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Na ponta dos dedos

MARIA ALICE DA CRUZ

“Quero que o músico cego um dia tenha autonomia total para compor e fazer arranjos, e não apenas ler partituras em braile.” Isso é parte da missão do músico Vilson Zattera, primeiro pós-doutorando cego do Instituto de Artes da Unicamp. Durante sua permanência no Departamento de Música da Universidade, ele pretende aprimorar os programas de musicografia em braile, desenvolver projetos que promovam acessibilidade autônoma a alunos e professores cegos de música e desenvolver metodologia para violão direcionada a deficientes visuais.

O orientador, professor Claudiney Carrasco, acrescenta que com os programas disponíveis hoje, o músico cego realiza 80% de seu trabalho sozinho, mas 20% ainda precisam de revisão de pessoas que enxergam. Mas Zattera deixa claro: “O que eu quero é fazer com que nós cegos tenhamos independência para escanear a partitura, corrigir erros, ouvir a música e imprimir o que é preciso.” Alguns programas estão sendo adquiridos dos EUA, mas Zattera admite que há muitas falhas e é preciso fazer com que a tecnologia seja mais eficiente no Brasil. “Nos EUA, eles sempre fazem upgrade, mas o que eu quero é uma tecnologia mais versátil, mais eficiente, na qual se possa usar uma gama maior de programas”, acrescenta.

Recém-chegado a Campinas, Zattera alegra-se em compor o quadro de pós-doutorandos da Universidade e encontrar um ambiente avançado de pesquisa e acessibilidade em musicografia braile, iniciado pela mestre e doutora em música pela Unicamp Fabiana Bonilha. Contudo, acredita que os programas de música precisam ser aprimorados e ampliados. Ele mesmo admite ter chegado ao mestrado e doutorado (PhD) nos Estados Unidos com a ajuda de sua ex-esposa e algumas pessoas que digitalizavam, editavam e liam parte do material exigido para as aulas, pois era pouco tempo para preparar a quantidade semanal de textos a serem lidos. “Sempre gostei de estudar e fazer arranjos musicais e é importante, para mim, criar condições para que estudantes e professores cegos tenham acesso aos programas e possam fazer suas composições.”

A vinda para a Unicamp é a realização de mais um sonho para Zattera, que já começou a participar de projetos de várias áreas, inclusive na coorientação de estudantes de mestrado. Pesquisador também na área de computação, ele revela que, entre outros, um dos obstáculos enfrentados pelos músicos no momento é que os programas de voz exigem placa de som no computador, mas a música também ocupa espaço na mesma placa e os softwares de voz e de música acabam entrando em conflito. Ele acrescenta que esses programas são baseados em gráficos e ícones que os leitores de tela não leem, pois estes somente leem textos.

No momento, Zattera está pensando na possibilidade de desenvolver um programa através de scripts que reconheçam os símbolos e digam o que está acontecendo. “Quando cheguei à Unicamp imediatamente encontrei alguém que está trabalhando comigo na parte computacional. Vamos entrar na área de programação para fazer todo o trabalho”, informa. A musicografia seria parte essencial, mas Zattera pretende buscar meios para que músicos cegos possam usufruir dos recursos computacionais na área da performance, arranjo e composição musical, além da produção de material braile de um modo mais ágil e eficiente. “Assim, nós, deficientes visuais, poderemos interagir com as pessoas de maneira mais próxima, de maneira que videntes e cegos tenham o mesmo material”, acrescenta.

Para Carrasco, a falta de conhecimento da realidade de todos os usuários faz com que os programas sejam incompletos. “Se o programador soubesse que os usuários cegos iriam usar o programa, ele inseriria um comando para o programa não travar”. Mas ele enfatiza que ainda não existe essa mentalidade de tornar tudo acessível. A chegada de Fabiana Bonilha na graduação em música foi uma mostra de que a universidade brasileira em pleno século 21 não estava preparada para promover a acessibilidade a seus estudantes e professores. Quando a aluna chegou, o Instituto de Artes teve de se adequar para atendê-la, segundo Carrasco. O que não foi diferente para a biblioteca e até mesmo para a Diretoria Acadêmica da Universidade, que contou com Fabiana para rever lacunas em seu site.

