Já se sabia que a disposição dos órgãos internos das serpentes acompanha o formato do seu corpo alongado. Também são conhecidas pela literatura as diferenciações morfológicas entre as espécies que vivem nas árvores e as terrestres – a cauda das arborícolas geralmente é mais longa e o corpo mais achatado para facilitar a sua locomoção. O que a bióloga Lígia Pizzatto do Prado descobriu foi que serpentes da família Boidae, que têm seu habitat em árvores, apresentam seus órgãos reprodutivos, mais especificamente os ovários, localizados de maneira diferenciada das terrestres. Enquanto as terrestres mostram sobreposição dos ovários e ovidutos (canal de ligação com a cloaca), as arborícolas possuem os ovários com assimetria acentuada, o que permite a elas manter o corpo esguio mesmo em estágios avançados do ciclo reprodutivo.

A pesquisa de doutorado defendida no Instituto de Biologia causou grande repercussão e a bióloga assina um artigo que será publicado na revista americana Ecology, juntamente com dois renomados herpetólogos, Richard Shine, da Universidade de Sidney (Austrália), e Selma Maria de Almeida Santos, do Instituto Butantan. Lígia foi orientada no IB pelo professor-visitante Otavio Augusto Vuolo Marques, também pesquisador do Instituto Butantan.

A ecomorfologia, que permite estudar relações entre a forma das serpentes e o ambiente em que vivem, sempre despertou o interesse da bióloga, que não hesitou quando surgiu, durante o doutorado, a oportunidade de estagiar em um dos centros de pesquisas mais famosos do mundo na área de serpentes. Foi lá que a descoberta chamou a atenção dos pesquisadores da Universidade de Sidney. “O professor Richard ficou impressionado com o fato e alertou para a sua importância em termos científicos”, explica Lígia.

A ênfase do trabalho está nas espécies neotropicais, como jibóias, sucuris, salamanta e também as pítons. Mesmo tendo passado um período na Austrália, Lígia do Prado desenvolveu a maior parte do trabalho no Brasil, onde visitou dezenas de museus e realizou medições do corpo das cobras. Dissecou animais preservados em coleções e que se encontravam em variados estágios do ciclo reprodutivo, conseguindo estabelecer a diferença de morfologia. Observou, inclusive, a diferença no número de filhotes: as espécies arborícolas colocam menos ovos (ou filhotes). A bióloga não deixou de considerar a filogenia, levando em conta as relações entre as espécies (grau de parentesco), o que deu maior legitimidade às suas descobertas. Em geral, as pesquisas se concentram na influência do ambiente sem atentar para a influência do parentesco.

As medidas e disposição dos órgãos estão relacionadas ao tamanho do corpo. Da mesma forma, o número de ovos e tempo de gestação. A sucuri, a maior do grupo das Boidae, chega a ter 80 filhotes, que nascem em média com 50 centímetros de comprimento. As cobras pítons – famosas por serem utilizadas na dança do ventre – são ovíparas e as maiores espécies chegam a medir até sete metros de comprimento. Uma serpente de um metro, por exemplo, pode colocar em média 15 ovos. O tempo de gestação também varia, de quatro a seis meses, havendo serpentes que chegam a ter oito meses de gestação.

Fascínio – Lígia do Prado é simplesmente fascinada por cobras e, ao que parece, tudo começou quando ela, ainda estudante do ensino médio, visitou a Unicamp dentro do evento Universidade Portas Abertas de 1997. Ficou hipnotizada diante das serpentes no estande do Instituto de Biologia, a ponto de ter se perdido do grupo de colegas. “Passei um bom tempo só observando o comportamento delas”. Depois daquele contato, não quis mais saber de outra coisa. Na Graduação, fez iniciação científica e estudou a reprodução de uma cobra denominada falsa coral, bastante comum na área urbana. No mestrado, aprofundou pesquisas sobre a influência do clima na reprodução de uma espécie de cobra d’água. E no doutorado desenvolveu este trabalho sobre o sistema reprodutivo das Boidae.

Lígia do Prado não pretende parar. Já está com bolsa aprovada pela Capes para retornar à Austrália e desenvolver estudo inédito sobre as serpentes. Desta vez, pretende acompanhar os filhotes de serpente para saber o que ocorre, exatamente, no primeiro ano de vida. Segundo a bióloga, não existe qualquer relato na literatura mundial sobre esse aspecto da espécie a ser estuda e também são raras as informações sobre as demais espécies. Lígia aproveitará a oportunidade para dominar uma técnica pouco usual no Brasil no estudo de serpentes, a radiotelemetria, que consiste em implantar radio-transmissores cirurgicamente, a fim de rastrear os deslocamentos das cobras.

Mitologia – A simples menção de uma serpente já causa horror na maioria das pessoas. Lígia contraria este senso comum, lembrando que as cobras agem por instinto e, como outros animais, apenas se defendem quando ameaçadas. Por isso foi buscar na mitologia a explicação para esta reação diante das cobras, percebendo que ela está diretamente ligada à questão religiosa. “As pessoas relacionam a cobra com algo que simboliza o mal, o que é uma visão distorcida. “A serpente trouxe o pecado, mas também trouxe o conhecimento”, argumenta.

A bióloga cita o exemplo da Austrália, onde há um respeito grande pelas serpentes. Lá estão as cobras mais venenosas do mundo e, no entanto, a população aprendeu a conviver com elas. Neste sentido, Lígia acredita que o problema é cultural. “As pessoas não gostam das serpentes porque desde criança aprenderam que não devem gostar”. Enquanto esteve na Austrália, Lígia visitou os parques e, em apenas uma noite, teve a oportunidade de cruzar com mais de 20 cobras, o que é muito raro ocorrer no Brasil. “Foi lindo!”.