| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Enquete | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 203 - 17 a 23 de Fevereiro de 2003
.. Leia nessa edição
.. Comentário
.. Inveja Saudável
.. Biomassa da cana
.. Retórica nacionalista
.. Oportunidades
.. 40 anos da FCM
.. Combate à dengue
.. Do torno ao trono
.. Charlotte diretora do IEL
.. Teses da Semana
.. Unicamp na imprensa
.. Acesso às bolsas
.. A geologia
 

Zeferino, quem diria, se opôs à idéia de uma escola médica em Campinas

Criação da FCM custou 15 anos de luta

EUSTÁQUIO GOMES

Poucos sabem que o projeto de instalação da Faculdade de Ciências Médicas, embrião do projeto maior de Zeferino Vaz - a Unicamp -, teve um poderoso inimigo durante muitos anos: o próprio Zeferino Vaz. Na década de 1950, Zeferino era diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, que ele próprio criara em 1951, e se opôs à reivindicação dos campineiros. Homem influente nas esferas de decisão sobre assuntos de educação superior no Estado, Zeferino tinha preferência por outras cidades e, entre 1956 e 1963, interpôs toda sorte de dificuldades à realização do sonho dos campineiros.

A campanha pela instalação de uma faculdade de medicina na cidade começou em 1946, nas páginas do jornal Diário do Povo, onde pontificava o editor e poeta Luso Ventura. Até meados da década de 1950, Luso já havia escrito mais de 200 artigos sobre o assunto. Seus argumentos eram um reflexo bem apanhado do anseio dos médicos da cidade e das famílias que tinham filhos cursando escolas de medicina em outros centros. Se Ribeirão Preto, que era uma cidade de menor porte e menos importante economicamente, tinha o privilégio de ter uma faculdade de medicina, por que não também Campinas?

Zeferino, um pioneiro do ensino médico no interior paulista, achava que a rota de interiorização devia passar por outros caminhos: "Sou a favor de uma nova escola de medicina no interior, mas não em Campinas", dizia. Paulo Mangabeira Albernaz, campineiro de velha cepa e professor da Escola Paulista de Medicina, respondeu ironicamente: Zeferino era contra porque a criação de uma escola médica do mesmo padrão em Campinas viria matematicamente prejudicar a sua, "não só porque Campinas é uma capital como também por ser um dos maiores centros médicos do Brasil".

O ressentimento dos campineiros concentrou em Zeferino todos os desgostos que tinham tido até ali com sucessivos governos estaduais e com catedráticos da USP que detinham, na época, o controle do ensino superior no Estado. Estava nas mãos dessa universidade pública - única do Estado, à época - o principal instrumento que autorizava ou recusava a abertura de novos cursos ou faculdades: o Conselho Estadual de Ensino Superior, precursor do atual Conselho Estadual de Educação. Enquanto os governos criavam no papel um sem-número de faculdades para agradar a seus currais eleitorais, o Conselho se encarregava de impedir que elas se instalassem desautorizando seu início de funcionamento. Esse expediente foi usado no governo de Lucas Nogueira Garcez, tornou-se rotina no período Jânio Quadros e consagrou-se nos períodos Carvalho Pinto e Ademar de Barros.

Zeferino queria que a nova escola de medicina
fosse instalada em Botucatu, não em Campinas


Em 1955, os campineiros se organizaram para tentar romper o círculo vicioso. O recém-criado Conselho de Entidades de Campinas - uma organização que reunia as associações de classe e clubes de serviços da cidade - tomou a peito a orquestração de uma campanha para forçar Jânio Quadros a cumprir a promessa feita por seu antecessor. Durante três anos, Jânio fez ouvidos surdos ao clamor que vinha de Campinas. Em 1958, encontrou uma forma de serenar os ânimos dos campineiros recriando no papel a escola requisitada por eles mas, ao mesmo tempo, "premiando" três outras cidades - Catanduva, São José do Rio Preto e Botucatu - com promessa idêntica. Ou seja, de austero passava a magnânimo; porém nem tanto: em paralelo criou uma comissão para analisar as condições específicas de cada uma das quatro cidades. Os campineiros logo compreenderam que se tratava de um "leilão" em que poderiam não dar o último lance. Tiveram certeza disso quando Jânio, sem consultar ninguém, confiou a presidência da comissão a Zeferino. Para Albernaz, foi como entregar o galinheiro aos cuidados da raposa. "Zeferino vai fazer o jogo de Botucatu", disse.

Não demorou muito para que os receios de Albernaz se confirmassem. Jogo ou não, em abril de 1959 a comissão entregou ao governador um relatório que rejeitava as pretensões de Campinas e concluía com um parecer favorável a Botucatu - "por motivos técnicos, morfológicos e econômicos". No entender de Zeferino, era uma questão de lógica que uma nova escola de medicina no interior paulista deveria situar-se no lado oposto a Ribeirão Preto, onde já existia uma. Além disso, das quatro cidades candidatas, Botucatu era a única das candidatas a possuir hospital próprio, com capacidade para 700 leitos, além de ser "boca de sertão".

