
Equação da Onda Unidimensional: Corda com Extremos Fixos
Uma aula de MA311 na UNICAMP
1. Introdução e Motivação
A equação da onda governa a propagação de perturbações em meios elásticos. Uma corda de violão representa um exemplo intuitivo para compreender este fenômeno: quando dedilhamos uma corda, criamos uma perturbação que se propaga ao longo de toda sua extensão, criando o som que ouvimos. O modelo matemático que estudaremos hoje é fundamental não apenas para instrumentos musicais, mas também para fenômenos em acústica, eletromagnetismo e mecânica quântica.
Por que Extremos Fixos?
Em uma corda de violão real, os extremos estão presos às pestanas e ao cavalete, impedindo qualquer movimento vertical nestes pontos. Esta condição de contorno - matematicamente expressa como \( y = 0 \) nos extremos.
2. Formulação do Problema
Equação Diferencial Parcial
A equação da onda unidimensional é:
$$\frac{\partial^2 y}{\partial t^2} = c^2 \frac{\partial^2 y}{\partial x^2}$$
em que :
- \( y(x,t) \) é o deslocamento transversal da corda no ponto \( x \) e tempo \( t \)
- \( c = 1 \) é a velocidade de propagação da onda (normalizada)
- \( 0 < x < \pi \) é o domínio espacial normalizado
Condições de Contorno (Extremos Fixos)
Para extremos fixos, o deslocamento deve ser zero nas extremidades:
$$y(0,t) = 0 \quad \text{e} \quad y(\pi,t) = 0$$
Esta condição significa que os pontos nas extremidades da corda não podem se mover verticalmente, reproduzindo fielmente a situação física de uma corda de instrumento musical.
Condições Iniciais
Assumindo perfil inicial \( g(x) \) e velocidade inicial zero:
$$y(x,0) = g(x) \quad \text{e} \quad \frac{\partial y}{\partial t}(x,0) = 0$$
A condição de velocidade inicial zero corresponde a liberar a corda do repouso após dar-lhe uma forma inicial específica.
3. Método de Separação de Variáveis
Passo 1: Proposição da Solução Separável
Assumimos uma solução da forma:
$$y(x,t) = X(x)T(t)$$
Esta técnica funciona porque podemos separar as dependências espacial e temporal da equação, transformando uma EDP em duas EDOs mais simples.
Passo 2: Substituição na EDP
Substituindo na equação da onda:
$$X(x)T’’(t) = X’’(x)T(t)$$
Dividindo ambos os lados por \( X(x)T(t) \) (assumindo que nem \( X \) nem \( T \) são identicamente nulos):
$$\frac{T’’(t)}{ T(t)} = \frac{X’’(x)}{X(x)}$$
Passo 3: Argumento de Separação
O lado esquerdo da equação depende apenas de \( t \) , enquanto o lado direito depende apenas de \( x \) . Para que essa igualdade seja válida para todos os valores de \( x \) e \( t \) , ambos os lados devem ser iguais a uma constante. Por razões que ficarão claras quando aplicarmos as condições de contorno, escolhemos essa constante como \( -\alpha ^2 \) :
$$\frac{T’’(t)}{c^2 T(t)} = \frac{X’’(x)}{X(x)} = -\alpha^2$$
Isso nos dá duas equações diferenciais ordinárias independentes:
$$T’’(t) + \alpha ^2 T(t) = 0$$ $$X’’(x) + \alpha ^2 X(x) = 0$$
Passo 4: Resolução da Equação Espacial
A equação \(X’’ (x) + \alpha ^2 X(x) = 0 \) tem solução geral:
$$X(x) = A\cos(\alpha x) + B\sin(\alpha x)$$
onde \( A\) e \( B \) são constantes a serem determinadas pelas condições de contorno.
Passo 5: Aplicação das Condições de Contorno
Das condições de extremos fixos:
Em x = 0: $$X(0) = 0 \Rightarrow A\cos(0) + B\sin(0) = 0 \Rightarrow A = 0$$
Em x = π: $$X(\pi) = 0 \Rightarrow B\sin(\alpha \pi) = 0$$
Para obtermos soluções não-triviais \(B \neq 0 \), precisamos:
$$\sin(\alpha \pi) = 0 \Rightarrow \alpha = n, \quad n = 1, 2, 3, …$$
Note que excluímos \( n = 0 \) porque isso levaria à solução trivial \( X(x) = 0 \).
Autofunções e Autovalores
As autofunções espaciais correspondentes são:
$$X_n(x) = \sin(nx), \quad n = 1, 2, 3, …$$
Estes são os modos normais ou harmônicos da corda. Cada modo representa um padrão de onda estacionária com um número específico de nós (pontos onde \( y = 0 \) ).
