Edição nº 661

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 27 de junho de 2016 a 03 de julho de 2016 – ANO 2016 – Nº 661

Em busca da batata
frita mais saudável

Redução de substância nociva ocorre depois
de tubérculo in natura ser tratado com enzima

Além das condenáveis gorduras, a batata frita tem ainda um produto potencialmente tóxico e cancerígeno: a acrilamida. Com efeito, a batata crua é rica em um aminoácido chamado L-asparagina. Quando esse tubérculo é frito, ou mesmo processado a temperaturas mais altas, esse aminoácido reage com açúcares redutores nele presentes, dando origem à acrilamida, através da conhecida reação de Maillard, que confere sabor e aroma aos alimentos fritos, assados e torrados.

Se a acrilamida formada quando certos alimentos são torrados, assados, cozidos ou fritos constitui uma substância tóxica e cancerígena, seria desejável que ela fosse eliminada antes de seus processamentos, embora a mesma reação que leva à sua formação também possa originar paralelamente produtos agradáveis quanto à cor e ao sabor, como no caso da batata frita.

Esse foi o escopo principal da pesquisa desenvolvida pela engenheira de alimentos Fernanda Furlan Gonçalves Dias junto à Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp, orientada pela professora Hélia Harumi Sato, do Departamento de Ciência de Alimentos. E ela efetivamente conseguiu o que pretendia utilizando uma das enzimas L-asparaginases, que catalisam a hidrólise do aminoácido L-asparagina, formando ácido aspártico e amônia. O ácido aspártico não se transforma em acrilamida. Nesse processo em que a batata crua é submetida ao tratamento com a enzima, em que ocorre a transformação do aminoácido L-asparagina, a redução da acrilamida presente na batata frita é de 72%. Trata-se de uma excelente notícia para os consumidores de batatas.

O trabalho desenvolvido é muito mais complexo do que pode ser equivocadamente inferido deste breve resumo. Ele envolveu primeiramente a seleção da melhor enzima fúngica, o estudo para sua efetiva produção, a purificação do produto, certamente a etapa mais complexa e trabalhosa, a caraterização bioquímica do composto obtido e sua aplicação na batata.

Paralelamente, a pesquisadora estudou ainda o efeito da enzima no ataque a células cancerígenas, pois há mais de três décadas as L-asparaginases têm sido utilizadas em tratamentos quimioterápicos de doenças malignas do sistema linfático, tais como leucemia linfoblástica aguda infantil, linfoma, linfossarcoma de Hodgkin e melanossarcoma. Além desse uso clínico, as L-asparaginases têm sido empregadas com êxito na inibição da formação de acrilamida em alimentos amiláceos aquecidos a elevadas temperaturas.

A acrilamida
A acrilamida é considerada como provável carcinógeno em humanos segundo a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer, além de tóxica ao sistema nervoso e reprodutivo em determinadas doses. Em vista disso, a Organização Mundial da Saúde e a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura recomendam a redução de sua concentração em alimentos. Uma publicação, de 2015, da Autoridade Europeia em Segurança Alimentar, mostra que a ingestão de acrilamida aumenta potencialmente o risco de desenvolvimento de cânceres em todos os grupos etários.

Com base no conhecimento dos mecanismos de formação de acrilamida, vários parâmetros relacionados ao seu nível em alimentos já foram investigados, mas os métodos mais eficazes envolvem a remoção de seus precursores como o aminoácido L-asparagina.  Apesar das L-asparaginases revelarem-se promissoras para reduzir o aminoácido L-asparaginase e, consequentemente a acrilamida, a sua aplicação ainda é dispendiosa em comparação com outras estratégias que possam ser utilizadas.  Daí a necessidade de reduzir os custos de produção das L-asparaginases com vistas ao seu emprego na segurança dos alimentos produzidos em países que não são autossuficientes nestas enzimas. A aplicação no Brasil de uma L-asparaginase nativa, sem tecnologia de clonagem, poderia aumentar a possibilidade de reduzir os custos decorrentes da importação dessas enzimas. Frise-se que em alguns países, inclusive o Brasil, apenas a L-asparaginase de Aspergillus oryzae é permitida para utilização em alimentos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Caminho seguido
Diante deste quadro, o caminho seguido pela pesquisa foi o de inicialmente selecionar entre oito linhagens de fungos aquele que se revelasse a melhor produtor de L-asparaginase para, depois, estudar a otimização de sua produção, determinar as características bioquímicas do produto obtido, purificar a enzima a partir do fungo selecionado, para então aplicá-la em batatas cruas para verificar a capacidade de reduzir a formação de acrilamida e, paralelamente, avaliar a L-asparaginase purificada quanto ao potencial antiproliferativo de células tumorais.

