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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 08 de agosto de 2016 a 14 de agosto de 2016 – ANO 2016 – Nº 664Não me tens de regresso
Francisco Alves, Orlando Silva, Dick Farney... João Gilberto; ou, quem sabe, Francisco Alves, Orlando Silva... e Nelson Gonçalves? Não, este último nunca sucedeu ninguém no que se convencionou chamar de “linha evolutiva da Música Popular Brasileira”. Ele sequer aparece, pouco citado que é entre teóricos e críticos, apesar do grande sucesso com o público. A voz impostada de Nelson Gonçalves já não agradava a crítica pós-bossa nova (aquela que ajudou a construir uma narrativa sobre a história da Música Popular Brasileira), que coloca o intérprete sem destaque, na prateleira dos grandes cantores que não apresentaram grandes novidades ao cenário da MPB. A análise de como se posicionava a crítica antes e depois do conceito de linha evolutiva, em relação a Nelson Gonçalves, é feita na tese de doutorado “O ‘lado B’ da linha evolutiva: Nelson Gonçalves e a ‘má’ Música Popular Brasileira dos anos 1940 e 1950” de Adelcio Camilo Machado, atualmente docente da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). O pesquisador desenvolveu o trabalho sob orientação do professor José Roberto Zan, no Instituto de Artes (IA) da Unicamp.
A ideia de linha evolutiva é posterior ao aparecimento de Nelson Gonçalves no cenário musical. Em 1966, durante uma entrevista à “Revista Civilização Brasileira”, Caetano Veloso mencionou a necessidade da “retomada da linha evolutiva da Música Popular Brasileira” e, dessa forma, abriu a caixa de pandora. A linha evolutiva que levaria à bossa nova passou a servir como referência não só para a crítica, mas para a historiografia da MPB como um todo. Pesquisadores também se esqueceram, por um bom tempo, daqueles que não se encaixavam nos critérios de evolução. Nelson Gonçalves representava uma continuidade de um projeto estético. Enquanto cantava com voz de locutor, surgia outra maneira de usar a voz em canções, mais próxima da fala, que vai desembocar no jeito de cantar da bossa nova, o que a linha evolutiva considera, de fato, uma evolução.
Uma comparação possível para entender as mudanças de posicionamento da crítica, em relação ao trabalho dos artistas em diferentes épocas, poderia ser feita a partir da leitura de críticas que envolvessem Francisco Alves e Dick Farney, por exemplo. “Nos anos de 1940 e 1950 Francisco Alves seria muito mais valorizado, mas dos anos 1960 em diante, a coisa muda e então Dick Farney se transforma em um grande precursor do que viria a ser a bossa nova. A crítica vai dizer que o canto dele é sofisticado devido ao modelo que foi adotado pela bossa nova. Ou seja, a linha evolutiva constrói um olhar sobre as décadas de 1940 e 1950 que vai negligenciar ou excluir diversos artistas que produziram neste período”, explica o autor da tese.
As distinções de gosto que levam às mudanças de posicionamento foram se alterando por uma série de motivos. A década de 1930 marca o período em que a música popular passa a ser aceita. “Até a década de 1920 as práticas populares como o samba eram reprimidas até policialmente. Na década seguinte, com Getúlio Vargas, inicia-se a construção de uma ideia de nação e consequentemente o samba se torna um dos emblemas da cultura nacional”, salienta. Nas décadas posteriores, de 1940 e 1950, o repertório hegemônico vai se redefinindo. “Formas de jazz moderno ainda são vistas com maus olhos pela crítica musical, mas começam a surgir seus entusiastas. No entanto, a partir da consagração da bossa nova, que faz essa nova síntese entre a música brasileira e música americana, e consegue um grande prestígio, isso se inverte”. Nos anos de 1960, complementa Adelcio, o jazz já é visto como uma música sofisticada, refinada, de bom gosto e que os músicos brasileiros têm que assimilar, para se reinventar.
