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Villa-Lobos
Para além do nacionalismo
MARIA ALICE DA CRUZ
O
Trenzinho Caipira” é a obra de Heitor Villa-Lobos (1887-1959)
que mais atrai instrumentistas e coralistas mirins e juvenis
50 anos após sua morte. A composição erudita também já ganhou
versão popular por intérpretes de música brasileira. Parte
das Bachianas Brasileiras n. 2, o “Trenzinho” está para estudantes
mirins assim como as Bachianas n. 5 estão para as cantoras
líricas brasileiras. São duas peças importantes para introduzir
a obra de Villa-Lobos na vida de alunos e de bons ouvintes
de música, na opinião de Paulo de Tarso Salles, professor
do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes
da Universidade de São Paulo, doutor pela Unicamp e autor
do livro Villa-Lobos: processos composicionais. Mas a musicografia
deixada por Villa-Lobos, lembra o autor, é mais extensa e
mais rica e está sendo redescoberta depois de muitos anos
fadada, no Brasil, a discursos depreciativos sem fundamentos
teóricos e analíticos.
Fundamentado em análise minuciosa à luz das partituras do
mestre, Salles responde a esses discursos no livro, publicado
pela Editora da Unicamp, mostrando que Villa-Lobos era tão
genial, meticuloso e competente quanto qualquer compositor
moderno de sua época. “Eu abordo mais a questão do Villa-Lobos
como um compositor significativo para a música do século 20.
Enfim, ele é um compositor significativo. A música dele dialogava
com os principais compositores da época, Stravinsky, Webern,
Bartók, Varèse, entre outros”.
Há muita discussão, polêmica
e especulação sobre a qualidade musical, mas somente depois
de 50 anos de sua morte um musicista decide analisar a obra
de Villa-Lobos à luz da teoria musical mais compatível. A
leitura do Villa-Lobos é abordada em uma análise comparativa
de suas partituras com músicos da época como Stravinsky, Bartók,
Schoenberg e Webern. Salles diz que a primeira coisa que salta
os olhos ao analisar a partitura de Villa-Lobos como um musicólogo
é que o compositor carioca é muito diferente do que falam,
como, por exemplo, a afirmação de que ele é apenas intuitivo.
Salles encontrou foi um compositor que planejava. “Villa-Lobos
não tem um estilo único. É preciso grande domínio técnico
para realizar esses diferentes estilos da maneira como ele
fez. O que mostro no livro são processos composicionais que
ele aplicou ao longo de toda a vida, em vários estilos, em
vários meios de expressão”, enfatiza o autor.
Nas diversas obras analisadas,
Salles percebeu técnicas sofisticadas, simetrias, construção
de figuras musicais que permitem o espelhamento do som. A
obra “Uirapuru”, segundo o professor, é uma mostra do rigor
composicional de Villa-Lobos. As partituras mostram que ele
tinha alto domínio das formas musicais.
Outra pontuação feita por Salles está na análise do “Choros
nº 10”, fusão de cantos tribais, blocos carnavalescos e outras
sonoridades. “Lévi-Strauss buscou as estruturas matemáticas
nos mitos dos índios brasileiros. De certa maneira, essa foi
uma das premissas que empreguei para entender a música do
Villa”, revela.
Modernismo
Villa-Lobos foi o primeiro compositor brasileiro a entrar
de corpo e alma no modernismo, e isso, na opinião de Salles,
foi o principal motivo de rejeição a sua obra, por parte de
seus críticos. Ao mergulhar na nova proposta, começou a criar
formas musicais de acordo com o próprio material musical:
cantos de pássaros, canções indígenas, melodias folclóricas,
etc. “Ele compunha usando o material como determinante da
forma”, explica Salles. Em sua primeira viagem a Paris, ele
conheceu a música de Stravinsky, com uma proposta moderna,
e acabou sendo influenciado. “Ele foi muito criticado por
isso, mas as mesmas críticas foram feitas a Stravinsky e todos
os contemporâneos na primeira metade do século 20”.