Em consequência, o trabalho se iniciou com o estudo da produção de L-asparagina por oito linhagens de fungos Aspergillus, sendo selecionada para a pesquisa a linhagem A. oryzae CCT 3940 devido às características bioquímicas da enzima obtida.

Para comparar a eficácia da redução da enzima obtida com sua versão comercial, amostras de batatas cortadas na forma de cubos foram submetidas à imersão, por 30 minutos a 50 graus Celsius, em três tratamentos: em apenas água destilada, em água destilada com L-asparaginase purificada e em água destilada com a enzima comercial. A L-asparaginase purificada promoveu uma redução de 72% na formação de acrilamida, enquanto que a enzima comercial apresentou 92% de redução em comparação com o sistema controle.

No trato sobre células cancerígenas selecionadas a L-asparagina purificada apresentou atividade antiproliferativa contra várias linhagens de células tumorais humanas sem inibir completamente o crescimento de linhagens não tumorais.

Segundo a autora, os resultados indicam que a enzima L-asparaginase de A.oryzae CCT 3940 possui características bioquímicas e atividades biológicas atrativas para as indústrias de alimentos e farmacêuticas.  

Explicações necessárias
Em relação às células cancerígenas, Fernanda explica que através da administração endovenosa a enzima retira as asparaginas do sangue inviabilizando a sobrevivência das células doentes, enquanto as células sadias têm capacidade de produzi-las para se manterem vivas, o que torna a enzima bem seletiva.

Para teste de eficiência da enzima produzida a pesquisadora, em parceria com o CPQBA, se valeu de uma gama de células tumorais. E de fato, no estudo in vitro, ela conseguiu reduzir e inibir a formação das células doentes.

Em geral os medicamentos utilizam enzimas de origem bacteriana, mas a utilizada por ela é de origem fúngica. Embora as conclusões dependam de maiores estudos, existem indícios da possibilidade de que os medicamentos que utilizassem enzimas de origem fúngica possam produzir menos efeitos colaterais. Estes se manifestam principalmente por causa de uma atividade chamada de glutaminase, pois a enzima bacteriana atua em outro aminoácido chamado glutamina, e quando o faz pode causar alergias e uma série de efeitos colaterais. A enzima empregada pela pesquisadora não apresentou atividade de glutaminase.

Por outro lado, a aplicação da L-asparaginase na batata não afetou os níveis de glutamina, diferentemente do que ocorre com o emprego da enzima comercial utilizada para comparação, embora esta leve à maior redução da acrilamida (92%).

Outra grande vantagem do emprego da L-asparagina é a de não afetar as propriedades sensoriais da batata. A redução da acrilamida poderia ser conseguida em uma batata geneticamente modificada, ou com menor conteúdo de açucares redutores ou com menos L-asparagina, mas isso levaria a um produto de perfil sensorial alterado. Outra alternativa seria fritar a batata em temperaturas e em tempos menores, mas certamente poucos se interessariam por um alimento menos crocante.

Os procedimentos foram realizados em escala de bancada, fazendo-se agora necessário um estudo para mensurar a viabilidade comercial. Para cumprir a etapa seguinte a pesquisadora vai, durante o pós-doutorado, ampliar a escala, passando a utilizar reator de bancada. Destaque-se, ainda, que essa pesquisa básica abre caminho para outros trabalhos que podem conduzir a resultados práticos muito significativos para a indústria de alimentos com vistas a torna-los mais saudáveis.

Fernanda conclui: “Conseguimos selecionar o microrganismo produtor, otimizar sua produção aumentando-a em mais de 200%, purificá-lo, comprovar sua atuação efetiva em batatas fritas reduzindo-lhe em 72% o teor de acrilamida. Ele se mostrou também antiproliferativo quando aplicado em células tumorais como as leucêmicas.  Essas são as duas principais conclusões, embora nosso enfoque maior fosse a redução da formação de acrilamida durante o processamento de alimentos”.

Publicação

Tese: “Produção, caracterização bioquímica e aplicação de L-asparaginase fúngica”
Autora: Fernanda Furlan Gonçalves Dias
Orientadora: Helia Harumi Sato
Unidade: Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA)