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Campinas, junho de 2001 - ANO XV - N. 163.........
     
   
 

Ecos da sociedade
Professor deixa ‘redoma’ do laboratório e
coloca-se à frente de projetos comunitários

ÁLVARO KASSAB

professor Humberto de Araújo Rangel olhou para trás depois de aposentar-se em 1996, aos 70 anos. Foi um clarão da memória afetiva que o reconduziu às ruas de um bairro humilde das cercanias de Salvador, berço de uma trajetória marcada pela luta por um diploma de médico, profissão exercida nos ermos esquecidos, no interior das carências. O ofício prático logo seria trocado pela pesquisa experimental, nos laboratórios do Instituto Butantan, da Escola Paulista de Medicina, do Instituto Pasteur (Paris) e por fim no Departamento de Microbiologia e Imunologia do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp.

Um mergulho no mundo classificado pelo próprio Rangel de “alienante”, repleto de moléculas e camundongos, divorciado das aflições imediatas. Contudo, mesmo na “redoma”, para usar outra expressão cunhada por ele, o pesquisador ouvia a reverberação dos ecos da sociedade. A aposentadoria serviu para materializá-los – Rangel e um grupo de professores fundaram, em 1997, o IPES (Instituto de Pesquisas Especiais para a Sociedade), ONG que busca um modelo de trabalho que promova a interação entre universidades, organizações da sociedade civil e administração pública. O professor voltara à prática, à frente de um convênio estabelecido com a Unicamp e de um projeto de política pública aprovado em primeira instância pela Fapesp.

E foi na condição de presidente do IPES que Rangel se emocionou na palestra proferida recentemente pelo professor Geraldo Di Giovanni, do Instituto de Economia da Unicamp. Na platéia, 20 aspirantes a agentes comunitários de saúde que vêm sendo preparados pelo IPES para atuar na região do Jardim São Marcos, bairro da periferia de Campinas, ouviam pela primeira vez algo sobre Economia Solidária, tema do seminário que teve o apoio da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários e da Fapesp.

Foi o caso, por exemplo, da professora de educação especial Maria Nazareth Evangelista dos Santos. Demitida da prefeitura de Campinas, ela trocou o Jardim Santa Mônica por Brasília. A permanência do filho no bairro, porém, fez com que voltasse para suas coisas. Um pedido feito por uma vizinha, que queria ser alfabetizada, mudou a vida da professora. A cartilha não bastava. Logo a garagem de sua casa se transformou em sala de supletivo. Hoje ela busca apoio para conseguir um espaço que acomode a demanda. Maria Nazareth gostou da palestra de Giovanni, embora tenha ficado mais entusiasmada com a conversa informal entre o professor e suas colegas, após o seminário. “É muito importante esse contato. Nós precisamos da universidade, e a universidade precisa da gente”.

Opinião compartilhada pela operária aposentada Joana Júlia Rezende Tripoloni, mineira que em 1973 deixou Monte Santo de Minas para se estabelecer no Jardim Santa Mônica, à época um matagal sem fim.

Joana milita no movimento popular, coordena um grupo de mulheres, integra a sociedade amigos de bairro e ainda arruma tempo de participar das reuniões do conselho de escola. Uma liderança que aprendeu, no seminário, o significado daquilo que parte da mídia, à exaustão, banalizou: comunidade solidária. “Além do aprendizado, as palestras na Unicamp têm me ajudado muito no trabalho que desenvolvo no meu bairro”.

Sem oba-oba – Rangel puxa mais uma vez pela memória para falar de outra palestra, também na Unicamp, na qual um filósofo transmitiu noções de ética aos futuros agentes comunitários. “Foi uma discussão muito madura, muito consciente. A reação dos alunos foi típica de pessoas ávidas pelo conhecimento”, relata o professor, para quem encontros como esses derrubam a teoria de que não é possível transmitir o conhecimento científico para pessoas comuns. “A universidade pode transformar os benefícios da ciência e da tecnologia em instrumentos de mudança, além de desmistificar aspectos da linguagem ao buscar palavras mais próximas da realidade das pessoas”.

Uma aproximação que dispensa as armadilhas do paternalismo, do assistencialismo e do oba-oba, conforme prega a linha de ação do IPES, cujo ideário deixa claro que dar coisas ou proporcionar situações é uma estratégia equivocada. “Não fazemos filantropia no sentido clássico, mas criamos meios e estímulos para que eles busquem alternativas. À medida que os agentes adquirem autonomia, a gente tem que se afastar”, prega Rangel. O professor vê uma relação de troca nesse contato com as comunidades. Revela que está aprendendo muitas coisas, sobretudo nas áreas do ensino e da assistência médica, que, em sua opinião, deveriam passar por modificações estruturais. “Seriam mudanças simples, mas, que uma vez implantadas, revolucionariam a maneira de ver e de fazer as coisas”.

Rangel usa como exemplo o Centro de Saúde do Jardim São Marcos, para ele bem equipado e com pessoal de “excelente qualidade profissional”. Na opinião do presidente do IPES, a população não se sente assistida por haver um problema de comunicação, no qual predomina uma visão distorcida do papel da medicina – tanto da parte da comunidade como da dos profissionais. Entraria em ação, nesse quadro, o agente comunitário, cuja tarefa seria sobretudo educativa. “Ele deve promover um diálogo no sentido de se estabelecer uma política de saúde preventiva, cadastrando a população, conhecendo sua realidade e traçando uma política a ser desenvolvida pelos profissionais do centro de saúde”, receita Rangel. Segundo o professor, trabalhos dirigidos à saúde da família têm dado excelentes resultados sem que haja a necessidade de gastos desnecessários ou de mandar o paciente de um especialista para outro, sem um diagnóstico fechado.

Atuação ampliada – O IPES, que conta hoje com aproximadamente 40 integrantes, pretende estender o campo de atuação para as áreas de educação e cultura, por meio de parcerias e de ações que vão ser orientadas por um núcleo de trabalho transdisciplinar, envolvendo docentes, alunos e agentes comunitários. Rangel sente que cresce o interesse da universidade pelo trabalho na periferia, embora saiba os limites de sua influência, assim com a do instituto que preside. “Podemos dizer com segurança que muitas das causas e dos efeitos dos problemas sociais, inclusive a violência, fogem à nossa ação, pois dependem de estruturas econômicas que demandam um trabalho que não pode ficar restrito aos níveis local e nacional”.

O professor, porém, vai seguir, com seus parceiros, na busca de alternativas aos modelos existentes, mais ainda no terreno da economia solidária. Rangel entende que o cooperativismo, o microcrédito e o imposto sobre capitais especulativos atenuariam os efeitos das diferenças sociais, que conheceu ainda menino. Que cresceu, correu o mundo, ficou na “redoma”, mas não deixou de ouvir os ecos da sociedade.

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