A VIDA É O LIXO
Catadores tiram seu sustento
da coleta
seletiva, com muita honra
TATIANA
FÁVARO
uando
chegou a Campinas, há sete anos, a professora
Cleci Schalemberger Streb - hoje doutoranda da Unicamp
- ficou assustada. Primeiro, porque dentro dela
se iniciava o conflito entre a cultura da pequena
São Pedro do Sul (cidade de 13 mil habitantes
do interior do Rio Grande do Sul) e os costumes
de Campinas, também interiorana, porém
sustentadora de eterno ar aristocrático.
Segundo, porque não conseguiu emprego com
o certificado de conclusão do magistério
e teria que batalhar muito para continuar a estudar
- meta sempre priorizada por seus pais, o pedreiro
Artur Streb e a faxineira Neuci. Terceiro, porque
via na cidade hábitos que, em sua casa, em
meio a mais sete irmãos, seriam certamente
classificados como desperdício.
As
raízes de Cleci a levaram ao caminho do estudo
das ciências sociais, no qual se graduou.
Intrigada com a insistência da maioria das
pessoas à sua volta em acreditar que qualidade
de vida era sinônimo de quantidade de bens
consumidos, Cleci optou por estudar o tema Campinas,
Cidade Saudável quando ganhou em 1998,
último ano da graduação, uma
bolsa para iniciação científica.
Foi aí que tudo começou: sua vida
de pesquisadora, o envolvimento com questões
ambientais e a ansiedade por responder a perguntas
que fazia a si própria, como saber o motivo
de tanto objeto de valor ser jogado no lixo.
Em
1999, a interdisciplinaridade do Departamento de
Planejamento de Sistemas Energéticos da Faculdade
de Engenharia Mecânica (FEM) da Unicamp permitiu
que Cleci desenvolvesse sua tese de mestrado, mostrando
o viés social da coleta informal de lixo
em Campinas. A pesquisa abraçou ainda a análise
da perspectiva da redução do consumo
de energia elétrica e a melhoria da qualidade
de vida, ambas a partir da reciclagem de resíduos
sólidos. Pode parecer egocentrismo
de uma cientista social, mas com relação
ao lixo o que mais me preocupa é a questão
social. A forma como a sociedade se relaciona com
a produção, o consumo e o descarte
dos resíduos, afirma Cleci, que tem
a redução da produção
de lixo como tema de sua tese de doutorado.
Energia
- Apesar de ser classificado como novo por muitos
especialistas, o estudo energético é
intrínseco à reciclagem, principalmente
num momento em que a ameaça de desabastecimento
de energia e as políticas de racionamento
são assunto em voga em todo o país.
Cleci salienta que a produção de energia
elétrica ainda é extremamente degradante
ao meio ambiente. O resultado da dissertação
mostra que a quantidade de energia evitada com a
reciclagem é significativa, observa.
O que se deixa de consumir entre o processo produtivo
primário e a reciclagem é a energia
evitada. Os materiais estudados - plástico,
alumínio e metal - caracterizam o processo
produtivo por consumir muita energia elétrica,
comenta a pesquisadora.
Segundo
informações do Compromisso Empresarial
para Reciclagem (Cempre), para se processar uma
tonelada de papel são consumidos 5 MWh de
energia elétrica, enquanto na reciclagem
o consumo é de 1,5 MWh. Quando se fala em
alumínio, a diferença é de
15 MWh na produção primária
para 0,75 MWh na reciclagem. Se pensarmos
em uma latinha, não é nada, mas o
montante todo no Brasil é brutal, avalia
Cleci.
A pesquisadora não condena o fato de os catadores
de lixo ignorarem a relação entre
lixo e redução do consumo de energia.
Os catadores têm na ponta da língua
o discurso sobre a importância da população
contribuir para melhorar o meio ambiente. Mas você
os vê furiosos quando diminui a quantidade
de material na rua. Por isso eu digo que a questão
energética, apesar de intrínseca ao
tema, fica em segundo plano diante do viés
social.
Qualidade
de vida - Ao falar sobre coleta informal de lixo
e redução do consumo de energia a
partir da reciclagem de resíduos sólidos,
a pesquisadora não poderia dissociar o tema
de seu objeto de estudo. Quando menciono a
qualidade de vida do catador no meu trabalho, não
posso dizer que a condição é
satisfatória, pois ele sente vergonha em
fazer o que faz, observa.
A
idéia pré-concebida de Cleci, de os
catadores serem pessoas miseráveis, deu em
poucas semanas lugar à vontade de conhecer
a classe de trabalhadores informais a fundo. Cleci
dividiu os catadores em duas categorias - a dos
moradores de rua e a de pessoas que perderam o emprego
e resolveram recolher lixo reciclável a fim
de defender algum dinheiro para sustento próprio
e da família. Em sua tese, estudou o segundo
grupo. E restringiu o estudo ao distrito de Barão
Geraldo, numa pequena mostra de como a coleta informal
vem ganhando fôlego nos últimos tempos.
Eles estão em situação
péssima se pensarmos em satisfação
pessoal, mas a condição de trabalho
não é muito diferente daquela do gari,
da doméstica, funções em que
se trabalha muito. Isso quando se trata de desempregados
que se transformaram em catadores, os quais estudei.
Existe o catador que mora na rua, aí a condição
de miserabilidade é maior. Mas em ambos os
casos é notório o valor que se dá
ao lixo, comenta.
Ideal
- Pode parecer uma visão contraditória,
mas a coleta informal, como existe hoje, não
deveria existir, diz a pesquisadora. No
início do estudo, tive idéia de que
os coletores eram analfabetos, miseráveis.
Mas ali tem gente graduada, tem músico...
e por isso eu falo que não adianta só
criarem condições de desenvolvimento
desse trabalho, se o que eles querem é deixar
de ser catadores, avalia. A pesquisadora sugere
um modelo ideal de gestão dos resíduos,
embora ela própria reconheça como
distante demais da cultura brasileira. A base é
um termo absorto para muitos: responsabilidade.
Hoje a gente sabe que existe o lixo perigoso
e o lixo fonte de renda. Mas ainda falta
uma conscientização: a de que o lixo
é responsabilidade de quem o produz. As pessoas
precisam levar seu lixo até determinado ponto
e lá sim existir gente que cuide desses resíduos,
dentro de uma atividade regulamentada, com condições
mínimas de segurança e devidamente
remunerada, idealiza.
Cleci
não recrimina a atividade informal. Sabe
que as pessoas são movidas por necessidades.
E que os anseios do ser humano são impostos
principalmente pelo modelo de sociedade em que está
mergulhado o mundo. Do convívio com
os catadores foi o que me marcou: eles não
querem ser o que são. E isso me lembra um
professor da Universidade de Viçosa afirmando
que as soluções para isso já
existem. O problema é convencer a sociedade
de que é preciso mudar, comenta. Até
porque, vai ser necessário ensinar as pessoas
a transformarem seus hábitos. Ensinar uma
sociedade que tem algumas informações,
mas nenhuma formação ambiental.
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