Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 22 de outubro de 2012 a 28 de outubro de 2012 – ANO 2012 – Nº 543Uma proposta,
várias interpretações
Progressão continuada é adotada com variados objetivospor diferentes governos, aponta Débora Jeffrey
No início de outubro, a professora Débora Cristina Jeffrey, chefe do Departamento de Políticas, Administração e Sistemas Educacionais (Depase) da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, recebeu das mãos do governador Geraldo Alckmin o Prêmio Fundação Bunge por um estudo profundo sobre as implicações do regime de progressão continuada, adotado pelo Estado de São Paulo em 1988. Mais do que o prestigiar um trabalho específico, a premiação é o reconhecimento do envolvimento da docente com questões essenciais da educação. Na entrevista que segue, Débora Jeffrey fala sobre os desafios dessa área, com especial atenção às questões dos sistemas de ciclos e da formação de jovens e adultos.
Jornal da Unicamp – Em uma de suas palestras, a senhora afirmou que as discussões em torno do sistema de ciclos remontam à década de 20. Que circunstâncias contribuíram para que ele fosse adotado a partir do final da década de 80 no país?
Débora Jeffrey – No período de redemocratização do país, houve um movimento em favor da democratização da escola pública. A aprovação da Constituição de 1988 foi fundamental para a conquista do direito à educação. A ideia principal era a de criar oportunidades para que todos pudessem ter garantido o direito ao acesso e permanência na escola. Em 1996, esse direito foi reafirmado com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB). Assim, os governos tiveram que enfrentar a questão de garantir oferta e permanência. A questão dos ciclos e da progressão escolar acabou entrando nesse debate. É claro que seria necessário se fazer uma análise específica sobre a forma como cada governo trabalhou com esse sistema.
JU – A impressão que se tem é que a proposta continua sendo incompreendida por muita gente, não?
Débora Jeffrey – Penso que sim. A proposta visa a ampliar a oportunidade educacional, mas vai além. Também pretende repensar a função social da escola e estabelecer uma nova dinâmica de trabalho na escola. Ou seja, o objetivo é superar um modelo seletivo, pautado na meritocracia do indivíduo, para um processo coletivo, que tenha como base o envolvimento da comunidade escolar.
JU – Mas, cada governo fez a sua própria interpretação dessas premissas, não?
Débora Jeffrey – Sim. Na década de 1980, foram enfatizados os elementos da democracia, da escola como espaço de gestão democrática. Nesse caso, os ciclos representaram uma medida com o propósito de contribuir com a democratização da escola e o combate à exclusão dos alunos deste espaço, nos anos iniciais do primeiro grau. Já na década seguinte, muitos governos adotaram este discurso, mas procurando resolver um problema imediato, que era entendido como uma “disfuncionalidade do sistema”: a reprovação, tendo em vista a regularização do fluxo escolar. Desse modo, tivemos governos que adotaram e interpretaram a medida com base em pressupostos pedagógicos. Outros, acabaram por adotar a proposta de ciclos como parte de um processo de reforma administrativa, com vistas à economia de recursos.
JU – Em São Paulo, o sistema de progressão escolar foi adotado há 14 anos. Que avaliação pode ser feita sobre essa experiência?
Débora Jeffrey – Apesar de toda inquietação e críticas que a medida suscitou, em nenhum momento se pensou em revogá-la. O objetivo principal, a princípio, era promover a correção do fluxo escolar, e este foi alcançado. A questão da universalização do ensino fundamental também foi atingida, pois hoje temos mais de 98% dos alunos de 6 a 14 anos matriculados. Em relação à questão qualitativa, porém, muitos debates vêm ocorrendo desde 1998. A questão central é: o aluno está aprendendo? Do ponto de vista da cultura escolar, entretanto, a medida não teve um impacto direto. Ainda não foi feita a reflexão de duas questões fundamentais: “que escola temos?” e “que escola queremos?”, pois a política educacional não estimulou isso.
JU – A adoção do sistema alterou de fato a estrutura das escolas em São Paulo?
Débora Jeffrey – Embora a proposta garanta um tempo maior de aprendizagem, a estrutura da escola paulista não foi alterada, visto que permanece seriada. Ou seja, temos ciclos com progressão, mas o calendário escolar e o projeto pedagógico são seriados. O currículo, por sua vez, é pensando em disciplinas e não de forma interdisciplinar. Numa entrevista que realizei para coleta de dados de uma pesquisa já concluída, um professor resumiu essa situação da seguinte maneira: “Temos um sujeito velho com roupa nova, que não se sente confortável nessa vestimenta”.
JU – O sistema conta com mecanismos de avaliação, para que problemas possam ser diagnosticados e correções de rumo possam ser adotadas?
