Financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o estudo de Marcos foi desenvolvido na área da análise de discurso. Ele colheu o depoimento de 25 brasileiros deportados. Para isso, trabalhou durante todo o mês de abril de 2005 na área restrita do desembarque internacional do Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos. “Negociei durante um mês com as autoridades aeroportuárias [Infraero, Polícia Federal e Receita Federal] para obter autorização para realizar as entrevistas”, conta o pesquisador. O objetivo central da pesquisa era entender a imigração clandestina e a deportação por meio daquilo que as pessoas trazem quando vivem essa situação. Foram ouvidos brasileiros vindos dos Estados Unidos, México, Inglaterra, Bélgica, França, Espanha, Itália e Japão.
Os temas mais comuns nas falas dos deportados, segundo Marcos, são o constrangimento e a humilhação. O processo de aviltamento, revela o pesquisador, tem início no momento da detenção e se estende até a chegada ao Brasil. O período decorrido entre uma ação e outra varia muito. A deportação de um imigrante ilegal por parte dos Estados Unidos, por exemplo, pode demorar até 120 dias. “Nesse meio tempo, a pessoa permanece presa e fica até mesmo proibida de manter contato com os familiares no Brasil”, afirma. Já os países europeus e o Japão costumam ser mais céleres. Normalmente, em poucos dias o imigrante indesejado é mandado de volta ao país de origem. “A maioria chega ao Brasil sem nada, sendo que muitos sequer têm o direito de tomar banho antes da viagem”, espanta-se.
Ao analisar o discurso dos brasileiros deportados, Marcos trabalhou de forma mais detida a questão da enunciação e do funcionamento dos pronomes, pois eles lhe mostravam “um corpo em colisão com espaço e com o si mesmo”. “Ao suspender sua vida no Brasil e seguir em busca de trabalho e condições para sobreviver, o sujeito migrante torna-se um intruso que precisa viver como um imperceptível no Estado Nacional em que se estabelece. Esse processo causa uma fratura e um desencontro consigo mesmo e com o espaço”, explica o autor da tese, que foi orientado pela professora Eni Orlandi.
Os relatos, prossegue Marcos, revelam como o imigrante clandestino, que até então era um sujeito que passava despercebido, finalmente emerge sob a força do jogo do poder. “A prisão tem a função de fazer o corpo aparecer. Dito de outra maneira, é o momento em que o corpo do sujeito é utilizado contra ele mesmo”. Em seguida, surge a humilhação propriamente dita, percebida pelos deportados como orgulho ferido e desrespeito humano. “Esses aspectos ficam muito claros na fala da maioria das pessoas entrevistadas”, reforça o autor da tese. No entender do pesquisador, os relatos também deixam patente uma das funções da lei, que nesse caso é dar sustentação jurídica ao aviltamento.
A humilhação, destaca Marcos, está no coração da política. “Quando pensamos que essas pessoas pertencem ao chamado Terceiro Mundo, ou seja, vivem as desvantagens sócio-históricas das condições do capitalismo, isso se torna ainda mais flagrante. Ao ultrapassarem as fronteiras claramente determinadas, esses sujeitos passam a ser vistos como criminosos, intrusos. Aí surge um problema: em ser pessoa, em ser brasileiro e estar em outro lugar. Com os países considerados desenvolvidos se transformando na polícia do mundo, sobretudo depois do 11 de setembro de 2001, teve início um processo de higienização do espaço, que objetiva devolver os indesejados aos seus locais de origem”, explica.
A humilhação, insiste o pesquisador, entra nesse jogo justamente como uma tecnologia política e social, por meio da qual o corpo do sujeito é aprisionado e utilizado contra ele mesmo. “E o sujeito humilhado não tem condições de reagir a essa violência simbólica da qual está sendo vítima”. Os episódios registrados recentemente com brasileiros na Espanha, na opinião de Marcos, refletem o recrudescimento das medidas xenófobas e de intolerância praticada por muitos países. Um dado citado por ele, extraído do jornal Le Monde, reforça essa tendência. A publicação informa que a política de imigração da França estabeleceu para 2008 a meta de 26 mil deportações. Até 2010, serão 28 mil. “Tudo isso em nome da segurança, mas eu pergunto: segurança para quem?”.
Conforme o pesquisador, a imagem da globalização tem sido vendida de modo positivo, mas é possível perceber que o mundo globalizado não é para todos. “Quando uma pessoa cruza ilegalmente uma fronteira, ela passa a ser considerada pelo Estado como um corpo estranho. Nesse instante, surge um problema jurídico e social, mas também um problema subjetivo, que pode ser percebido pela linguagem”, diz. Ainda segundo Marcos, muitos deportados reclamam da falta de atenção por parte dos consulados e embaixadas brasileiras. “Penso que seria importante instrumentalizar essas unidades diplomáticas, de modo que elas prestem maior assistência aos brasileiros no exterior. Não se pode perder de vista que a deportação é uma fratura do corpo, da língua e do espaço”, conclui.