Edição nº 547

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 26 de novembro de 2012 a 02 de dezembro de 2012 – ANO 2012 – Nº 547

Tese mergulha no universo de
viciados em sexo e amor

Estudo desenvolvido no IFCH por antropóloga
é constituído por três frentes etnográficas

 

O Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso (Amiti), do Hospital das Clínicas de São Paulo, nasceu focado principalmente no jogo patológico – compulsão para jogos de azar que traz prejuízos emocionais, financeiros e sociais a muitas pessoas. Certo dia, um médico foi procurado pela paciente cuja compulsão era discar o número 145 da Telesp, serviço de linhas cruzadas para bate-papo entre três ou mais participantes; acabava marcando encontros com vários deles e assim seu dinheiro esvaía. “Mas qual é o jogo? Sua história não bate com jogo patológico”, indagou o médico. A resposta: “Como não? Eu jogo o jogo do amor”.

Ainda que o diálogo não esteja transcrito fielmente, ilustra o surgimento no país da especialidade voltada à adicção (ou vício) em sexo e amor. Foi no Amiti que a antropóloga Carolina Branco de Castro Ferreira realizou parte do trabalho de campo para a sua tese de doutorado, orientada pela professora Adriana Grácia Piscitelli. Intitulada “Desejos regulados: grupos de ajuda mútua, éticas afetivo-sexuais e produção de saberes”, a tese foi defendida em outubro junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

“O vício em sexo e amor é uma categoria relativamente nova, datada de meados da década de 1960, vindo a ser divulgada em diversas mídias e popularizada com mais intensidade nos últimos 20 ou 30 anos”, explica Carolina.

Segundo Carolina Ferreira, seu estudo foi constituído por três frentes etnográficas. A primeira junto a associações anônimas de autoajuda frequentadas por pessoas com compulsão sexual e amorosa. A segunda envolvendo a análise e reflexão sobre a circulação desses sujeitos e de livros e outros materiais de autoajuda, bem como da propagação e visibilidade de noções afetivo-sexuais por meio da mídia, novelas e filmes. E a terceira sobre o surgimento de categorias médicas e conceitos “patologizadores” relacionados ao amor e ao sexo.

“Na maioria dos trabalhos em ciências sociais, pensa-se o surgimento de uma categoria médica e como esta categoria influi na vida das pessoas. Eu fiz o contrário, começando o trabalho de campo pelos grupos anônimos, considerados como produtores de saberes, de uma expertise leiga”, informa a antropóloga. “Fui até o Mada – Mulheres que Amam Demais Autônomas – e percebi que as mulheres não frequentavam apenas aquele grupo, mas muitos. Isso porque elas explicam a adicção sexual e amorosa a partir, também, de um endividamento pessoal por causa do uso de medicamentos, álcool ou drogas; havia uma narrativa que conectava vários vícios.”

Ao seguir o circuito percorrido por essas pessoas, Carolina constatou que não valia a pena se ocupar de apenas um grupo, mas observar o fluxo dentro de uma rede de variados grupos. “A primeira dessas entidades no Brasil foi dos Alcoólicos Anônimos (AAA), que teve a sua metodologia adaptada para outras categorias, como de neuróticos, introvertidos e narcóticos anônimos. Eles funcionam baseados sobretudo na experiência: se digo que sou alcoólatra ou viciado em sexo, este dizer legitima a experiência e por isso posso participar do grupo. Não há mediação de especialistas, embora muitos se relacionem com médicos ou psicólogos.”

Mas, afinal, quem é o viciado em sexo e amor? “Segundo eles próprios, é aquele que não fica sem se apaixonar, sem um relacionamento”, diz a pesquisadora. “Existem vários jogos nisso. Quando surge a figura do adicto sexual, a sua cara é de homem. Dez anos depois o problema é associado à mulher, que só aparece como viciada em sexo quando o amor entra em cena. No limite, é para não perder a parceria de determinados homens que a mulher, segundo discursos de especialistas, se submete a fazer sexo na hora que não quer ou com quem não quer. Produzindo a noção de dependência emocional, de amor. Vejo esta forte marca de gênero, tanto por parte de quem frequenta os grupos, como na visão médica.”

