Cédula
da Terra
JOÃO
MAURÍCIO DA ROSA
Núcleo
de Economia Agrícola do Instituto de Economia da
Unicamp (NEA/IE) está prestes a divulgar um relatório
final sobre o Programa Cédula da Terra (PCT), concebido
pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário
no final de 1997, com a intenção de ampliar
o leque de alternativas para a ordenação
fundiária no Nordeste brasileiro. O trabalho, que
vai concluir uma série de estudos iniciados entre
1997 e 1998, promete revelar uma radiografia do pequeno
agricultor nordestino e do caminho do dinheiro público
investido em uma política fundiária inédita
no país.
Com recursos de US$ 150 milhões co-financiados
pelo Banco Mundial (Bird), o PCT já distribuiu
cerca de US$ 75 milhões para mais de 7 mil famílias
que adquiriram, até 1999, 242 imóveis rurais
espalhados por cinco estados: Bahia, Ceará, Maranhão,
Pernambuco e a região Noroeste de Minas Gerais
localizada no chamado Polígono das Secas. A meta
é atingir 15 mil famílias.
Para
alcançar este objetivo, porém, o Bird usou
seu poder de agente financiador e exigiu que o PCT fosse
avaliado de maneira a não se tornar apenas mais
um programa oficial fadado ao descaminho, como se verificou
em programas tradicionais de reforma agrária.
O
trabalho de avaliação foi encomendado à
Unicamp por Edson Teófilo, diretor do Núcleo
de Estudos Agrários e Desenvolvimento (Nead), órgão
do Ministério de Desenvolvimento Agrário.
Um dos patrocinadores da idéia, Teófilo
foi inspirador do Projeto Piloto São José,
no interior do Ceará, que propunha uma forma diferente
de distribuir terras para pequenos agricultores e agricultores
sem-terra. Um programa que combina crédito
para aquisição de terras com a idéia
do associativismo rural, peça chave no Projeto
São José, e que assim explora uma tradição
cearense estimulada por órgãos do governo
estadual, explica o professor José Maria
da Silveira, do IE.
O
trabalho de avaliação exigiu a formação
de uma equipe de especialistas escalados entre a Unicamp,
USP, UFSCar e de 64 entrevistadores recrutados em quatro
universidades federais da região abrangida e ainda
de uma ONG (Organização Não-Governamental)
de Minas Gerais. Avaliar é importante para
dirimir críticas. Isso fornece a base para que
o debate se apoie em argumentos fundamentados, levando
constrangimento àqueles cuja crítica é
baseada em achismos, enfatiza o coordenador dos
estudos de avaliação, Antonio Marcio Buainain,
professor do IE da Unicamp.
Algumas
regras Em linhas gerais e com pequenas
exceções, os executores do programa nos
estados fixaram algumas regras para os candidatos,
explica José Maria. Para se cadastrar nas associações
beneficiárias do PCT, os candidatos teriam que
ser pobres, maiores de 18 anos e menores de 65, possuir
vocação para o serviço agrícola,
um mínimo de espírito empreendedor e, preferencialmente,
estarem casados.
Quanto
ao favorecimento de casados na triagem, a justificativa
é preservar as associações do chamado
risco social. Entende-se que os casados têm
mais responsabilidade e cimento social. Sem vínculo
com o grupo, o associado pode abandonar o programa depois
de apoderar-se dos US$ 1,3 mil que cada família
recebe a título de doação para sua
manutenção, explica José Maria,
referindo-se a um crédito a que cada família
tem direito ao ser contemplada pelo PCT.
O
estudo da fase de implantação do projeto,
finalizado em janeiro de 2000, mostrou que as comunidades
constituídas por pessoas que mantêm algum
tipo de ligação compromisso social
são consideradas com maior probabilidade
de sucesso. Isto vem do fato de que quanto mais
coesa a comunidade, melhor é o monitoramento entre
os pares, visando avaliar comportamentos oportunistas
que prejudiquem o coletivo. Notamos alguns casos de comunidades
formadas por pessoas vindas de diversos lugares, só
para atender ao chamado do PCT, que tiveram altíssima
taxa de desistência, comprometendo seu sucesso,
informa o professor. Quando alguém abandona o programa,
tem como punição a inadimplência,
mas deixa a dívida para os que ficam com a missão
de viabilizar a empreitada.