De acordo com Salles, Villa-Lobos
não teve receio em dialogar com os modernistas. Ao que chamam
de “imitação”, Salles chama de assimilação. Em algumas obras,
segundo o professor, é possível ver a inquietação dele com
coisas que ouvia, assimilava e devolvia à sua maneira, forjada
no Brasil. Essas inquietações são vistas em obras como Choros
nºs 3, 4, 10. “Se ele não tivesse sido genial, teria voltado
frustrado de lá, e talvez não estivéssemos falando dele agora.
Isso demonstra sua inteligência musical para assimilar com
tanta velocidade e habilidade a complexidade stravinskiana”,
acrescenta.
Havia certo preconceito para
com Villa-Lobos por ele ter sido autodidata a maior parte
do tempo e não ter estudado fora do Brasil. Aprendeu os rudimentos
com o pai e uma tia que tocava piano e não formalizou seus
estudos em um conservatório musical. Mas ele conviveu com
grandes músicos da época no Brasil, entre eles Nepomuceno,
Frederico Nascimento, Francisco Braga, Agnello França, mas
como esse currículo não foi oficializado, não recebeu nenhum
diploma de formação musical. “O autodidatismo de Villa-Lobos
sempre foi malvisto, como se a aprendizagem informal fosse
algo fora do comum”, questiona Salles.
O
professor esclarece que Villa-Lobos pode ser considerado até
mesmo “conservador” em suas primeiras obras, nas quais buscou
formas mais clássicas. “Aliás, se ele não conseguisse dominar
sinfonias e sonatas, ele não conseguiria nem mostrar suas
primeiras obras, pois as orquestras eram administradas por
músicos muito exigentes quanto ao domínio das formas clássicas.
As sonatas para violoncelo e piano, as sinfonias nºs 1 a 3
e os quartetos de cordas nºs 1 a 4 jamais seriam estreados
por volta de 1915, se não fossem reconhecidos por seus pares”,
enfatiza.
Certas afirmações feitas por
Villa-Lobos, bem como algumas criações em invenções eram julgadas
com frases como: “Ah, ouviu Stravinsky e está copiando”. Esta
era uma maneira redutora de enxergar seu talento, sendo que
de 1920 a 1950 muitos compositores imitavam Stravinsky em
maior ou menor grau, na opinião do autor. “Ele foi uma influência,
um compositor que marcou época. Foi compositor que mexeu com
a cabeça de jovens compositores da primeira metade do século
20”, enfatiza. Ao partir para a modernização mais radical
dos “Choros”, veio à baila a afirmação de que não tinha técnica
suficiente. “Mas olhando as partituras, pode-se constatar
que não se tratam de ‘chutes’. Imitação? Observação consciente,
ele analisava elementos de Stravinsky e incorporava em sua
música. A obra de Villa-Lobos revela profundo sentido analítico”,
esclarece.
A ausência de um pensamento
teórico-musical “moderno” no país pode ser o motivo pelo qual
Villa-Lobos fosse incompreendido por seus compatriotas, de
acordo com Salles. O que acontece é que enquanto na Europa
havia uma mediação teórica que possibilitou uma leitura crítica
dessa nova musicalidade, no Brasil essa discussão era ainda
incipiente, mais voltada para a questão da identidade nacional.
“Mas o Brasil não cultiva a teoria como um princípio saudável”.
Mesmo nos cursos de graduação
em música, apesar de algumas obras de Villa-Lobos serem muito
executadas, segundo Salles, os alunos não são estimulados
a analisar suas partituras por falta de referências bibliográficas.
Salles informa que existem alguns textos escritos por Lorenzo
Fernandes, em 1946; um pequeno livro de Souza Lima sobre a
obra pianística do maestro, publicado em 1970, e até uma obra
de Adhemar Nóbrega sobre seus “Choros”, mas nenhuma delas
se propõe a realizar uma análise detalhada das partituras.
Invariavelmente, se observa
a desconfiança, por parte dos próprios músicos, de que o melhor
de Villa-Lobos não está em sua música, mas nas anedotas, no
exotismo, no folclore, o que torna problemática sua apreciação
como um compositor “de verdade”. Curiosamente, são os músicos
populares que se adiantaram nessa apreciação que transparece
em certas canções de Tom Jobim, Edu Lobo e Chico Buarque,
sem falar nos trabalhos de Egberto Gismonti e Hermeto Pascoal.