Passo 6: Resolução da Equação Temporal
Para cada \( \alpha = n \) , a equação temporal torna-se:
$$T_n’’(t) + n^2 T_n(t) = 0$$
Esta é uma equação harmônica simples com solução:
$$T_n(t) = A_n\cos(nt) + B_n\sin(nt)$$
Passo 7: Aplicação da Condição Inicial de Velocidade
Da condição \( \frac{\partial y}{\partial t}(x,0) = 0 \) :
$$\frac{\partial}{\partial t}[X_n(x)T_n(t)]|_{t=0} = X_n(x)T_n’(0) = 0$$
Como \( T_n’(t) = -nA_n\sin(nt) + nB_n\cos(nt) \) :
$$T_n’(0) = nB_n = 0 \Rightarrow B_n = 0$$
Portanto: \( T_n(t) = A_n\cos(nt) \)
4. Solução Geral e Séries de Fourier
Solução Geral
A solução geral é uma combinação linear de todas as soluções particulares:
$$y(x,t) = \sum_{n=1}^{\infty} A_n \sin(nx) \cos(nt)$$
Esta expressão revela a estrutura fundamental da vibração da corda: cada modo \( n \) vibra com sua frequência angular característica \( \omega_n = n \), e a forma total é uma superposição de todos esses modos.
Aplicação da Condição Inicial
Da condição \( y(x,0) = g(x) \) :
$$g(x) = \sum_{n=1}^{\infty} A_n \sin(nx)$$
Esta é uma série de Fourier em senos para a função \( g(x) \) no intervalo \( [0,\pi] \). É crucial entender que esta representação é possível para qualquer função razoável \( g(x) \) que satisfaça \( g(0) = g(\pi) = 0 \).
Cálculo dos Coeficientes de Fourier
Usando a propriedade de ortogonalidade das funções seno:
$$\int_0^\pi \sin(mx)\sin(nx) dx = \begin{cases} 0 & \text{se } m \neq n \newline \frac{\pi}{2} & \text{se } m = n \end{cases}$$
Multiplicando a série por \( \sin(mx) \) e integrando termo a termo:
$$\int_0^\pi g(x) \sin(mx) dx = \sum_{n=1}^{\infty} A_n \int_0^\pi \sin(nx) \sin(mx) dx = A_m \frac{\pi}{2}$$
Portanto:
$$A_n = \frac{2}{\pi} \int_0^\pi g(x) \sin(nx) dx$$
5. Solução Final Completa
A solução completa do problema de valor inicial e de contorno é:
$$\boxed{y(x,t) = \sum_{n=1}^{\infty} A_n \sin(nx) \cos(nt)}$$
onde os coeficientes de Fourier são dados por:
$$\boxed{A_n = \frac{2}{\pi} \int_0^\pi g(x) \sin(nx) dx, \quad n = 1, 2, 3, …}$$
6. Interpretação Física
Modos Normais de Vibração
Cada termo da série representa um modo normal com características específicas:
Modo fundamental (n=1): \( y_1(x,t) = A_1 \sin(x) \cos(t) \)
- Frequência: \( f_1 = \frac{1}{2\pi} \) Hz
- Um meio comprimento de onda cabe na corda
- Nó apenas nos extremos
Segundo harmônico (n=2): \( y_2(x,t) = A_2 \sin(2x) \cos(2t) \)
- Frequência: \( f_2 = \frac{1}{\pi} \) Hz (dobro da fundamental)
- Um comprimento de onda completo cabe na corda
- Nó adicional no centro (\( x = \pi/2 \))
n-ésimo harmônico: \( y_n(x,t) = A_n \sin(nx) \cos(nt)\)
- Frequência: \( f_n = \frac{n}{2\pi}\) Hz
- \( n\) meios comprimentos de onda cabem na corda
- \( (n-1)\) nós internos além dos extremos
Ondas Estacionárias
Cada modo individual representa uma onda estacionária onde certos pontos (nós) permanecem sempre em repouso, enquanto outros (antinós) oscilam com amplitude máxima. Os nós do n-ésimo modo estão localizados em:
$$x_k = \frac{k\pi}{n}, \quad k = 0, 1, 2, …, n$$
Relação entre Forma e Som
A distribuição dos coeficientes \( A_n \) determina o timbre do som produzido. Uma corda dedilhada no centro produzirá principalmente harmônicos ímpares, enquanto uma corda dedilhada em \( x = \pi/4 \) excitará diferentes combinações de modos.
