Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 28 de maio de 2012 a 10 de junho de 2012 – ANO 2012 – Nº 528Retrato do personagem
quando jovem
Tese mostra como Pompéia priorizava criançase jovens em sua prosa ficcional
A prosa ficcional do escritor e jornalista Raul Pompéia (1863-1895) reflete um discurso científico sobre a infância, a adolescência e a juventude, diferentemente de sua poesia e da prosa romântica e realista. Foi o que concluiu o especialista em literatura brasileira Danilo de Oliveira Nascimento em sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Ainda que sendo temas recorrentes na literatura, o pesquisador conseguiu identificar a importância de Raul Pompéia no cenário literário ao representar essas faixas etárias. Ficou claro que os textos do autor sempre fizeram referência à corporeidade, alteridade, erotismo, instintos, perversidades e perversões da infância e da adolescência.
“Tal período, que comporta discursos educacionais, filosóficos, históricos e psicológicos, também comporta o discurso da ficção, tão esclarecedor quanto os demais. Neste sentido, se nele é reconhecida a história social da sua infância e adolescência, também é preciso admitir a ficção nessas áreas que iniciam no Romantismo e que se configuram no Realismo e no Naturalismo”, defende o doutorando. A personagem como elemento do texto de ficção é um desses modos de representação, tal como comparações metafóricas, imagens, citações e referências às características da juventude, e como indicativos de inovações e renovações nas diferentes esferas sociais.
A tese, orientada pelo docente do IEL Mário Luiz Frungillo, não se restringiu a descrever uma acepção do termo “representação” porque este, aplicado à análise e interpretação do texto literário, consideraria só a identificação e a classificação das personagens. “Buscamos atentar para as formas que apontariam os conceitos, discursos e significações de criança e adolescente entre os planos da enunciação e do enunciado, e do texto e do contexto de produção”, conta Danilo.
Ele entendeu as imagens da infância, adolescência e juventude como decodificadoras de discursos e práticas de poder, controle e autoridade que ecoam e se instauram nas relações com o adulto. “Colaboramos para as meias e falsas verdades, equívocos e falácias sobre eles: pré-conceitos, preconceitos e mitos sobre essas faixas etárias, como a ingenuidade infantil, a infância como um paraíso ou desprovida de instinto sexual e de agressividade”, expõe.
Raul Pompéia viveu a efervescência política e cultural no Brasil do século XIX, ao longo do processo de Proclamação da República e da Abolição da Escravatura. O momento foi de intensa produção literária realista e naturalista, significativo para a política e para as letras. Publicou a maioria de suas crônicas, contos, novelas, poesias e romance no Jornal do Commercio e na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, e no Diário de Minas, de Juiz de Fora.
Como Machado de Assis, Raul era um escritor de ficção arredio às classificações periodistas literárias, apesar dos rótulos de naturalista ou de impressionista. Foi um autor que se singularizou no meio literário de então em parte pela publicação de seu único romance – O Ateneu (1888), obra tida como autobiográfica.
A escolha de Raul Pompéia para avaliar, relata Danilo, começou com a leitura desse romance, “que é sempre impactante para qualquer leitor, tanto pela história de um pré-adolescente matriculado em um colégio interno quanto pela linguagem poética”. Mas outros fatores pesaram nesta escolha – a sua fortuna crítica, cujos ensaios e artigos acadêmicos e de jornais, livros e teses preferenciam aquele romance como objeto de estudo, ao invés dos contos e novelas.
Isso motivou o pesquisador a se debruçar sobre esses textos ficcionais do autor, considerados pela crítica literária de questionável qualidade estética e literária. Da leitura de contos, novelas e crônicas, observou a grandiosidade de O Ateneu diluída neles: da linguagem do romance às suas personagens, da história aos modos de tratamento da infância e da adolescência pelos narradores e personagens adultas.
A primeira impressão de Danilo na leitura dos contos Microscópicos (1888) e de novelas como Uma tragédia no Amazonas (1880) e As joias da coroa (1882) foi a de que eles teriam “servido” de laboratório à criação daquele romance. No entanto, leituras mais atentas levaram, na tese, a verificar sua produção ficcional e não ficcional como decorrentes dessa proximidade.
Critérios
O doutorando optou por uma análise histórica e sociológica para dar relevo a Raul Pompéia na tradição literária da temática estudada e situar sua produção ficcional e não ficcional no contexto da “invenção” da infância e da adolescência. A localização do autor em ambos os contextos serviu para elucidar até que ponto uma literatura “realista” poderia representar os discursos sociais e científicos, bem como o conceito e a imagem da criança, do adolescente e do jovem, e as situações vividas por essas faixas etárias.
A análise e interpretação de crônicas, contos e novelas mereceram um capítulo à parte. A temática serviu para selecioná-las, enquanto isso subtemas como “orfandade”, “república e juventude”, “erotismo juvenil”, “educação e profissionalização da infância e da adolescência pobres”, entre outros, serviram para agrupar os textos.
