Edição nº 600

Nesta Edição

1
2
3
4
5
6
8
9
10
11
12

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 09 de junho de 2014 a 22 de junho de 2014 – ANO 2014 – Nº 600

Reflexão e conjuntura na arena do debate público




(Continuação da página 5)

Que continuidades e descontinuidades existem, a seu ver, no campo da política e das relações internacionais, entre a conjuntura em que o golpe aconteceu e o momento atual da sociedade brasileira?

Caio Navarro de Toledo – De 1946 a 1964, a democracia apresentava várias limitações, superadas, em parte, na Carta de 1988. Graças às pressões populares durante a Assembleia Constituinte foi adotado o voto dos analfabetos, ampliou-se a liberdade partidária, diversificou-se o debate ideológico, ocorrem experiências de orçamento participativo, ampliou-se a participação do ministério público etc.

No entanto, ontem como hoje, as eleições ainda são decididas pelo poder econômico. Os meios de comunicação de massa, privados e estatais, não estão submetidos a qualquer tipo de controle democrático. A participação dos trabalhadores na definição das políticas públicas é praticamente inexistente. 

Por fim, a democracia política ainda se limita à participação eleitoral, posto que os mecanismos de democracia direta (entre eles, o plebiscito e referendo), previstos na Carta de 1988, não foram acionados nem cogitados pelo Executivo federal e Congresso nos últimos 25 anos. Ou seja, a chamada soberania popular – que se expressaria parcialmente por meio da convocação do eleitorado a fim de opinar e decidir questões sociais e econômicas relevantes – é ainda retórica. 

No pré-1964, após reconhecer que a direita não aprovaria as reformas socioeconômicas e se organizavam para a sua desestabilização, o governo Goulart apoiou a intensificação das mobilizações sociais e políticas. Também se empenhou abertamente na defesa de reformas sociais e ampliação da democracia política. Com isso, o governo Goulart acabou decretando sua sentença de morte. 

Na atual conjuntura política, particularmente após as “jornadas de junho” de 2013, vários movimentos sociais de orientações políticas progressistas têm saído às ruas para reivindicar políticas sociais, que atenuem as carências dos setores populares e médios.  Em paralelo, há as recorrentes as manifestações dos movimentos dos trabalhadores rurais em prol da reforma agrária posto que há 50 anos esta bandeira não foi ainda atendida pelos sucessivos governos (ditatoriais e democráticos). 

Os governos do PT tomaram iniciativas sociais que retiraram extensas parcelas da sociedade da extrema pobreza, permitiram reajustes do salário mínimo acima da inflação, diminuíram o desemprego etc. Mas isso não invalida o fato de as administrações federais do PT serem identificadas como “governos da ordem” na medida em que não questionam os privilégios das classes dominantes nem se propõem a reformar a ordem econômico-social dominante.

João Quartim de Moraes – Há muito circula na esquerda latino-americana uma explicação irônica da estabilidade institucional estadunidense. Querem saber por que não há golpes de Estado nos Estados Unidos? Porque lá não há embaixada dos Estados Unidos.

O golpe de 1964 não fugiu à regra. Carlos Lacerda, o mais furibundo e virulento chefe civil da conspiração golpista, admitiu, em entrevista de 1977, que ele e [José de] Magalhães Pinto, quando eram governadores respectivamente da Guanabara e de Minas Gerais, haviam mantido contatos com a embaixada norte-americana a fim de garantir armas e apoio diplomático dos Estados Unidos para o golpe que estavam articulando. 

Tiveram pleno êxito: às 15h30 de 31 de março de 1964, o Pentágono desencadeou a operação “Brother Sam”, mobilizando um fast carrier task group  (do qual fazia parte o porta-aviões Forrestal), com o objetivo de fornecer aos sediciosos o carregamento de quatro petroleiros gigantes, bem como 110 toneladas de armas e munições, a serem transportadas por aviões de guerra. O rápido sucesso do golpe tornou desnecessário o prosseguimento da operação, mas a certeza de poderem contar com o “colosso do Norte” trouxe grande encorajamento aos conspiradores.

Durante o meio século que nos separa do golpe de 1964, as principais mudanças na situação internacional que concernem mais diretamente ao Brasil são a ascensão econômica da China, as transformações revolucionárias nacional-populares na Venezuela, Bolívia, Peru, bem como o avanço do Mercosul. As relações de força em escala mundial são hoje menos desfavoráveis aos povos da periferia.

