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Campinas, maio de 2001 - ANO XV - N. 162.........
     
   
 
     
 
RECICLAGEM
 


A VIDA É O LIXO
Catadores tiram seu sustento da coleta
seletiva, com muita honra

TATIANA FÁVARO

uando chegou a Campinas, há sete anos, a professora Cleci Schalemberger Streb - hoje doutoranda da Unicamp - ficou assustada. Primeiro, porque dentro dela se iniciava o conflito entre a cultura da pequena São Pedro do Sul (cidade de 13 mil habitantes do interior do Rio Grande do Sul) e os costumes de Campinas, também interiorana, porém sustentadora de eterno ar aristocrático. Segundo, porque não conseguiu emprego com o certificado de conclusão do magistério e teria que batalhar muito para continuar a estudar - meta sempre priorizada por seus pais, o pedreiro Artur Streb e a faxineira Neuci. Terceiro, porque via na cidade hábitos que, em sua casa, em meio a mais sete irmãos, seriam certamente classificados como desperdício.

As raízes de Cleci a levaram ao caminho do estudo das ciências sociais, no qual se graduou. Intrigada com a insistência da maioria das pessoas à sua volta em acreditar que qualidade de vida era sinônimo de quantidade de bens consumidos, Cleci optou por estudar o tema “Campinas, Cidade Saudável” quando ganhou em 1998, último ano da graduação, uma bolsa para iniciação científica. Foi aí que tudo começou: sua vida de pesquisadora, o envolvimento com questões ambientais e a ansiedade por responder a perguntas que fazia a si própria, como saber o motivo de tanto objeto de valor ser jogado no lixo.

Em 1999, a interdisciplinaridade do Departamento de Planejamento de Sistemas Energéticos da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) da Unicamp permitiu que Cleci desenvolvesse sua tese de mestrado, mostrando o viés social da coleta informal de lixo em Campinas. A pesquisa abraçou ainda a análise da perspectiva da redução do consumo de energia elétrica e a melhoria da qualidade de vida, ambas a partir da reciclagem de resíduos sólidos. “Pode parecer egocentrismo de uma cientista social, mas com relação ao lixo o que mais me preocupa é a questão social. A forma como a sociedade se relaciona com a produção, o consumo e o descarte dos resíduos”, afirma Cleci, que tem a redução da produção de lixo como tema de sua tese de doutorado.

Energia - Apesar de ser classificado como novo por muitos especialistas, o estudo energético é intrínseco à reciclagem, principalmente num momento em que a ameaça de desabastecimento de energia e as políticas de racionamento são assunto em voga em todo o país. Cleci salienta que a produção de energia elétrica ainda é extremamente degradante ao meio ambiente. “O resultado da dissertação mostra que a quantidade de energia evitada com a reciclagem é significativa”, observa. O que se deixa de consumir entre o processo produtivo primário e a reciclagem é a energia evitada. “Os materiais estudados - plástico, alumínio e metal - caracterizam o processo produtivo por consumir muita energia elétrica”, comenta a pesquisadora.

Segundo informações do Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre), para se processar uma tonelada de papel são consumidos 5 MWh de energia elétrica, enquanto na reciclagem o consumo é de 1,5 MWh. Quando se fala em alumínio, a diferença é de 15 MWh na produção primária para 0,75 MWh na reciclagem. “Se pensarmos em uma latinha, não é nada, mas o montante todo no Brasil é brutal”, avalia Cleci.
A pesquisadora não condena o fato de os catadores de lixo ignorarem a relação entre lixo e redução do consumo de energia. “Os catadores têm na ponta da língua o discurso sobre a importância da população contribuir para melhorar o meio ambiente. Mas você os vê furiosos quando diminui a quantidade de material na rua. Por isso eu digo que a questão energética, apesar de intrínseca ao tema, fica em segundo plano diante do viés social.”

Qualidade de vida - Ao falar sobre coleta informal de lixo e redução do consumo de energia a partir da reciclagem de resíduos sólidos, a pesquisadora não poderia dissociar o tema de seu objeto de estudo. “Quando menciono a qualidade de vida do catador no meu trabalho, não posso dizer que a condição é satisfatória, pois ele sente vergonha em fazer o que faz”, observa.

A idéia pré-concebida de Cleci, de os catadores serem pessoas miseráveis, deu em poucas semanas lugar à vontade de conhecer a classe de trabalhadores informais a fundo. Cleci dividiu os catadores em duas categorias - a dos moradores de rua e a de pessoas que perderam o emprego e resolveram recolher lixo reciclável a fim de defender algum dinheiro para sustento próprio e da família. Em sua tese, estudou o segundo grupo. E restringiu o estudo ao distrito de Barão Geraldo, numa pequena mostra de como a coleta informal vem ganhando fôlego nos últimos tempos. “Eles estão em situação péssima se pensarmos em satisfação pessoal, mas a condição de trabalho não é muito diferente daquela do gari, da doméstica, funções em que se trabalha muito. Isso quando se trata de desempregados que se transformaram em catadores, os quais estudei. Existe o catador que mora na rua, aí a condição de miserabilidade é maior. Mas em ambos os casos é notório o valor que se dá ao lixo”, comenta.

Ideal - “Pode parecer uma visão contraditória, mas a coleta informal, como existe hoje, não deveria existir”, diz a pesquisadora. “No início do estudo, tive idéia de que os coletores eram analfabetos, miseráveis. Mas ali tem gente graduada, tem músico... e por isso eu falo que não adianta só criarem condições de desenvolvimento desse trabalho, se o que eles querem é deixar de ser catadores”, avalia. A pesquisadora sugere um modelo ideal de gestão dos resíduos, embora ela própria reconheça como distante demais da cultura brasileira. A base é um termo absorto para muitos: responsabilidade. “Hoje a gente sabe que existe o lixo perigoso e o lixo ‘fonte de renda’. Mas ainda falta uma conscientização: a de que o lixo é responsabilidade de quem o produz. As pessoas precisam levar seu lixo até determinado ponto e lá sim existir gente que cuide desses resíduos, dentro de uma atividade regulamentada, com condições mínimas de segurança e devidamente remunerada”, idealiza.

Cleci não recrimina a atividade informal. Sabe que as pessoas são movidas por necessidades. E que os anseios do ser humano são impostos principalmente pelo modelo de sociedade em que está mergulhado o mundo. “Do convívio com os catadores foi o que me marcou: eles não querem ser o que são. E isso me lembra um professor da Universidade de Viçosa afirmando que as soluções para isso já existem. O problema é convencer a sociedade de que é preciso mudar”, comenta. “Até porque, vai ser necessário ensinar as pessoas a transformarem seus hábitos. Ensinar uma sociedade que tem algumas informações, mas nenhuma formação ambiental.”

 




 

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