Carolina Ferreira afirma na tese que o conjunto de informações colhidas revelou que a socialidade produzida nos grupos anônimos opera a partir de ideias e categorias específicas. “Nesta socialidade, o engajamento emocional envolve a produção de teorias nativas da doença e horizontes éticos afetivo-sexuais criados a partir de práticas pedagógicas no âmbito amoroso-sexual. Há uma espécie de bricolagem entre saberes médicos e psicológicos. Também entram noções de uma religiosidade laicizada: a crença em um poder superior,  não de um Deus como o concebido, mas de um deus transcendente, criado na imanência das relações colocadas em jogo nos grupos.”

Um exemplo de teoria nativa da doença, de acordo com a autora da pesquisa, é a ideia de uma anorexia social, sexual e emocional, que ela não encontrou no hospital ou nos livros de autoajuda. “A teoria é para um transtorno de outra ordem, não a anorexia como a conhecemos, mas de uma metáfora para tratar de determinadas tensões, principalmente nas relações sociais: a busca de parcerias afetivo-sexuais por parte das mulheres e, no caso dos homens, as relações travadas no mercado do sexo, como por clientes de prostitutas ou viciados em vídeos e revistas de pornografia. Para lidar com uma suposta falta, eles utilizam esta categoria de anorexia, que seria um transtorno físico-moral.”

Regulação dos desejos

Na tese, Carolina procurou abordar o aparecimento de determinadas categorias médicas e psicológicas que “patologizam” a sexualidade, no intuito de regular alguns comportamentos e desejos. “A adicção em sexo e amor está dentro do conceito de vício, de compulsão. Existe uma diferencial na produção e nas relações de saberes entre os grupos de autoajuda e o campo médico, principalmente diante de toda uma discussão sobre o uso de medicamentos. Embora o Amiti, no caso, priorize bastante os tratamentos terapêuticos em grupos, uma questão que merece atenção no que se refere à regulação da sexualidade é o uso de medicamentos e da relação pejorativa que pode se estabelecer entre identidades e práticas sexuais.”

Agora em 2012, lembra a antropóloga, o chamado hypersexual disorder aparece incluído na quinta revisão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, na sigla em inglês), publicação da Associação Americana de Psiquiatria que lista diferentes categorias de transtornos mentais e critérios para diagnosticá-los. “Os grupos,  produzem as próprias categoria, mas vejo um diferencial na relação de poder quando certas convenções saem do campo leigo e entram para o campo médico-científico. É uma janela de pesquisa que se abre.” 

Segundo Carolina, as categorias leigas que circulam dentro dos grupos anônimos produzem conhecimentos que acabam bastante difundidos, por exemplo, através dos livros de autoajuda. “Desde a década de 90, houve no Brasil um aumento de 270% desses títulos no mercado editorial. Essas categorias vulgatas servem um pouco como intermediários culturais, tradutores de um saber médico-científico para a linguagem mais popular, mas também acabam produzindo conhecimento.”

Outro aspecto interessante ressaltado por Carolina Ferreira é o que os participantes buscam dentro dos grupos. “Há uma busca de éticas afetivo-sexuais em que essas pessoas nem são bonecos normatizados pelo que o grupo diz, tampouco possuem livre arbítrio para fazer escolhas que não estejam reguladas por questões sociais. Os grupos abrem um horizonte de gradientes pelos quais as pessoas vão se movimentando, se aproximando ou se afastando de noções consideradas transgressoras, adquirindo competências emocionais com as quais vão jogar em outros campos sociais, como por exemplo, na busca de parcerias amorosas e de um trabalho melhor, produzindo noções de mobilidade e de ascensão social. No começo da pesquisa, imaginava que os grupos eram  frequentados por pessoas de classes alta e média, que vão ao psicanalista. Mas eu sugeriria que vem ocorrendo uma popularização cada vez maior, abrindo o leque para classes média/média e média/baixa.”

 

Publicação

Tese: “Desejos regulados: grupos de ajuda mútua, éticas afetivo-sexuais e produção de saberes”
Autora: Carolina Branco de Castro Ferreira
Orientadora: Adriana Grácia Piscitelli
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)

Comentários

Comentário: 

É de extrema coragem e talento o trabalho da professora Carolina. Isso mostra caminhos a serem discutidos com uma visão ampla de discussão e que reflete benefícios na melhora no convívio e inserção social.