Hoje, pode-se dizer que Fabiana marcou a história do estudante cego na Unicamp, se tornando a principal colaboradora no desenvolvimento de projetos de musicografia em braile e oferecendo contribuição importante ao Laboratório de Acessibilidade da Unicamp. “Tivemos de nos estruturar para recebê-la e para oferecer condições de estudo igual às de seus colegas de curso. Antes da chegada dela, a área de musicografia em braile não existia academicamente no Brasil”, acrescenta Carrasco.

Mestre pela Universidade da Califórnia e phD pela Universidade de Washington, Zattera enfatiza que em outros países a acessibilidade teoricamente tem de estar presente em qualquer produto ou iniciativa, enquanto no Brasil a discussão é recente. Por outro lado, ele aponta a falta de interesse da indústria em atender uma pequena parcela da população que seria beneficiada com produtos tão específicos.

Já que o processo faz seu curso lentamente, Zattera e outros profissionais buscam desenvolver metodologias para reduzir a necessidade de auxílio de outras pessoas. Segundo Carrasco, a ideia era, a partir do trabalho da musicista Fabiana, criar um acervo de música em braile, principalmente repertório brasileiro, no Sistema de Bibliotecas da Unicamp que pudesse ser acessado em qualquer lugar do mundo. “Porque o grande problema do cego quando vai estudar música não é questão da escrita, mas a disponibilidade de material”, enfatiza Carrasco. Ele explica que para estudar o material adotado no programa das disciplinas (partituras, livros), o aluno cego precisa converter tudo para braile. Então a ideia era digitalizar os acervos e mandar imprimir em braile.

Símbolos

“Não é simplesmente pegar a musicografia em braile e transpor. Tem 63 símbolos braile. E eles são aproveitados para tudo: português, inglês, matemática, música e muito mais. Então, se pegar a partitura de música que é igual à escrita e não souber que é música, não vai conseguir entender nada do que está escrito. São sinais que podem ser letras”, acrescenta Zattera. Ele conta que quando fez etnomusicologia nos Estados Unidos, precisou de partituras e livros didáticos, mas não tinha como produzir material para estudar. A carência de material fez com que Zattera e sua ex-mulher, Ruth Sparremberger, na época esposa, pesquisassem por conta. As dificuldades encontradas nos Estados Unidos com aquisição e leitura de material hoje direcionam suas pesquisas e projetos de ampliação da acessibilidade na Unicamp, segundo o músico e pesquisador.

O sonho de ser músico jamais foi descartado por Zattera, mesmo depois de perder a visão aos 7 anos de idade. Em Porto Alegre, ele atuou durante vários anos como músico profissional, principalmente com música popular e flamenco. Com a ajuda de muitas pessoas e também por seu talento e aplicação manteve-se na escola convencional em sua cidade de origem, Caxias do Sul (RS), até o ensino médio.

Na graduação em Porto Alegre, uma de suas professoras não percebeu que ele era cego e perguntou: “Todos conseguem ver?”. A que ele respondeu: “Eu não”. A mesma professora, Any Raquel Carvalho, passou a ser uma de suas principais incentivadoras e começou a estudar braile. Nesta época, estudou também com o maestro Antônio Carlos Borges-Cunha, regente da orquestra do Teatro São Pedro de Porto Alegre. Em março de 2010, o Maestro Borges-Cunha foi coorientador de Zattera na sua defesa de Doutorado na University of Washington Seattle, nos Estados Unidos. “Ele me ajudou a escrever a dissertação e discutir soluções. Mesmo não existindo tecnologia, aqui no Brasil os professores sempre deram um jeito de eu aprender”, lembra Zattera.

O musico lembra-se que quando se acidentou, apesar de não ter recursos financeiros, sua mãe, viúva, extrapolou a perspectiva de ele não poder estudar. Ela encontrou apoio em muitas pessoas que o ensinaram o braile, o que fez com que ele ingressasse num colégio convencional. “A música foi a principal responsável por minha integração com as pessoas. Já no colégio, começou a compor e integrava grupos musicais”, lembra Zattera.

Agora no pós-doutorado, a esperança de integração está na comunidade da Unicamp, que acredita que a história de Zattera, assim como a de Fabiana, atraia alunos e professores cegos a frequentarem a universidade. Para Carrasco, a vinda de Fabiana e Zattera para a universidade depois de quase 45 anos de sua fundação mostra uma abertura para receber esses alunos, mas ao mesmo tempo leva a refletir sobre a demora do Brasil em se organizar para receber esses alunos em suas universidades, na opinião de Carrasco.
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