Plantas
que fazem mal
Crista
de galo, bico de corvo e confrei
podem provocar cirrose
PAULO
CÉSAR NASCIMENTO
fitoterapia,
ou uso terapêutico de plantas medicinais, é
um hábito identificado em praticamente todas as
civilizações ou grupos culturais conhecidos
desde os primórdios da humanidade. No passado,
as plantas representavam a principal arma terapêutica
conhecida, e sua intensa utilização resultou
em conhecimentos empíricos que foram transmitidos
de geração para geração.
O
acúmulo dessas informações pelo homem
primitivo propiciou o surgimento da cultura popular da
arte de curar e também da farmacoterapêutica,
que se tornou uma das bases importantes para o nascimento
da indústria farmacêutica. Como diversas
moléculas vegetais com estrutura complexa dependem
de síntese biológica, e a síntese
em laboratório não pode ser feita ou é
economicamente inviável, vários produtos
industrializados, entre medicamentos e cosméticos,
têm sido desenvolvidos a partir de ervas medicinais,
com base nas indicações populares.
Atualmente,
há uma ampla gama de chás, sucos, xaropes,
tinturas, óleos, pomadas, cremes, loções,
sabonetes, shampoos e desodorantes à disposição
do público naturalista nas farmácias homeopáticas
e lojas de fitoterápicos. Mas até que ponto
seu uso indiscriminado é seguro para a saúde?
Os
riscos são grandes, conforme atestou pesquisa desenvolvida
na Unicamp pela química Cáritas de Jesus
Silva Mendonça, como parte do estudo para sua tese
de doutorado Alcalóides Pirrolizidínicos
em plantas brasileiras de interesse alimentar e medicinal:
identificação e toxicologia. Realizado
com bolsa do CNPq, o trabalho foi orientado pelo professor
Gil Eduardo Serra, da Faculdade de Engenharia de Alimentos
(FEA), e co-orientado pelo professor Lauro Euclides Soares
Barata, do Instituto de Química (IQ).
Plantas
contendo alcalóides pirrolizidínicos (uma
substância tóxica produzida no processo de
bio-síntese da planta) são amplamente consumidas
como remédios caseiros ou alimentícios,
na forma de saladas e sucos, em alguns países como
Índia,
Afeganistão, Estados Unidos, Rússia e Brasil.
Entre os exemplos mais comuns estão a crista
de galo (Heliotropium índicum), o bico
de corvo (Heliotropium transalpinum) e o confrei
(Shymshitum oficinalis) usado em saladas.
Pesquisa
inédita No Brasil, até então,
não havia um trabalho investigativo sobre essa
categoria de vegetais. Coube pioneiramente a Cáritas
comprovar, após sete anos de pesquisa, que o consumo
contínuo dessas plantas com alcalóides pirrolizidínicos
pode provocar a cirrose hepática, com risco de
chegar ao câncer através da destruição
das células do fígado.
Inicialmente
ela procurou identificar a presença da toxina em
plantas desidratadas colhidas no herbário do Instituto
de Biologia (IB) da Universidade. O exame compreendeu
23 espécies do gênero Senécio braziliensis
(popular maria-mole ou flor das almas), típico
do Sul do país, e 32 espécies do gênero
Elpatorium laevigatum (mata-pasto ou cambará falso),
muito encontrado no Sul e Sudeste, cujas folhas são
usadas para curar feridas e no preparo de sucos contra
febres.
Posteriormente
analisou oito espécies de plantas in natura, colhidas
em diferentes épocas do ano. Além de amostras
de arnica silvestre, de Senécio braziliensis e
de Elpatorium laevigatum, também colheu e testou
em laboratório espécies dos gêneros
Heliotropium indicum e Heliotropium transalpinum (utilizados
na forma de chás para tratar úlcera, complicações
renais ou para combater doenças do aparelho respiratório),
Ageratum conyzoides (popular mentrasto), Crotalaria lanceolata
(conhecida como chocalho de cascavel) e Crotalaria spectabilis,
comumente encontradas em pastagens.
