies, o é.
Vejamos o que Rousseau afirma no Segundo Discurso:
Em cada animal vejo somente uma máquina
engenhosa a que a natureza conferiu sentidos para recompor-se por si mesma
e para defender-se, até certo ponto, de tudo quanto tende a destruí-la ou
estragá-la. Percebo as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de
tudo fazer sozinha a natureza nas operações do animal, enquanto o homem
executa as suas como agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, e o
outro, por um ato de liberdade, razão por que o animal não pode desviar-se
da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fora vantajoso fazê-lo, e o
homem, em seu prejuízo, freqüentemente se afasta dela. (10)
Portanto, na medida em que o homem desvia-se de sua estrutura
original, confirma sua característica de ser agente de liberdade e, ao mesmo
tempo, encontra o caminho da escravidão.
É a liberdade humana o ponto central que possibilita a deflagração
da escravidão? É uma questão um tanto ou quanto paradoxal. Como podemos
concluir que de uma perspectiva da liberdade, o homem, pode construir seus
próprios grilhões? Digo que tal liberdade proporcionou a capacidade de
escolha, o desejo e a vontade (o querer), mas o homem, que poderia
consolidar sua essência, que é a de ser livre, optou por um horizonte que o
limitou. Sua vontade e o seu querer levaram-no à construção de uma
tessitura social de desigualdade.
Todavia, além da capacidade de ser
agente livre, encontramos segundo Rousseau, uma outra característica, que
também distancia o homem das outras espécies: a potencialidade de
aperfeiçoamento. Todas as espécies, com exceção da humana, mantêm-se iguais
durante toda sua existência. Esta capacidade de aperfeiçoamento ou
perfectibilidade, que pode nos conduzir à liberdade, ou à escravidão,
seria, pois, fonte de “progresso”, ou de males?
Seria triste, para nós, vermo-nos forçados
a convir que seja essa faculdade, distintiva e quase ilimitada, a fonte de
todos os males do homem; que seja ela que, com o tempo, o tira dessa
condição original na qual passaria dias tranqüilos e inocentes: que seja
ela que, fazendo com que através dos séculos desabrochem suas luzes e
erros, seus vícios e virtudes, o torna com o tempo o tirano de si mesmo e
da natureza. (11)
Através da perfectibilidade
o homem pôde sair do estado de natureza aventurando-se para além de suas possibilidades
físicas. À medida que pôde superar as circunstâncias adversas, pôs-se a
aplicar a “faculdade de
aperfeiçoamento”. No entanto, a forma como os homens
dispuseram desta faculdade levou-os a um estado de “controle”, considerando
que aquilo que deveria levar o homem à manutenção do estado de liberdade
(natural), colocou-o num mundo de perda de suas origens. O estado civil,
que é obra do espírito humano, nada mais é do que o produto central dessa
potencialidade do ser homem.
Ainda no estado natural, o homem procurou,
através do seu instinto, superar os obstáculos da sua vida. Como conseguiu
superar tais obstáculos, se não possuía uma estrutura física favorável.