7. Exemplo Detalhado: Perfil Inicial Triangular
Definição do Problema
Considere uma corda inicialmente deformada em forma triangular de altura \( h \):
$$g(x) = \begin{cases} \frac{2hx}{\pi} & \text{se } 0 \leq x \leq \frac{\pi}{2} \newline \frac{2h(\pi-x)}{\pi} & \text{se } \frac{\pi}{2} \leq x \leq \pi \end{cases}$$
onde $h$ é a altura máxima da deformação no centro da corda.
Cálculo dos Coeficientes
Para este perfil simétrico, apenas os harmônicos ímpares contribuem:
$$A_n = \frac{2}{\pi} \int_0^\pi g(x) \sin(nx) dx$$
Devido à simetria da função triangular em relação a \( x = \pi/2 \), obtemos:
$$A_n = \begin{cases} \frac{8h}{\pi n^2} & \text{se } n \text{ é ímpar} \newline 0 & \text{se } n \text{ é par} \end{cases}$$
Solução Explícita
$$y(x,t) = \frac{8h}{\pi} \sum_{k=0}^{\infty} \frac{1}{(2k+1)^2} \sin((2k+1)x) \cos((2k+1)t)$$
Análise do Conteúdo Harmônico
O perfil triangular produz uma série que decresce como \( 1/n^2 \) , o que significa que os harmônicos superiores têm amplitudes rapidamente decrescentes. Isso produz um som relativamente suave, diferente do que seria produzido por um perfil mais “agudo” dos harmônicos de alta frequência.
8. Simulação Computacional
Implementação da Solução Analítica
A solução pode ser implementada computacionalmente para visualizar a evolução temporal da corda. O código deve calcular:
- Coeficientes de Fourier: Integração numérica para \( A_n \)
- Síntese da série: Somatória truncada dos primeiros \( N \) termos
- Animação temporal: Avaliação de \( y(x,t) \) para diferentes valores de \( t \)
Considerações Numéricas
Para convergência adequada, geralmente 20-50 termos são suficientes para a maioria das aplicações educacionais. O erro de truncamento decresce rapidamente devido à convergência rápida das séries de Fourier para funções suaves.
Síntese do Som
Para gerar o som correspondente, cada modo contribui com uma senoide de frequência \( f_n = n/(2\pi) \) e amplitude \( A_n \) . A sobreposição dessas senoides produz o timbre característico da forma inicial escolhida.
9. Observações Importantes
Ligação com Análise de Fourier
Este problema é uma aplicação concreta da teoria de Fourier, demonstrando como funções arbitrárias podem ser decompostas em componentes harmônicas.
Princípio da Superposição
A solução final ilustra claramente o princípio da superposição: a resposta do sistema linear é a soma das respostas individuais a cada modo. Este conceito é fundamental em toda a física ondulatória.
10. Exercícios Progressivos
Nível Básico
Verificação: Mostre que \( y(x,t) = \sin(2x)\cos(2t) \) satisfaz a equação da onda e as condições de contorno.
Modos individuais: Para \( g(x) = \sin(3x)\) , encontre a solução e descreva o movimento resultante.
Nível Intermediário
Perfil por partes: Resolva para uma corda inicialmente deformada apenas na metade esquerda.
Análise energética: Calcule a energia total do sistema e mostre sua conservação no tempo.
Nível Avançado
Convergência: Investigue a convergência da série de Fourier para diferentes tipos de condições iniciais.
Implementação numérica: Desenvolva um programa que calcule e visualize a solução para condições iniciais arbitrárias.
11. Extensões e Generalizações
Efeitos de Amortecimento
Na realidade física, a corda perde energia devido ao atrito. Isso pode ser modelado adicionando um termo de amortecimento \( \gamma \frac{\partial y}{\partial t} \) à equação da onda, levando a soluções que decaem exponencialmente no tempo.
Corda Não-Homogênea
Se a tensão ou densidade da corda varia com a posição, a equação da onda torna-se mais complexa, mas os métodos de separação de variáveis ainda podem ser aplicados em muitos casos.
12. Síntese e Perspectivas
Este problema clássico da corda vibrante serve como porta de entrada para conceitos fundamentais em:
- Equações diferenciais parciais: Métodos de separação de variáveis
- Análise harmônica: Séries de Fourier e ortogonalidade
- Física matemática: Condições de contorno e modos normais
- Acústica musical: Relação entre forma e timbre
A compreensão deste modelo é fundamental para problemas mais complexos em mecânica quântica (partícula na caixa), eletromagnetismo (guias de onda) e engenharia estrutural (vibrações de vigas e placas).
Veja simulações: https://unicamp.br/~samrocha/simulacao_Fourier.html https://unicamp.br/~samrocha/corda-vibrante.html