Esforço
multidisciplinar - Os exames laboratoriais para identificar
a presença de alcalóides nas plantas e comprovar
seus malefícios constituíram a parte mais
exaustiva da pesquisa conduzida por Cáritas. Foi
necessário um esforço multidisciplinar,
com a participação de especialistas das
áreas de química, toxicologia e histologia
da Unicamp, conta a pesquisadora.
Além
do orientador e do co-orientador da tese, ela contou,
ao longo do estudo, com o apoio dos professores João
Ernesto de Carvalho e Patrícia Corrêa Dias,
do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas,
Biológicas e Agrícolas (CPQBA), e Sara Arana,
do Departamento de Histologia e Embriologia do IB.
Para
a identificação dos alcalóides, ela
empregou um processo que consiste, inicialmente, em preparar
com metanol um extrato da planta, aquecê-lo e analisar
os diferentes compostos químicos contidos no vapor
em um cromatógrafo gasoso acoplado a um detetor
(espectofotômetro) de massas. Depois, com o uso
de técnicas de ressonância magnética
nuclear de próton e de carbono 13, isolou e caracterizou
dez diferentes tipos de alcalóides entre os compostos
químicos, conseguindo obter extratos purificados
da substância.
O
passo seguinte foi realizar os ensaios toxicológicos,
com a injeção dos alcalóides em 100
ratos, dez para cada tipo de substância isolada.
Cáritas aplicou doses diferentes em cada cobaia,
para poder melhor controlar e avaliar o efeito da toxina
no organismo do animal.
Por
último, os ratos foram sacrificados e seus fígados
submetidos a análises histológicas, para
avaliação microscópica do estado
das células. Foi quando Cáritas pôde
constatar os danos causados aos órgãos dos
animais que haviam recebido doses maiores de alcalóide.
Os alcalóides são hepatóxicos,
ou seja, tóxicos para o fígado. A toxina
obstrui a circulação sangüínea
no órgão e compromete seu funcionamento,
esclarece a química.
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Confusão
nos sintomas
A
química Cáritas de Jesus Silva Mendonça
adverte que, por apresentar sintomas semelhantes, casos
de intoxicação por consumo de chás
à base de plantas com alcalóides podem estar
sendo confundidos com cirrose, câncer ou hepatite,
já que o órgão afetado nesses casos
é o mesmo. A pesquisadora pondera, entretanto,
que a intoxicação depende da concentração
da substância na planta e da freqüência
do uso do medicamento produzido a partir do vegetal.
Porém,
não há no país dados científicos
abrangentes sobre plantas medicinais, nem um controle
eficaz da qualidade dos produtos fitoterápicos
capaz de avaliar a concentração de alcalóides
e prevenir intoxicações. Muito menos orientações
para a população sobre o uso correto dos
medicamentos. Enquanto isso, a ingestão indiscriminada
coloca em risco a saúde dos consumidores.
Os
fitoterápicos transformaram-se numa panacéia,
observa Cáritas. O uso popular de plantas
medicinais in natura é cada vez maior e, na mesma
proporção, cresce a produção
e o consumo de cosméticos e medicamentos ditos
naturais. Não se percebe, contudo, uma preocupação
em se conhecer melhor os efeitos colaterais da utilização
desses produtos, como a toxicidade.
Produto
proibido A tese de doutorado é uma contribuição
da pesquisadora para mudar esse quadro. O que ela pretende,
com esta e próximas pesquisas que começa
a esboçar, é estimular o aprofundamento
do estudo e da sistematização das tradições
populares do uso de plantas medicinais no Brasil, como
forma de ter uma estratégia para investigação
e comprovação farmacológica de seus
benefícios e malefícios ao organismo humano.
É
o que ocorre na Alemanha, país que tem investido
muito no campo da etnofarmacologia (estudo da farmacologia
popular de um determinado grupo cultural) para o desenvolvimento
de novos medicamentos à base de plantas medicinais.
O trabalho de Cáritas, no entanto, já influenciou
uma decisão do Ministério da Saúde.
O órgão proibiu no Brasil a produção
de um fitoterápico a partir do algerato
popularmente utilizado na forma de chás, emplastros
e em banhos para males tão diversos como reumatismo,
cólicas menstruais e cálculos renais
depois que a pesquisadora demonstrou o alto grau de toxicidade
da planta
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