Segundo Rousseau, os homens, movidos por suas paixões, conseguiram
dinamizar suas vidas. As paixões possibilitaram a construção do raciocínio,
e, com ele a superação dos obstáculos naturais. “Apesar do que dizem os moralistas, o
entendimento humano muito deve às paixões, que, segundo uma opinião geral,
lhe devem também muito. É pela sua atividade que nossa razão se aperfeiçoa;
só procuramos conhecer porque desejamos usufruir e é impossível conceber
por que aquele, que não tem desejos ou temores, dar-se-ia a pena de
raciocinar”.(12) As paixões são experimentadas pelos “selvagens”
a partir dos impulsos da natureza. Já no homem “civilizado”, aquelas
advêm das idéias que têm das coisas. A paixão no homem civilizado o
impulsiona a querer algo, que está além das suas necessidades físicas. O
homem desta paixão articula a confecção de um plano, o qual possibilitará a
realização dos seus desejos e vontades. Tal perspectiva impulsiona o
progresso do entendimento humano:
As paixões, por sua vez, encontram sua
origem em nossas necessidades e seu progresso em nossos conhecimentos, pois
só se pode desejar ou temer as coisas segundo as idéias que delas se possa
fazer ou pelo simples impulso da natureza; o homem selvagem, privado de
toda espécie de luzes, só experimenta as paixões desta última espécie, não
ultrapassando, pois, seus desejos a suas necessidades físicas. (13)
Portanto, o desejo e a vontade do homem no
estado civil rompem com o modo de vida natural. O homem civil deseja
controlar e possuir o que o rodeia. Precisa anunciar este controle, este
desejar. Esta perspectiva de superação dos obstáculos naturais e físicos
dinamizaram a vida do homem, que obteve um progresso formidável do seu
espírito, e tal foi impulsionado pelas paixões oriundas de suas
necessidades: “... os
progressos do espírito se proporcionaram precisamente segundo as
necessidades que os povos receberam da natureza ou aquelas às quais as
circunstâncias os obrigaram e, conseqüentemente, as paixões que os levavam
a atender às suas necessidades”. (14)
Aos homens do estado
natural foram atribuídas diversas características dos homens do estado civil,
o que Rousseau entende como um claro equívoco. Muitas virtudes e vícios do
homem civilizado foram transportados para a conduta do homem natural. Ora,
a ordem civil é regida pelas regras e normas sociais, as quais primam pela
segurança de uma minoria rica, que se beneficia com a desigualdade da ordem
civil. Para os que cometem o equívoco supra -citado – o homem é
naturalmente mau, pois não conhece as virtudes, e, dentre elas, a bondade.
Vejamos como Rousseau se posiciona nesta questão:
Não iremos, sobretudo, concluir com Hobbes que, por não ter nenhuma
idéia de bondade, seja o homem naturalmente mau; que seja corrupto
porque não conhece a virtude; que nem sempre recusa a seus semelhantes serviços
que não crê dever-lhes; nem que, devido ao direito que se atribui com razão
relativamente às coisas de que necessita, loucamente imagine ser o
proprietário do universo inteiro”. (15)
Para Rousseau, Hobbes detectou bem os
equívocos das definições do direito natural. Porém, cometeu um grave erro:
o de atribuir ao desejo de conservação (do homem natural) o desejo de
saciar todas as suas paixões. Isto é uma perspectiva dos homens que vivem
em sociedade. Vejamos o comentário de Rousseau a respeito de Hobbes: “Ele diz justamente o contrário por ter
incluído, inoportunamente, no desejo de conservação do homem selvagem a
necessidade de satisfazer uma multidão de paixões que são obra da sociedade
e que tornaram as leis necessárias.” (16) Rousseau entende que todos os vícios e
paixões, atribuídas por Hobbes ao homem natural, são fruto de um equívoco.
Os limites que impedem estes homens de se utilizarem da razão, também os
impedem de abusarem de suas faculdades. Eles não possuem a ambição de
querer dominar e controlar os outros: basta-lhes que estejam saciadas suas
necessidades: o que propicia o viver em um clima de tranqüilidade. Este
estado de tranqüilidade impôs limites à agressividade do homem natural
e, muitas vezes, superou o desejo de conservação e de amor-próprio.
Tantas vezes repugnou o sofrimento de um semelhante. Procurava de todas as
formas suavizar a dor e o sofrimento de um seu igual. Esta atitude que
podemos chamar de virtude, trata-se de um impulso natural, ao que Rousseau
denominou de piedade: “...
disposição conveniente a seres tão fracos e sujeitos a tantos males como o
somos; virtude tanto mais universal e tanto mais útil ao homem quando nele
precede o uso de qualquer reflexão, e tão natural que, as próprias bestas
às vezes são dela alguns sinais perceptíveis.”(17)
A virtude da piedade, que é inerente ao homem natural,
dificulta qualquer atitude que possa prejudicar outro. Este
sentimento tornou o homem sensível às desventuras de seus semelhantes, a
ponto de barrar-lhe o ímpeto das paixões avassaladoras, responsáveis por
disseminar costumes “depravados”. A piedade e o amor-de-si são
sentimentos que envolvem a existência do homem natural, mantendo-o distante
dos vícios tão comuns à vida societária. Dessa forma, a conservação da
espécie está garantida, pois a sensibilidade pelo sofrer dos outros é
um componente ainda muito presente nas relações entre os indivíduos.