Albernaz contestou com ironia: "É simplesmente incrível essa história de motivos morfológicos. Se se tratasse da Brigitte Bardot ou da Lollobrigida, vá lá. Mas trata-se de uma cidade. Os motivos técnicos quais seriam?". E depois de elencar todos os fatores favoráveis a Campinas, já então uma metrópole com 300 médicos, 40 mil estudantes de todos os graus e dezenas de bibliotecas, enumerou as dificuldades que Botucatu teria em todos os sentidos, até mesmo para conseguir cadáveres para as aulas de anatomia e dissecação. Zeferino apanhou como um felino o argumento dos cadáveres e acusou Albernaz de atraso científico: "Essa mentalidade cadavérica de ensino já está encerrada há 20 anos". O médico campineiro ofendeu-se: "Falou o parasitólogo, grande autoridade em mosquitos e carrapatos".

O fato é que, no fim da década de 50, Botucatu tinha a sua faculdade de medicina e Campinas, não. Em todos os círculos da cidade onde a idéia alguma vez teve curso, Zeferino passou a ser considerado persona non grata. No ano seguinte, ao tomar posse da presidência da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Campinas, o patologista Roberto Franco do Amaral elegeu o projeto da faculdade como sua prioridade número um. O Conselho de Entidades foi revitalizado e uma nova campanha colocada em marcha. Criou-se uma estrutura com organograma e plano de ação bem-definidos. No topo havia uma coordenação geral que tinha à frente, além de Franco do Amaral, o engenheiro Eduardo Barros Pimentel, delegado da Fiesp na cidade, o presidente da Associação Comercial e Industrial de Campinas Ruy Rodriguez e o presidente da associação local dos funcionários públicos, Ary de Arrruda Veiga. Abaixo deles vinham 86 "combatentes" que foram distribuídos em 11 grupos de trabalho cujos líderes foram denominados "generais". Cada grupo tinha uma tarefa a cumprir de acordo com o plano geral, que era a de formular estudos jurídicos e financeiros para a instalação da faculdade, fazer o levantamento socioeconômico da região, estabelecer contatos políticos, promover o tráfico de influência e realizar palestras de convencimento. A propaganda foi considerada um capítulo importante e urdiu-se uma linguagem de frente de batalha. O próprio arcebispo de Campinas, Dom Paulo de Tarso Campos, cunhou um bordão que depois os jornais repetiriam à larga: "Não é Campinas que precisa de uma faculdade de medicina, mas a medicina que precisa de uma faculdade em Campinas".


"Se preciso, vamos sacudir no nariz
do governo as cifras da arrecadação municipal"


A certa altura da campanha, o governo já não tinha como responder aos argumentos dos campineiros, cujos relatórios técnicos eram impecáveis. Na reunião de 14 de março de 1961, diante de 56 "generais", Albernaz discursou: "Se preciso, vamos sacudir no nariz do governo as cifras da arrecadação municipal". Luso, de sua tribuna, proclamou: "Está superada a fase dos debates. Já estamos empenhados na instalação".

Em dezembro, Carvalho Pinto mudou de rota. Retirou Zeferino do caso e nomeou um seu antípoda, o reitor da USP Antônio Barros de Ulhoa Cintra, para chefiar um novo grupo de trabalho com a missão de estudar a criação de "um núcleo universitário em Campinas". Ele resolvera dar aos campineiros um presente muito maior do que haviam pedido: acenou-lhes com a promessa de uma universidade inteira.

Assim, em 28 de dezembro de 1962, assinou o decreto que criava a Universidade Estadual de Campinas. De concreto, por ora, ganhava-se uma faculdade de medicina. Uma universidade, ainda que no papel, precisava de um reitor: foi prontamente nomeado o fisiologista Cantídio de Moura Campos, ex-diretor da Faculdade de Medicina da USP e ex-secretário da Educação do Estado. E a faculdade nela embutida precisava de um diretor. Para ocupar o cargo foi designado o oftalmologista Antônio Augusto de Almeida.

A partir daí as coisas andaram depressa. A faculdade foi autorizada a funcionar provisoriamente nas dependências de um hospital, a Maternidade de Campinas. Em fevereiro de 1963 era contratado seu primeiro docente, o biólogo Walter August Hadler, que assumiu a cadeira de histologia e embriologia. O primeiro vestibular, realizado em abril, atraiu 1.592 candidatos para o preenchimento de 50 vagas. Formou-se um conselho de curadores e, em 20 de maio, o reitor da USP, Ulhoa Cintra, veio de São Paulo para dar a aula inaugural.

E Zeferino? Não precisou esperar muito para voltar à cena. E o fez em grande estilo, dois anos depois, como um visionário dotado de forte pragmatismo. No final de 1965, os campineiros muito se surpreenderam quando o governo do Estado, resolvido a implantar a universidade prometida, confiou a execução do vasto projeto a ninguém menos que Zeferino Vaz; que, claro, agarrou a oportunidade com as duas mãos e fez dela o que hoje se vê - uma das principais instituições de ensino superior e de pesquisa da América Latina, se não do Hemisfério. Mas esta é outra história.

Leia mais:

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2003 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP