CLAYTON LEVY
Robin Hood tirava dos ricos para
dar aos pobres. Com esse projeto, o governo irá
tirar da classe média para dar aos banqueiros.
As frases, ditas sem hesitação, não
saíram da boca de um parlamentar de oposição
ao governo, mas de um ideólogo e economista
de esquerda. Wilson Cano, professor do Instituto
de Economia da Unicamp, autor de livros traduzidos
para o espanhol e o francês, entre os quais
se destaca um estudo monumental, Soberania e política
econômica na América Latina (2001), tem
sido um crítico incansável do projeto
da reforma da Previdência encaminhado ao Congresso
pelo governo, e ora em começo de tramitação
na Câmara. Graças aos artigos que têm
publicado a respeito em jornais e revistas, Cano
tem se transformado numa espécie de consciência
crítica da esquerda. E sua visão não
é das mais otimistas: ele acha que, se o projeto
passar como está, o prejuízo para o
setor público e sobretudo para as universidades
será incalculável.
-------------------------------------------
JU - O senhor assinou o
programa do PT elaborado em 2001 e no entanto tem
discordado enfaticamente da reforma da Previdência
em tramitação no Congresso. Por quê?
|
“As
instituições públicas estão hoje, novamente, com
um número significativo de pedidos de aposentadoria
porque as pessoas estão com medo” |
Cano - Por várias
razões. Primeiro, pela própria forma
como ela foi colocada. Os aposentados e as pessoas
que estão prestes a se aposentar tomaram um
susto. Assim como o governo passado, próximo
a 98, também deu um tremendo susto e provocou
não só uma instabilidade nas pessoas
mas também uma corrida às aposentadorias.
As instituições públicas estão
hoje, novamente, com um número significativo
de pedidos de aposentadoria porque as pessoas estão
com medo. Em segundo lugar, a forma como isso foi
divulgado. O governo anunciou um déficit de
75 bilhões de reais na previdência mas
não qualificou esse buraco.
JU - O senhor tem
contestado esses números e afirma que, ao contrário,
a seguridade social é superavitária.
Por quê?
Cano - Daqueles 75
bilhões, 17 constituem o chamado déficit
do INSS, que nada tem a ver com o do funcionalismo
público, e sim com os trabalhadores privados.
Dos 58 bilhões restantes, há um déficit
de 35 bilhões no âmbito federal e o restante
se refere aos estados e municípios. Dada a
diferença dos problemas envolvidos, não
se pode pôr tudo num saco só. Ou foi
uma tática errada do governo, uma desatenção,
ou foi justamente para jogar na opinião pública
a idéia de que os gastos com funcionários
públicos causam prejuízo à nação,
o que não é verdade, porque o déficit
de 75 bilhões não se refere apenas aos
funcionários públicos.
JU - O senhor poderia detalhar
melhor os cálculos que revelam o superávit
da seguridade social?
Cano - Você tem
um orçamento da seguridade social que no ano
passado deu um superávit de 36 bilhões.
São as contribuições criadas
para lastrar o orçamento da seguridade social
(principalmente a CSLL, Cofins e CPMF), que têm
que financiar os gastos com a saúde pública,
previdência e assistência social. Está
na Constituição que o uso desse dinheiro
é para a seguridade social. Dado que suas receitas
têm superado os gastos com aqueles itens, então
não se pode falar em déficit da seguridade
social. É uma inverdade. Mas eu convido as
pessoas a olharem o que aconteceu com o INSS nesses
anos todos. Subiu a taxa de desemprego no país,
o rendimento médio do trabalhador caiu mais
de 10%, o mercado de trabalho foi precarizado. É
evidente que isso só poderia se refletir numa
diminuição da arrecadação
do INSS. Só que ninguém tem culpa disso.
Quem tem culpa disso é o governo, que praticou
uma política econômica de crescimento
débil.
JU - Num trabalho publicado
recentemente, o senhor diz que o déficit de
17 bilhões da Previdência Geral (INSS)
alegado pelo governo poderia ser transformado num
superávit de 28,5 bilhões. Como?
Cano - Lembraria uma
série de mazelas que existem e que são
muito pouco tocadas, mas que temos que discutir. Uma
primeira decorre da péssima administração
que o INSS faz de seu patrimônio, o qual, em
inúmeros casos, tem seus imóveis alugados
a particulares, a preços vis. Por outro lado,
estima-se uma renúncia fiscal de cerca de R$
10 bilhões, em função da forma
de pagamento atribuída às micro e pequenas
empresas, assim como às isenções
(ou sonegação não combatida)
a entidades filantrópicas, clubes esportivos,
e outros. O que constitui verdadeiro absurdo num governo
que quer combater o déficit. Se isso fosse
cumprido com sucesso, nosso déficit
cairia dos R$ 17 bilhões para apenas R$ 7 bilhões.
Por outro lado a Constituição Federal
de 1988, acertadamente, corrigiu uma injustiça
social que era a inexistência de qualquer rendimento
para milhões de idosos urbanos e rurais, que,
embora tivessem trabalhado durante a maior parte de
suas vidas, jamais contribuíram para o INSS,
devido à informalidade de suas ocupações.
Estes pagamentos (R$ 14,3 bilhões em 2002)
deveriam ser caracterizados como de assistência
social, no orçamento da seguridade social e
não como aposentadorias ou pensões,
no do INSS. Com o que nosso déficit,
já reduzido a 7 , se transformaria em superávit
de 7,3 bilhões. Em terceiro lugar, a Associação
dos fiscais da Previdência estima uma dívida
acumulada de empregadores públicos e privados
da ordem, hoje, de R$ 160 bilhões. Se fosse
reforçada a cobrança da parte (digamos,
50%) efetivamente devida, essa importância,
colocada aos juros da SELIC que incidem sobre os títulos
federais - tão prazerosamente brindados aos
bancos - renderia ao INSS a respeitável soma
anual de R$ 21,2 bilhões, e, apenas para um
exercício de cálculo, nosso superávit
alcançaria, agora, R$ 28,5 bilhões.
JU - O senhor acha então
que a reforma deveria começar dentro do próprio
governo?
Cano - Começar
por dentro, organizar o serviço de cobrança.
Eu, por exemplo, fiquei um ano na prefeitura de Campinas,
ajudando o Toninho (Antonio da Costa Santos, prefeito
de Campinas assassinado em setembro de 2001), tentando
organizar uma junta de conciliação com
o INSS para elucidar coisas que eu tenho certeza absoluta
que a prefeitura não deve. São R$ 300
milhões. Ela está sendo cobrada na justiça.
Falei com dois ministros. Não adiantou nada.
É uma dívida tola porque foi um erro
crasso da fiscalização do INSS ao examinar
as contas da prefeitura. Isso mostra uma organização
extremamente precária da Previdência.
JU - O senhor diz que o
déficit da Previdência pública
federal também seria menor do que os números
apregoados pelo governo. Por quê?
Cano - Existe um déficit
da Previdência pública federal? Nesse
último trabalho que publiquei incluí
uma tabela mostrando que os gastos totais (o déficit
apregoado) montam em R$ 35 bilhões. Contudo,
se deduzirmos as contribuições dos funcionários,
da ordem de R$ 4,05 bilhões, o déficit
já baixa para R$ 30,9 bilhões e, se
o governo cumprisse com sua obrigação
legal e pagasse sua contribuição patronal,
chegaríamos a um déficit efetivo de
R$ 22,8 bilhões. Veja a diferença entre
o apregoado e o efetivo. Contudo, cabe uma primeira
discussão: se o governo pretende tratar os
militares ou qualquer outro segmento do funcionalismo
como caso especial, diferenciando-os dos
demais, não é justo que seu déficit
específico, de cerca de R$ 9,9 bilhões,
faça parte do déficit do funcionalismo
em geral. Seria uma política de atenção
especial, e não geral. Assim sendo, vamos retirá-lo,
com o que o montante final se reduziria ainda mais,
para R$ 12,9 bilhões.
JU- Além do aumento
da idade mínima para 60 e 55 anos, o projeto
fixa uma base de cálculo da aposentadoria levando
em conta o histórico contributivo, o que na
essência é o fim da integralidade e uma
redução substancial dos proventos. Qual
o impacto econômico disso para os servidores
públicos?
“No
INSS o aumento do teto irá trazer uma arrecadação
adicional. Só que será cobrada daqui a 28 anos.
Se você não converter isso em títulos capitalizáveis
do governo, daqui a 28 anos você terá um novo
buraco na Previdência” |
Cano - Vou dizer com
dados o que irá acontecer. Em primeiro lugar
as viúvas dos funcionários já
irão sofrer um corte de 30% no seu rendimento.
Há alguns pontos a discutir, mas o governo
não está respeitando a transição
dada pela Emenda 20 (idade mínima de 48 anos
para mulher e 53 para homens). Ele está dizendo
assim: quer se aposentar, aposenta, mas eu te
desconto 5% em cada ano que você não
trabalhar, o que dá 35%. Naturalmente,
ninguém vai ser louco de se aposentar nessas
condições. Se se aposentasse, perderia
esses 35%, sobrando 65%, e a viúva iria receber
70% do que sobrou. Além disso, está
sendo introduzido o conceito de salário médio
de contribuição. Pela proposta do governo
será feita uma média estatística
de todos os salários com contribuição.
Se você entrou para o governo como advogado,
economista ou médico, com salários razoáveis
desde o início, a perda é menor. Mas
se você começou de baixo, iniciando a
carreira em postos mais inferiores através
de vários concursos, resulta que você
não irá se aposentar com o seu salário
atual e sim com a média das suas contribuições.
Isso pode dar um deságio de até 30%.
Haverá um empobrecimento da classe média.
O governo se arrisca a ser um Robin Hood às
avessas. O Robin Hood tirava dos ricos para dar aos
pobres. Com esse projeto, o governo irá tirar
da classe média para dar aos banqueiros. Isso
que está sendo proposto nada mais é
do que gerar mecanismos para manter o superávit
fiscal elevado para garantir o pagamento de juros
da dívida pública.
JU - Que impactos essa política pode gerar
na economia?
Cano - A diminuição
do salário médio no futuro evidentemente
irá diminuir a capacidade de consumo. E a insegurança
que o trabalhador passará a sofrer irá
levá-lo a medidas de precaução.
Você não irá mais gastar como
antes. Isso significará um rebaixamento do
padrão de vida.
JU - Então, quem
sai ganhando com essa política?
Cano Boa pergunta.
No INSS o aumento do teto irá trazer uma arrecadação
adicional. Só que será cobrada daqui
a 28 anos. Se você não converter isso
em títulos capitalizáveis do governo,
daqui a 28 anos você terá um novo buraco
na Previdência. Então isto que está
sendo feito na verdade não é aumento
da arrecadação. Na Previdência
pública federal, a eventual cobrança
dos inativos poderá diminuir um pouco o d´´eficit,
mas não expressivamente. Recentemente fiquei
escandalizado ao ler nos jornais que o ministro José
Dirceu afirmou que os aposentados federais estão
consumindo 40 bilhões enquanto os gastos sociais
estariam em apenas 7 bilhões de reais. Então
eu não entendo: se o governo quer a imagem
de um dragão (o funcionalismo) para facilitar
a aprovação do projeto, ou sua assessoria
é tão ruim que é incapaz de ler
o orçamento da República. Não
tenho o orçamento fechado de 2002, mas em 2001
os gastos sociais somaram 171 bilhões, incluindo
a Previdência, segundo o IPEA. Em 2002 esses
gastos foram iguais ou um pouco maiores. Então,
como ele pode falar em 7 bilhões? É
para jogar na opinião pública uma pressão
para agilizar a aprovação da reforma
no Congresso.
Próxima
página...