Mediante esses critérios, a tese teve dois capítulos dedicados às crônicas e um às novelas e contos. No primeiro capítulo, ao considerar o empenho discursivo político do escritor, foram interpretadas crônicas sobre a juventude e sua relação com o movimento de Proclamação da República, a educação artística e política da juventude, e também seu exercício de crítica literária e de arte visando à descoberta de “meninos prodígios” ou “gênios artísticos”.
No segundo, foram discutidas as crônicas sobre festas sagradas, cívicas e carnaval, nas quais verificou-se uma expressiva presença de crianças: crimes contra a infância e a adolescência ou crimes cometidos por elas. No último capítulo, foram analisados e interpretados contos e novelas, destacando a recorrência às situações narrativas da orfandade e do abandono da infância e sua aproximação com melodramas e folhetins.
Notou-se também a valorização de personagens pintores, poetas ou do mundo das artes plásticas e da imagem da adolescência, ora como bicho para espetáculo, ora como anjo e tema de pintura de quadro para a decoração do ambiente familiar e para a adoração paterna, dos narradores e das personagens masculinas do mundo adulto. Os processos de composição artística e poética dessas imagens se movimentavam entre o esconder e o manifestar dos desejos de posse sexual, de exposição do corpo e da intimidade do adolescente e da prática da sevícia do corpo infantil e juvenil.
Crítica
A princípio, a pesquisa apenas contemplaria a prosa ficcional de Raul Pompéia, com as crônicas servindo de respaldo à discussão entre ficção e realidade. Ocorre que, com a leitura de tais textos, as crônicas passaram a ser corpus fundamental de análise e de interpretação, uma vez que sinalizaram um escritor pouco conhecido como cronista dos problemas sociais, econômicos e educacionais da infância e adolescência brasileiros do final do século XIX, via de regra no Rio de Janeiro e em Niterói.
Não raro, muitas crônicas, publicadas entre 1886 e 1895, abordaram a escolarização, profissionalização e educação política e artística da infância e da adolescência pobres; a necessidade de engajamento político da juventude em prol da República; as festas cívicas e populares profanas e sagradas; as crônicas sobre campanhas filantrópicas para criação e manutenção de orfanatos, creches e escolas; a exploração da mão de obra infantil e os crimes contra essas faixas etárias ou cometidos por elas.
Danilo reparou em dois fatos nas crônicas que noticiavam crimes: o modo declarado como o cronista ironizava o ritmo comercial de notícias e a constante recorrência aos temas da infância e da adolescência, assim como a presença acentuada de crianças e adolescentes na ficção. “Não se tratava de um caso de patologia do escritor, como sugeria a crítica literária, e sim de conformação a um sistema de imprensa que valorizava o interesse do público leitor pelo consumo de crônicas e folhetins com temas e padrões textuais que se repetiam diária e semanalmente.”
A imagem que se tem de Raul Pompéia, pela sua biografia e pelas crônicas políticas e sociais, é a de um moralista, ardente orador político e a de um homem de hipersensibilidade e aguçado senso de justiça. O Ateneu foi a sua obra mais acessível, embora não projetada para alcançar sucesso de público e de crítica. Foi um romance escrito às pressas, em ritmo de produção de folhetim, comenta o pesquisador. A obra parecia responder, naquele contexto, aos interesses da imprensa e do público pela produção e consumo de crônicas sociais, folhetins e noticiários. Só que fugiu ao padrão de ficção publicado em jornal, tornando-se um dos romances paradigmáticos da prosa ficcional brasileira oitocentista.
Nesse período, o escritor estava ocupado com as crônicas políticas e Canções sem Metro, livro de prosa poemática que levou quase 12 anos para nascer, um projeto de vida o qual ele pensava que seria um marco na história da poesia brasileira. Aconteceu um fracasso editorial e pessoal. “Entretanto, se Canções sem Metro não obteve o sucesso almejado, se fez presente na linguagem altamente poética daquele romance; se Alma Morta, espécie de tratado filosófico, também não obteve sucesso como obra de fôlego intelectual, suas concepções de mundo e as relações sociais ecoam em Sérgio, narrador em O Ateneu”, menciona.
A ficção de Raul Pompéia tem algo de pessoalíssimo quando são reconhecidas tais considerações, ou fatos da vida pessoal e escolar – idênticos à vida escolar de Sérgio – ou ainda quando se percebe que não se trata de um autor adulto distanciado da adolescência e da juventude que representa, mas que escreveu a sua ficção ao longo destas faixas etárias, o que também o distingue dos demais.
■ Publicação
Tese de doutorado: “Representações da infância, da adolescência e da juventude nas crônicas e na prosa ficcional de Raul Pompéia”
Autor: Danilo de Oliveira Nascimento
Orientador: Mário Luiz Frungillo
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)