Luiz Alberto Moniz Bandeira – Essa é uma questão complexa. No campo das relações internacionais, o regime militar, durante o governo do marechal Humberto Castelo Branco [primeiro presidente militar instalado pelo golpe de 1964] subordinou o Brasil aos Estados Unidos. Porém, depois, o regime, sobretudo com o governo do presidente Ernesto Geisel, voltou a seguir linhas similares ao da política externa do presidente João Goulart, a fim de defender os interesses nacionais, determinados pelas necessidades do processo produtivo do país em desenvolvimento e as contradições com os interesses dos Estados Unidos voltaram a recrudescer.

A conjuntura em que o golpe de Estado ocorreu, em 1964, é bem diversa da que hoje existe tanto ao nível nacional quanto internacional. Embora esteja em andamento uma nova Guerra Fria com a Rússia e a China, os Estados Unidos já não mais são uma estrela de primeira grandeza. O presidente Barack Obama, como seu antecessor George W. Bush, ainda tenta implantar a full spectrum dominance, porém enfrenta inúmeras dificuldades. E, a fim de manter aparente legitimidade, Washington passou a instrumentalizar organizações não-governamentais (ONGs) mantidas com recursos da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) e do National Endowment for Democracy (NED), ademais de outras fundações privadas  americanas. 

Elas operam como quintas e promovem demonstrações, convocadas através das redes sociais, com a cobertura da grande mídia corporativa, a pretexto de defender direitos humanos, a democracia, sistema de educação e saúde etc. E assim continuam até derrubar o governo. Foi o que aconteceu na Ucrânia recentemente.

Ao contrário de outros países latino-americanos que enfrentaram golpes militares na mesma época em que o Brasil, em nosso país não existe uma reflexão e uma crítica, na arena ampliada do debate público, sobre o golpe de 1964. Pouco se fala e pouco se debate a respeito do golpe – exceto por alguns segmentos da sociedade. Que tipo de efeito isso tem, na opinião do senhor, para a compreensão dos processos políticos e sociais que se dão no país?

Caio Navarro de Toledo – Deve ser reconhecido que, por ocasião dos 50 anos do golpe de Estado de 1964, foram realizadas centenas de atividades e debates em todo o país. Igualmente, ocorreram manifestações de ruas em repúdio à data. Rádios e TVs de larga audiência promoveram debates e entrevistas sobre o golpe e os efeitos da ditadura militar. Durante várias semanas, todos os grandes jornais do país publicaram artigos e cadernos especiais sobre os 50 anos do golpe. Dezenas de livros, edições de revistas e blogs/sites tematizaram o assunto.

No entanto, o que mais importa destacar é o fato de que sem, nenhuma exceção, todos os materiais publicados pelo conjunto da grande mídia brasileira abordaram de forma crítica o movimento de abril de 1964, denominando-o pelo seu devido nome: golpe de Estado, não “revolução democrática”. 

Registre-se também que passeatas em defesa do golpe, programadas para algumas cidades, fracassaram ou nem mesmo se realizaram face o número irrisório de participantes. Neste ano, nem mesmo os militares, em seus clubes fechados, se reuniram no dia 31 de março para comemorar a data. Todos estes fatos não deixam de ser relevantes quando se privilegia o ideal da construção de uma cultura política democrática no país.

A este respeito, deve ser lembrado também que, decorridos 50 anos, é um fato significativo que não foi produzida no Brasil uma única obra cultural relevante (na historiografia, na literatura, no cinema, no teatro, na música popular etc.) em defesa do golpe e do regime militar de 1964. Em contraposição, existem dezenas de obras de elevada consistência artística e intelectual que criticam o golpe e a ditadura militar. 

Apesar de as representações de natureza democrática serem predominantes, não devemos nos iludir quanto à extensão desta “vitória” ideológica e cultural; afinal, ainda é altamente insuficiente no Brasil o debate público sobre o golpe de 1964 e a ditadura militar.  Apenas os setores letrados da sociedade brasileira têm um conhecimento razoável destes sombrios tempos de nossa história política. 

Não é, pois, descabido afirmar que a democracia política vigente no país ainda não logrou ser plenamente vitoriosa posto que não enterrou, definitivamente, a ditadura militar de 1964. Além de instituições e dispositivos herdados do período militar, cujos efeitos ainda se fazem sentir sobre a atual vida social brasileira, a memória da ditadura – para a maioria do povo brasileiro – é frágil, imprecisa e lacunar. 

As entidades do campo democrático e progressista têm elevada responsabilidade pela fragilidade e inconsistência dessa memória; afinal, desde o fim do regime militar, são raras e extemporâneas as iniciativas dos partidos políticos, de organizações de movimentos sociais e entidades culturais para promover debates públicos sobre o golpe e os efeitos perversos do regime militar. 

Na batalha pela memória social da ditadura, hoje, ganham amplo destaque os trabalhos desenvolvidos pela Comissão Nacional de Verdade, criada pelo atual governo. A expectativa é que esta Comissão produza, além de um amplo, minucioso e consistente relatório final, um conjunto de materiais e publicações que possam ser apropriadas pelo debate público, além de propor aos governos federal e estaduais a construção de museus semelhantes aos de vários países da América Latina que documentam os períodos de ditadura militar que viveram.

João Quartim de Moraes – Sempre houve reflexão e crítica, mas a questão, sem dúvida, é seu limitado alcance na arena ampliada do debate público.

Essa carência não se manifesta apenas a propósito do golpe de 1964. A baixa escolaridade da maioria da população e a intoxicação mental promovida pelos grandes meios audiovisuais manipulados pelos “donos da notícia” explicam em boa parte o fraco interesse pela memória histórica.

A amplitude atingida pelo terrorismo de Estado nos outros países latino-americanos também explica as diferenças no grau de rejeição que inspiram os regimes militares contrarrevolucionários. É difícil medir o grau de abominação e de atrocidades de cada um deles. Mas crimes contra a humanidade como o roubo sistemático dos filhos das vítimas da tortura e do assassinato seletivo, tal como ocorreu na Argentina sob o celerado general [Jorge Rafael] Videla e parceiros, mobilizaram as Mães da Plaza de Mayo (hoje avós), cujo pungente combate sensibilizou largas parcelas da opinião pública. 

No Chile, a violência do golpe de Pinochet foi muito maior do que no Brasil, porque a mobilização popular para levar adiante as reformas sociais avançadas do governo de Salvador Allende colocava na ordem do dia a ultrapassagem do capitalismo. O aniquilamento da resistência dos operários, camponeses, estudantes foi operado à luz do dia, nos bairros populares, nos estádios, na rua.

Luiz Alberto Moniz Bandeira – Não creio que se fale pouco a respeito do golpe de 1964. Recentemente, por ocasião do transcurso do seu cinquentenário, saíram muitas publicações sobre o acontecimento. 

Eu mesmo, ainda vigente o regime militar e estando preso pela Marinha, publiquei, em 1973, o livro Presença dos Estados Unidos no Brasil, obra na qual mostrei a participação dos Estados Unidos, como fator fundamental para a efetivação do golpe. Em 1977, ainda sob a ditadura, lancei O Governo João Goulart – As lutas sociais no Brasil (1961-1964), apoiado na documentação do próprio João Goulart e também na documentação desclassificada nos Estados Unidos, bem, como em entrevistas com os mais diversos atores que participaram dos acontecimentos. Esse livro esteve seis meses no primeiro lugar da lista dos best-sellers.  A 8ª edição revista muito ampliada foi publicada pela Editora Unesp, em 2010.

Também publiquei, posteriormente, o livro Brasil-Estados Unidos: a rivalidade emergente (1950-1988), no qual analisei a evolução do regime militar, com as suas contradições internas. Sua 3ª edição saiu recentemente pela Civilização Brasileira

Há obras excelentes, escritas por acadêmicos norte-americanos, como Jan K. Black, cuja obra A Penetração dos Estados Unidos no Brasil, escrita e publicada nos Estados Unidos, em 1977, foi traduzida e lançada no Brasil pela Editora Massangana, da Fundacão Joaquim Nabuco, em 2010. Outra acadêmica, nos Estados Unidos, Ruth Leacok, publicou Requiem for Revolution – The United States and Brazil, 1961-1969, obra de altíssima qualidade.

E não posso deixar de referir-me a outros livros muito bons, muito lúcidos, tais como Cold Warriores Coups d’Etat – Brazilian Relations, 1945-1964, de W. Michael Weis, e Brazilian Part Politics and the Coup of 1964, de Ollie Andrew Johnson. Essas obras deviam ser traduzidas e publicadas no Brasil.

(Continua na página 8)