Até então Nelson Gonçalves vinha de uma linhagem de grandes cantores. Estava lado a lado com Francisco Alves e Orlando Silva, os maiores da época. As gravações eram em 78 rotações, com apenas duas músicas por disco. Quando grava um primeiro disco de vinil, o chamado Long Play (LP), Nelson escolhe músicas de Noel Rosa. “Ou seja, ele também se articulava com esse segmento que era tido como de bom gosto. Suas canções têm inclusive muitos arranjos que vão utilizar o conjunto regional, que é a instrumentação de violão, cavaquinho e pandeiro, ligada a essa tradição do samba e do choro. Ele passa por este repertório”. O autor do estudo lembra que Nelson tinha prestígio, tanto que durante muitos anos manteve contrato com a RCA Victor, a mesma gravadora do Jacob do Bandolim, por exemplo.
Quando surge a bossa nova, Nelson Gonçalves não muda sua maneira de cantar, que perdura até o final da carreira. Em 1959, um ano depois de Chega de Saudade, de João Gilberto, ele lança um disco “com mais qualidade sonora, buscando arranjos com uma sonoridade mais delicada, mas ainda assim cantando de maneira impostada”, afirma o pesquisador sobre o LP Nelson Gonçalves em Hi Fi.
Ideário
A pesquisa de doutorado também contempla os temas abordados por Nelson Gonçalves e seus contemporâneos. Adelcio comparou canções de mesma temática buscando entender os contrastes com os músicos da “zona sul carioca”, que revelariam a segmentação de gostos em curso. “Nelson estava ligado a um certo grupo que tinha relação com determinado ideário, um padrão moral”.
A canção “Meu vício é você”, com letra de Adelino Moreira, cantada por Nelson Gonçalves, tratava uma prostituta com “adjetivos pejorativos”, segundo o pesquisador. A música coloca o homem encantado, mas com uma certa repulsa por uma mulher que trabalha na noite e, portanto, não se adequa aos padrões morais vigentes. Em contraste, uma canção do Tom Jobim que é “Tereza da praia” cantada por Dick Farney e Lucio Alves, apresenta também uma personagem feminina que não se liga a um relacionamento estável, tal qual seria socialmente esperado, mas sem o julgamento moralista de antes, já que eles concluem que Tereza é da praia e “não é de ninguém”.
Da mesma forma em relação ao trabalho, há divergências. No tango “Hoje quem paga sou eu”, Nelson Gonçalves fala sobre a família e a boemia. O trabalho e a família são vistos como sinônimo de felicidade e ventura. Já o botequim leva à ruína do cidadão. Em “Rapaz de bem”, por sua vez, Johnny Alf proclama “No meu preparo intelectual/É o trabalho a pior moral/Não sendo a minha apresentação/O meu dinheiro só de arrumação”. Desse modo, reflete Adelcio, enquanto o repertório de Nelson Gonçalves se mostrava mais próximo a um ideário trabalhista que se difundia entre setores mais populares de sociedade, Johnny Alf se aproximava de concepções ligadas a segmentos economicamente mais favorecidos, que não precisavam se submeter à rotina do trabalho. Diferenças de tratamentos em outras temáticas como a boemia e o rompimento amoroso também foram verificadas.
Para o autor da pesquisa a consagração da bossa nova, especialmente no exterior, articulada a um conceito de modernização do país no governo de Juscelino Kubitschek, foram os principais fatores para a consolidação do que se reconhece como a linha evolutiva e a consequente exclusão de artistas como Nelson Gonçalves. “O que me preocupa como pesquisador é a questão de uma linha evolutiva que acaba organizando uma certa narrativa da música brasileira. Os livros contam essa história, mas se a gente pensar pelo critério de vendagem, por exemplo.... Qual foi o impacto que o Nelson Gonçalves teve na cultura musical daquele período? É uma perda não considerar isso. Embora haja uma seleção em toda escrita da história, é importante que pesquisas sejam feitas para cobrir essa narrativa histórica”.
Publicação
Tese: “O ‘lado B’ da linha evolutiva: Nelson Gonçalves e a ‘má’ Música Popular Brasileira dos anos 1940 e 1950”
Autor: Adelcio Camilo Machado
Orientador: José Roberto Zan
Unidade: Instituto de Artes (IA)