As gerações nacionalistas de Camargo Guarnieri e Mignone,
e os modernistas Willy Correia e Gilberto Mendes relutaram
em reconhecer a obra villalobiana, mas Gilberto Mendes foi
talvez, posteriormente, um dos primeiros nomes da vanguarda
a valorizar os procedimentos composicionais de Villa. Willy
só se retratou em entrevista concedida ao O Estado de S. Paulo
em 2008.
A música de Villa-Lobos é
bastante executada em alguns países da Europa. A Orquestra
Sinfônica da Rádio de Stuttgart gravou a integral de suas
12 sinfonias, regidas por Carl St. Clair. Salles conta que
em festivais internacionais de violão, é possível ver instrumentistas
de várias nacionalidades se apresentando com obras de Villa-Lobos.
“Hoje, a música dele é largamente executada, tanto no Brasil
quanto internacionalmente”, esclarece. No final de novembro,
o professor, ao lado do maestro Gil Jardim, foi convidado
pelos professores Giorgio Monari, da Universidade Sapienza
e Rafaelle Pozzi, da Universidade Roma Tre, para participar
de um Congresso Villa-Lobos realizado em Roma, onde teve a
satisfação de ver a obra villalobiana sendo executada por
bons músicos italianos. E houve ainda um importante debate
sobre questões interpretativas e analíticas: “Max Noubel,
professor de Análise Musical da Universidade de Dijon e do
Conservatório de Paris, mostrou conhecer profundamente a obra
do maestro”, declarou.
Rejeição
O próprio Salles foi vítima da rejeição à obra de Villa-Lobos.
Ao tentar ingressar no curso de música de uma universidade
pública paulista, foi recusado por tocar violão e, principalmente,
Villa-Lobos. “Foi um período de rejeição a tudo que parecia
ser nacionalista”, explica. Salles acrescenta que pelo oportunismo,
pela figura meio mítica que o próprio maestro criou, a qualidade
composicional deixou de ser avaliada.
A aliança com Getúlio Vargas,
o aproveitamento de aspectos exóticos e políticos, acusações
de aproveitamento de temas alheios, como os de Stravinsky
e dos chorões são críticas habitualmente feitas a Villa-Lobos,
segundo Salles.
Para o professor da USP, houve
a necessidade de forjar uma identidade nacional no Brasil,
no início do século XX. Em 1928, foi criada a primeira escola
de samba no país, no âmbito dessa discussão do que determinaria
o caráter essencialmente nacional. “A construção da identidade
do povo brasileiro aconteceu nesta época. Acho que Villa-Lobos
viveu isso e chamou para si essa missão, talvez pela necessidade
de ele próprio se inserir, se sustentar, estabelecer conexões.
Acredito que não havia na época outra maneira de estabelecer
diálogo se não fosse por intermédio dos meios que ele adotou”,
sugere Salles.
Prova de fogo
Prova de habilidade foi dada em Nova York, quando um jornalista
desafiou Villa-Lobos a compor uma música, em poucos minutos,
a partir de uma fotografia de um arranha-céu. Em pouco tempo,
nasceu a “New York Skyline Melody”.
A composição a partir de imagens
também foi um marco na carreira do artista. O compositor francês
Olivier Messiaen afirma no “Tratado de Ritmo e Ornitologia”,
que aprendeu com Villa-Lobos a construção desses ritmos “minerais”,
como ele chama a composição de Villa-Lobos, inspirada em montanhas.
A partir de então, Messiaen compôs uma série de obras baseadas
nas montanhas dos Alpes, onde costumava passar as férias.
“No Brasil, este método, não
é considerado algo importante”, explica Salles. Mas ele acrescenta
que Villa se revela meticuloso principalmente nessas obras,
em que num papel milimetrado, ele coloca no eixo vertical,
a altura das notas, e no eixo horizontal, o ritmo. “Com esse
método Villa-Lobos compôs a Sinfonia nº 6, baseada nas montanhas
do Rio de Janeiro”, onde, em 1887, nascia o tão sonoro gênio
da música erudita brasileira.
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