Débora Jeffrey – O grande problema da medida é justamente a falta de uma avaliação sobre ela. São Paulo tentou fazer uma avaliação em 2001, mas com foco nos alunos e escolas, por meio do Saresp [Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo]. Mas, a medida não deu certo. Então, não temos nenhum instrumento para avaliar a proposta.
JU – E quanto à avaliação dos alunos? Por muito tempo, dizia-se que eles eram aprovados automaticamente, mesmo que não tivessem aprendido os diversos conteúdos ministrados. Isso confere?
Débora Jeffrey – De fato, a promoção automática se configurou, e foi legitimada como uma iniciativa adotada, nos primeiros anos da proposta do regime de progressão continuada, nas escolas estaduais de São Paulo, inclusive com críticas e denúncias de pais, professores, sindicatos e mídia. Porém, é necessário compreender os caráteres pedagógico e político que envolveram a iniciativa paulista e distingui-los, procurando identificar como os governos têm se apropriado do discurso pedagógico que embasa a proposta para justificar o seu propósito como política educacional.
JU – Ainda hoje temos notícias de alunos que saem do ensino fundamental sem dominar as operações matemáticas e sem saber interpretar textos simples, mesmo em Estados mais desenvolvidos como São Paulo. Essa questão não tem solução?
Débora Jeffrey – Temos uma geração que, infelizmente, se perdeu ao longo do processo de implantação dessas medidas. Além disso, o objetivo principal dessas políticas foi alcançar a universalização da educação, dos 6 aos 17 anos. Mas, quando se pensa em universalização da educação básica, normalmente se desconsidera os problemas vivenciados no ensino fundamental. Os alunos quando chegam ao ensino médio, saem de um sistema de ciclos para adentrarem em uma organização seriada, cuja lógica é outra. No ensino médio, eles não contam mais com mecanismos como reforço e recuperação, apesar de muitas vezes a escola manter simultaneamente ciclos no ensino fundamental e seriação no ensino médio e professores que atuam concomitantemente nesses dois níveis. Isso acaba gerando confusão.
JU – Segundo dados apresentados pela senhora, com base no Censo Escolar de 2009, mais de 60% das matrículas no país ainda estão vinculados ao sistema seriado. Isso tende a mudar?
Débora Jeffrey – Penso que a seriação não tende a mudar. Percebemos que muitos municípios que adotaram ciclos estão revogando a experiência. Alguns optam pela revogação por desconhecimento da medida do ponto de vista pedagógico. Então, é mais fácil acabar com a medida do que avaliar a proposta, identificar problemas e estabelecer ações para superar as dificuldades. A adoção ou não da progressão acaba sendo uma opção dos governos, já que a LDB flexibiliza essa questão.
JU – A senhora também tem desenvolvido pesquisas em torno da educação de jovens e adultos. Como está esse nível de ensino hoje no país?
Débora Jeffrey – Muitos dos alunos excluídos no ensino fundamental estão atualmente matriculados na EJA [Educação de Jovens e Adultos], especialmente jovens entre a faixa etária dos 15 anos aos 17 anos (no ensino fundamental) e acima do 18 anos (no ensino médio), configurando a juvenilização da modalidade, fato que não deveria acontecer e que expressa a dificuldade existente no atendimento dessa população no ensino regular, por parte das políticas educacionais adotadas.
Atualmente, temos dois movimentos na EJA: a matrícula de jovens na modalidade, pelo fato de comprometerem o fluxo escolar com várias reprovações no ensino regular, e, consequentemente, os indicadores da escola; e o processo de articulação da EJA com a Educação Profissional, que vem ocorrendo desde o ano de 2007, contemplando a faixa etária dos 18 anos aos 24 anos. Desse modo, a educação desse segmento se encontra em meio a um dilema: garantir a aprendizagem dos jovens alunos excluídos do ensino regular e proporcionar a profissionalização deste grupo, com o intuito de favorecer a empregabilidade dos mesmos.
JU – Recentemente, um estudo desenvolvido pela senhora sobre a progressão escolar foi contemplado com o Prêmio Fundação Bunge. A premiação é um estímulo à continuidade das suas pesquisas?
Débora Jeffrey – Tive grande alegria em receber o prêmio. Ele é o resultado do meu envolvimento com a educação. Sem dúvida, trata-se de um reconhecimento importante ao trabalho que venho desenvolvendo. Eu me senti muito honrada por representar a Faculdade de Educação e a Unicamp nacionalmente. Penso que o prêmio também serve de estímulo para que eu continue pesquisando as políticas educacionais, a qualidade de ensino e suas implicações na escola, pois há muitos temas a serem investigados.