Aumento
de risco O objetivo de focalizar as populações
estruturalmente pobres foi considerado fácil pelo
fato de o PCT ter-se difundido no Nordeste. Mas os riscos
de fracassos aumentaram em função de suas
condições naturais e culturais. É
difícil compatibilizar o baixo nível de
instrução dos beneficiários com capacidade
de gerenciamento das propriedades, daí a necessidade
de assistência técnica e atividades associativas,
observa José Maria.
Uma
das críticas consideradas pertinentes ao PCT, apontada
em vários debates e pelos próprios estudos
de avaliação, é que a região
abrangida impõe desafios terríveis. As
áreas sofreram cinco anos de seca, considerada
a pior em 50 anos, explica. Além disso, o
professor lembra que nas regiões onde o programa
teria mais chances de sucesso, como a Zona da Mata de
Pernambuco, em que água é abundante, a terra
tem preços que fogem do alcance do financiamento.
------------------------------------------------------------------------------------
Idéia
é criar e potencializar comunidades
O
Programa Cédula da Terra tem características
semelhantes às de similares desenvolvidos com supervisão
do Bird na Colômbia e na África do Sul. A
diferença em relação a formas tradicionais
de reordenamento fundiário, segundo José
Maria da Silveira (IE), é que o PCT utiliza mecanismos
que incentivam o associativismo rural e dão rápido
acesso à terra para grupos que se consideram aptos
a seguir as regras preestabelecidas pelo banco.
O
programa não se limita a financiar compradores
de terras. A idéia é a criação
de compromisso e potencialização das comunidades,
explica José Maria, lembrando que a proposta foi
fundamentada nos trabalhos do economista Amartya Sen,
Prêmio Nobel em 1999.
O
mecanismo do PCT foi definido pelo Nead e pelos técnicos
do Bird. Consta de um conjunto de pontos um pouco complicados
para quem não está familiarizado com mecanismos
de política agrícola. Em síntese
dá-se um teto por família de US$ 11.200.
Para que as famílias consigam fazer a transição
para o projeto que vai ser instalado, destina-se R$ 130
por mês por família, em um ano, que por sua
vez são descontados do valor teto.
Em
seguida fornece-se um crédito fundiário
a juros favorecidos, por 20 anos, com três anos
de carência. Ele serve para pagar a propriedade
(terras nuas e benfeitorias, fixados pela negociação).
Se as famílias negociam bem o valor da terra, sobra
uma diferença entre os US$ 11.200 e o que é
gasto com a área e manutenção das
famílias, para o investimento comunitário,
que não será pago. O limite para o subsídio
ao investimento é de US$ 3.800/família.
Quanto melhor negociarem o valor das terras, mais
condições de investimento as famílias
terão em infra-estrutura, explica José
Maria.
Arbitragem
A compra da terra, ao contrário do que se
possa imaginar, não se caracteriza como uma simples
barganha, segundo mostrou outro estudo de avaliação
do programa. A negociação é feita
pelas associações com arbitragem dos órgãos
estaduais da reforma agrária e obedece a certos
critérios, como a proibição de que
sejam abandonadas e, portanto, passíveis de desapropriações.
Os mecanismos para dar crédito de US$ 3,8 mil por
família acaba por estimular a formação
de associações que reúnem até
100 famílias, o que garante a captação
de US$ 380 mil a fundo perdido só para investimento
comunitário. Mas os observadores fazem uma ressalva:
neste caso, a seleção dos associados é
ruim e a coesão social vai para o brejo.
Os
estudos detectaram um número médio de 29
famílias, por projeto do PCT, que tende a diminuir
em função da exigência de que a propriedade
não seja passível de desapropriação
para reforma agrária, o que limita o estoque de
terras disponíveis.
Competitividade
Quanto menor o número de associados, mais
coeso se torna o grupo, segundo os estudos. O trabalho
de avaliação preliminar considerou que a
aplicação correta do esforço comunitário,
gerando motivação individual bem direcionada
pelo chamado monitoramento dos pares, cria condições
de tornar os assentamentos competitivos em relação
a grandes propriedades que precisam arcar com o custo
do monitoramento do trabalhador assalariado, ou seja,
para verificar se ele está realmente empenhado
em cumprir sua tarefa.
José
Maria lembra que muitas formas tradicionais de exploração
do trabalhador no sertão ou em regiões mais
adiantadas visam jogar no trabalho da família meeira
ou arrendatária, a responsabilidade pelo sucesso
da exploração agrícola. A diferença
é que famílias associadas do PCT conquistam
o que sobrar do pagamento da terra e ainda podem reaplicar
como bem entenderem.
|
|