A exposição Bibliotecas e outras disciplinas do artista Nelson Screnci acontece na bilioteca Octávio Ianni do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP (IFCH) entre os dias 28 de abril a 03 de junho de 2014.
Nelson Screnci nasceu em São Paulo em 1955. Formou-se em Artes Plásticas em 1982 pela Fundação Armando Álvares Penteado, FAAP de São Paulo. Nelson também é professor de artes visuais e de História da Arte, atividade que mantém com o mesmo ímpeto e paixão. Suas obras estão presentes em importantes coleções e museus nacionais e internacionais, entre os quais a Pinacoteca do Estado de São Paulo, Museu de Arte de São Paulo (MASP), Musée du Petit Format, Nismes – Bélgica e Museum für Völkerkunde, Frankfurt – Alemanha.
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Abaixo pequena parte da entrevista concedida por Nelson Screnci a Martinho Alves da Costa Junior
MJ: Como começou a série das Bibliotecas?
NS: A série das bibliotecas é posterior à das paisagens. Lembro-me que nos primeiros esboços utilizei a mesma base de composição de antigos trabalhos que retratavam fachadas de prédios. Em cada uma das pequenas janelas havia uma cena distinta com personagens urbanos em situações dramáticas, às quais denominei “interiores”. Eram estruturas de certo modo muito semelhantes às estantes de livros. Além disso, nesses compartimentos, ou apartamentos ou pequenos palcos, aparecia, de vez em quando, o desenho de alguma biblioteca.
Àquela época houve também a influência decisiva que veio do conhecimento e apreciação das magníficas bibliotecas pintadas pela grande artista portuguesa Maria Helena Vieira da Silva.
Importante também como motivação é a lembrança marcante da primeira vez em que entrei em uma grande biblioteca. Foi uma verdadeira experiência de imersão sensorial! A começar pelo característico cheiro causado pela grande quantidade de papel, o silêncio que deixava amplificados e depurados os ruídos que vinham de fora, a visão simultânea de todas aquelas lombadas multicoloridas dispostas verticalmente em estantes, que sempre me fizeram lembrar os prédios da cidade de São Paulo. Se a analogia foi imediata, a representação, entretanto, aconteceu muitos anos depois.
Foi assim que aos 12 anos entrei na primeira biblioteca pública e penso que nunca mais saí dela.
MJ: A lembrança como fonte marcante é algo muito interessante. Sei que você possui um grande caderno que funciona também como depósito de ideias, memórias que podem ser desencadeadas em diversos momentos. Você poderia comentar um pouco sobre ele, sobretudo se nele encontram-se vestígios das bibliotecas?
NS: A proprietária de uma antiga papelaria que funcionava no centro de São Paulo ao renovar seus estoques na década de 90 encontrou nas prateleiras alguns antigos livros de contabilidade, grandes, numerados, com páginas em branco, que haviam caído em desuso. Doou os poucos exemplares para amigos artistas.
Assim que recebi o meu, passei a utilizá-lo como uma espécie de diário de atividades, de planejamentos, de experimentações, de comentários, de recortes, de colagens, etc.
Até hoje mantenho esse “banco de ideias”, onde procuro registrar o que talvez possa utilizar como a semente de algum novo trabalho. De sua livre consulta, em diversas épocas, surgiram vários trabalhos. Assim aconteceu, por exemplo, com alguns esboços de divisões do espaço de tela que, preenchidos por desenhos de lombadas de livros em diversas posições, mais tarde serviram para idealizar as primeiras pinturas de bibliotecas.
MJ: A beleza da ordem e a força compositiva transformam as bibliotecas em algo estético, entretanto parecem parte de um mundo mágico e à parte, sua relação com bibliotecas vai por este caminho?
NS: A tentativa de “reconstruir” visões frontais de bibliotecas é imaginária. Os seres humanos não possuem a capacidade de ver objetos simultaneamente. O foco sempre recai sobre um deles ou o seu agrupamento. É impossível a apreensão total de um painel no qual cada um dos componentes possa ser apreciado com o mesmo tamanho ou na mesma proporção, de uma só vez. Só a imaginação e a arte conseguem tal proeza, que não é realizada só pelos olhos.
Portanto, a concepção da totalidade de uma biblioteca, certamente leva a mundos que vão muito além dos seus limites visuais. Isto porque não é difícil, depois de alguns minutos de contemplação que a atenção do espectador diante de uma obra dessa natureza, passe a ver no lugar de livros, unidades abstratas de cor justapostas em infinitas combinações.
Acredito que nesta transformação, que parte da metamorfose do mundo real em direção à revelação de um mundo novo, encontra-se o lugar poético reservado à mais genuína criação artística.
MJ: A série bibliotecas mostra um aspecto que me parece constante em sua obra: um silêncio meditativo. No rigor compositivo ou no cuidado em que os objetos são construídos ele aparece sempre.
NS: Procurar o silêncio dos grandes museus, bibliotecas e igrejas é o que tenho feito quando viajo ou quando sinto necessidade de fazer uma espécie de suspensão da atividade cotidiana, um intervalo no mundo que chamamos de real ou ainda uma tentativa de fragmentar certa ilusória noção linear da passagem do tempo.
Esse silêncio, só pode ser encontrado onde haja relativo controle dos sons produzidos pelas gentes e coisas.
Ele não significa a ausência de sons ou de palavras. Poucas coisas são potencialmente mais eloquentes do que a visão do interior de uma catedral, de uma coleção de obras de arte, ou de uma biblioteca. Não existe mutismo nos imagens ou páginas deixadas por gerações que estão ali para sempre vivificar ideias e sentimentos.
E a meditação não deixa de ser uma tentativa de profunda comunhão com a essência de toda essa herança.
MJ: Ao mesmo tempo são espaços ritualísticos. A catedral, o museu e a biblioteca demandam comportamentos específicos que mudam no curso da história e que mantêm relações inspiradoras.
NS: A catedral o museu e a biblioteca, são lugares que determinam para quem os frequenta posturas diferentes daquelas assumidas em outros espaços públicos. No entanto, elas são semelhantes entre si no que se refere à imposição de uma atitude ritualística, silenciosa, e até sacralizadora diante dos objetos ali encontrados, fazendo com que as pessoas que se encontram no interior desses edifícios contemplem as esculturas, quadros e livros com a mesma respeitosa reverência.