Ecos
da sociedade
Professor
deixa redoma do laboratório e
coloca-se à frente de projetos comunitários
ÁLVARO
KASSAB
professor
Humberto de Araújo Rangel olhou para trás
depois de aposentar-se em 1996, aos 70 anos. Foi um clarão
da memória afetiva que o reconduziu às ruas
de um bairro humilde das cercanias de Salvador, berço
de uma trajetória marcada pela luta por um diploma
de médico, profissão exercida nos ermos
esquecidos, no interior das carências. O ofício
prático logo seria trocado pela pesquisa experimental,
nos laboratórios do Instituto Butantan, da Escola
Paulista de Medicina, do Instituto Pasteur (Paris) e por
fim no Departamento de Microbiologia e Imunologia do Instituto
de Biologia (IB) da Unicamp.
Um
mergulho no mundo classificado pelo próprio Rangel
de alienante, repleto de moléculas
e camundongos, divorciado das aflições imediatas.
Contudo, mesmo na redoma, para usar outra
expressão cunhada por ele, o pesquisador ouvia
a reverberação dos ecos da sociedade. A
aposentadoria serviu para materializá-los
Rangel e um grupo de professores fundaram, em 1997, o
IPES (Instituto de Pesquisas Especiais para a Sociedade),
ONG que busca um modelo de trabalho que promova a interação
entre universidades, organizações da sociedade
civil e administração pública. O
professor voltara à prática, à frente
de um convênio estabelecido com a Unicamp e de um
projeto de política pública aprovado em
primeira instância pela Fapesp.
E
foi na condição de presidente do IPES que
Rangel se emocionou na palestra proferida recentemente
pelo professor Geraldo Di Giovanni, do Instituto de Economia
da Unicamp. Na platéia, 20 aspirantes a agentes
comunitários de saúde que vêm sendo
preparados pelo IPES para atuar na região do Jardim
São Marcos, bairro da periferia de Campinas, ouviam
pela primeira vez algo sobre Economia Solidária,
tema do seminário que teve o apoio da Pró-Reitoria
de Extensão e Assuntos Comunitários e da
Fapesp.
Foi
o caso, por exemplo, da professora de educação
especial Maria Nazareth Evangelista dos Santos. Demitida
da prefeitura de Campinas, ela trocou o Jardim Santa Mônica
por Brasília. A permanência do filho no bairro,
porém, fez com que voltasse para suas coisas. Um
pedido feito por uma vizinha, que queria ser alfabetizada,
mudou a vida da professora. A cartilha não bastava.
Logo a garagem de sua casa se transformou em sala de supletivo.
Hoje ela busca apoio para conseguir um espaço que
acomode a demanda. Maria Nazareth gostou da palestra de
Giovanni, embora tenha ficado mais entusiasmada com a
conversa informal entre o professor e suas colegas, após
o seminário. É muito importante esse
contato. Nós precisamos da universidade, e a universidade
precisa da gente.
Opinião
compartilhada pela operária aposentada Joana Júlia
Rezende Tripoloni, mineira que em 1973 deixou Monte Santo
de Minas para se estabelecer no Jardim Santa Mônica,
à época um matagal sem fim.
Joana
milita no movimento popular, coordena um grupo de mulheres,
integra a sociedade amigos de bairro e ainda arruma tempo
de participar das reuniões do conselho de escola.
Uma liderança que aprendeu, no seminário,
o significado daquilo que parte da mídia, à
exaustão, banalizou: comunidade solidária.
Além do aprendizado, as palestras na Unicamp
têm me ajudado muito no trabalho que desenvolvo
no meu bairro.
Sem
oba-oba Rangel puxa mais uma vez pela memória
para falar de outra palestra, também na Unicamp,
na qual um filósofo transmitiu noções
de ética aos futuros agentes comunitários.
Foi uma discussão muito madura, muito consciente.
A reação dos alunos foi típica de
pessoas ávidas pelo conhecimento, relata
o professor, para quem encontros como esses derrubam a
teoria de que não é possível transmitir
o conhecimento científico para pessoas comuns.
A universidade pode transformar os benefícios
da ciência e da tecnologia em instrumentos de mudança,
além de desmistificar aspectos da linguagem ao
buscar palavras mais próximas da realidade das
pessoas.
Uma
aproximação que dispensa as armadilhas do
paternalismo, do assistencialismo e do oba-oba, conforme
prega a linha de ação do IPES, cujo ideário
deixa claro que dar coisas ou proporcionar situações
é uma estratégia equivocada. Não
fazemos filantropia no sentido clássico, mas criamos
meios e estímulos para que eles busquem alternativas.
À medida que os agentes adquirem autonomia, a gente
tem que se afastar, prega Rangel. O professor vê
uma relação de troca nesse contato com as
comunidades. Revela que
está aprendendo muitas coisas, sobretudo nas áreas
do ensino e da assistência médica, que, em
sua opinião, deveriam passar por modificações
estruturais. Seriam mudanças simples, mas,
que uma vez implantadas, revolucionariam a maneira de
ver e de fazer as coisas.
Rangel
usa como exemplo o Centro de Saúde do Jardim São
Marcos, para ele bem equipado e com pessoal de excelente
qualidade profissional. Na opinião do presidente
do IPES, a população não se sente
assistida por haver um problema de comunicação,
no qual predomina uma visão distorcida do papel
da medicina tanto da parte da comunidade como da
dos profissionais. Entraria em ação, nesse
quadro, o agente comunitário, cuja tarefa seria
sobretudo educativa. Ele deve promover um diálogo
no sentido de se estabelecer uma política de saúde
preventiva, cadastrando a população, conhecendo
sua realidade e traçando uma política a
ser desenvolvida pelos profissionais do centro de saúde,
receita Rangel. Segundo o professor, trabalhos dirigidos
à saúde da família têm dado
excelentes resultados sem que haja a necessidade de gastos
desnecessários ou de mandar o paciente de um especialista
para outro, sem um diagnóstico fechado.
Atuação
ampliada O IPES, que conta hoje com aproximadamente
40 integrantes, pretende estender o campo de atuação
para as áreas de educação e cultura,
por meio de parcerias e de ações que vão
ser orientadas por um núcleo de trabalho transdisciplinar,
envolvendo docentes, alunos e agentes comunitários.
Rangel sente que cresce o interesse da universidade pelo
trabalho na periferia, embora saiba os limites de sua
influência, assim com a do instituto que preside.
Podemos dizer com segurança que muitas das
causas e dos efeitos dos problemas sociais, inclusive
a violência, fogem à nossa ação,
pois dependem de estruturas econômicas que demandam
um trabalho que não pode ficar restrito aos níveis
local e nacional.
O
professor, porém, vai seguir, com seus parceiros,
na busca de alternativas aos modelos existentes, mais
ainda no terreno da economia solidária. Rangel
entende que o cooperativismo, o microcrédito e
o imposto sobre capitais especulativos atenuariam os efeitos
das diferenças sociais, que conheceu ainda menino.
Que cresceu, correu o mundo, ficou na redoma,
mas não deixou de ouvir os ecos da sociedade.
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