À proporção que os homens vão se
articulando em grupos, as contendas se iniciam, pois se dá a quebra de uma
existência centrada na igualdade e na liberdade. O amor-próprio, engendrado
pela razão, substituirá a piedade natural e o amor-de-si. A manifestação do
primeiro é capaz de impedir os sentimentos naturais do homem, os quais são solidários
para com o sofrimento dos seus semelhantes. Dominado pelo amor - próprio o
homem perde sua capacidade de se apiedar de um semelhante, pois sua
satisfação encontra-se na busca do melhor lugar possível, resultante da
comparação com o outro. É uma paixão desenfreada que provoca no homem um
desejo de alcançar seu intento a qualquer custo, nem que, para isso, tenha
que destruir qualquer opositor: “Podem impunemente degolar um seu semelhante sob sua janela, ele só
terá de levar as mãos às orelhas e ponderar um pouco consigo mesmo para
impedir a natureza, que nele se revolta, de identificar-se com aquele que
se assassina”.(18)
Ao contrário do amor-próprio, a piedade impulsiona sentimentos que rejeitam
o sofrimento alheio. Funciona como um código de lei natural que, a todo
instante, prima pelo respeito e pela liberdade dos seus pares. A piedade
impede a usurpação de muitos homens por outros e esta, aliada ao fim da
liberdade constitui-se na marca da violência da ordem civil. Esta, então,
gera paixões que, para serem controladas, necessitam de leis. Na medida em
que as paixões se tornam cada vez mais violentas, novas leis devem ser
instituídas, para refreá-las. Já, no estado natural ocorre o contrário: a
liberdade de todos é marcante, a começar pela alimentação, uma vez que
todos a têm sem restrições, a não ser as impostas pela natureza. Neste
estado, todos vivem da mesma maneira. Um não se deixa subjugar por ninguém,
pois a autonomia do viver é a marca fundamental da liberdade. Vejamos o
relato de Rousseau:
Sem prolongar inutilmente esses detalhes,
cada qual deve ver como, por serem os laços da servidão formados unicamente
pela dependência mútua dos homens e pelas necessidades recíprocas que os
unem, é impossível subjugar um homem sem antes tê-lo colocado na situação
de não viver sem o outro, situação essa que, por não existir no estado de
natureza, nele deixa cada um livre do jugo e torna inútil a lei do mais
forte”. (19)
Nesta situação o povo está mergulhado num
processo de afastamento da sua liberdade. A felicidade e o prazer de se
viver não mais existem, vez que o signo da servidão colocou “de um lado as riquezas e as conquistas,
e, do outro, a felicidade e a virtude”.(20) É o fim de qualquer possibilidade de
expressão. É o fim da liberdade “inocente”.
(1) STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques
Rousseau: a transparência e o obstáculo; seguido de sete ensaios sobre Rousseau. Tradução Maria Lúcia
Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 289-290.
(2) Ibid., p. 292.
(3) STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo; seguido de
sete ensaios sobre Rousseau. Tradução Maria Lúcia Machado. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 298.
(4) STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques
Rousseau: a transparência e o obstáculo; seguido de sete ensaios sobre
Rousseau. Tradução Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das
Letras. 1991, p. 299.
(5) Ibid., p. 42.
(6) Ibid., p. 42.
(7) Ibid., p. 45.
(8) Ibid., p. 45.
(9) FORTES. Luiz Roberto Salinas. Paradoxo do espetáculo: política e poética em Rousseau; São
Paulo: Discurso Editorial, 1997, p. 54.
(10) ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso
sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p.
46-47.
(11) Ibid., p.
47.
(12) ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a
origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p. 48.
(13) Ibid., p. 48.
(14) Ibid., p. 48.
(15) Ibid., p. 56.
(16) Ibid., p. 56.
(17) Ibid., p. 57.
(18) Ibid., p. 58.
(19) Ibid., p. 62.
(20) Ibid., p. 80.
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