Droga usada no tratamento do diabetes
é nova arma para o combate ao câncer
Nova via bioquímica é testada com
êxito a
partir de combinação de medicamentos
Pesquisadores do Laboratório
de Oncologia Molecular da Faculdade de Ciências Médicas (FCM)
da Unicamp testaram com sucesso uma nova via bioquímica para
o tratamento do câncer. O estudo associou a metformina, o
principal medicamento utilizado no tratamento do diabetes
tipo 2, ao quimioterápico paclitaxel, droga utilizada em pacientes
com câncer de mama e pulmão. Nos estudos realizados in vitro
e em cobaias, os pesquisadores conseguiram inibir o crescimento
do tumor. Esta associação representa um avanço na terapia-alvo
e surge como nova linha de tratamento para os pacientes com
câncer.
Isto
foi possível devido ao “insight” dos pesquisadores em perceber
a lógica bioquímica que existe por trás de ambas as doenças,
que têm uma causa comum para cerca de 30% dos casos de câncer
registrados no mundo: a obesidade. A pesquisa está sendo publicada
na revista norte-americana Clinical Cancer Research
e teve como base a dissertação de mestrado “Efeito do paclitaxel
na via IRS/PI3K/ Akt/mTOR em linhagem de adenocarcinoma de
mama e carcinoma de pulmão”, defendida no ano passado no programa
de pós-graduação em fisiopatologia médica da FCM pelo biólogo
Guilherme Zweig Rocha. A orientação do trabalho foi do professor
do Departamento de Clínica Médica e médico oncologista José
Barreto Campello Carvalheira.
A estreita relação entre a
obesidade e o câncer vem sendo confirmada por meio de estudos,
pesquisas e análises em todo o mundo. O Instituto Nacional
de Câncer (Inca) classifica o excesso de peso como o segundo
maior fator de risco evitável para a doença. Segundo a União
Internacional de Controle do Câncer, obesidade e sedentarismo
são os principais fatores de risco para cerca de 30% dos casos
da doença. O mecanismo de como isto acontece merece atenção
de pesquisadores do mundo todo.
No caso do diabetes, a relação
é a mesma. Indivíduos com sobrepeso ou obesidade têm três
vezes mais risco de desenvolverem diabetes do que uma pessoa
considerada com peso normal. Para o tratamento do diabetes
tipo 2, a droga mais utilizada no mundo é a metformina.
A metformina é um medicamento
oral derivado da guanidina, o composto ativo originário da
Galega officinalis, erva medicinal também conhecida
como Lilac e usada por séculos na Europa como tratamento do
diabetes desde a Idade Média. A metformina reduz a ocorrência
de todas as complicações do diabetes e também pode reduzir
discretamente os níveis de LDL, conhecido como colesteraol
ruim, e de triglicérides.
“Na busca de um mecanismo
comum para a origem da obesidade e do câncer e com o conhecimento
prévio de que a metformina, ao entrar na célula, levava à
ativação de uma proteína-chave que regula a proliferação celular,
procuramos por quimioterápicos cujo efeito atuasse nesta mesma
proteína. E achamos um que fazia isto. A ideia foi associar
as drogas e o resultado que encontramos foi surpreendente”,
disse . José Barreto Campello Caravalheira.
Quimioterapia moderna
Dentre os muitos desafios
da medicina, nenhum teve início mais controverso do que o
tratamento do câncer. O início da era moderna da quimioterapia
pode ser vinculado diretamente à descoberta do gás mostarda.
Em 1942, Louis Goodman e Alfred Gilman, ambos farmacologistas,
trataram um paciente portador de linfoma não-Hodgkin com o
gás mostarda baseado em achados da autópsia de soldados que
morreram na I Guerra Mundial.
Uma segunda abordagem para
o tratamento do câncer teve início logo após a Segunda Guerra,
quando Sydney Farber, um patologista da escola de medicina
da Harvard, investigou o efeito do ácido fólico em pacientes
com leucemia. A partir de 1950, outras drogas antileucêmicas
foram estudadas e iniciou-se a era da quimioterapia com ensaios
in vivo para inibição da síntese de DNA.
Em
1956, o Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos estabeleceu
um amplo programa para a coleta e teste da atividade anticâncer
de plantas e algas marinhas. Este programa resultou na descoberta
dos taxanos e das camptotecinas. O paclitaxel é um dos principais
taxanos usados atualmente e cuja promoção de morte celular
decorre de seus efeitos em microtúbulos. Inicialmente, o paclitaxel
era difícil de ser sintetizado e virtualmente insolúvel, só
tendo sido possível seu uso clínico a partir de 1991. O paclitaxel
é um dos mais importantes quimioterápicos surgidos no final
do século XX.
Sinalização celular
A complexidade do desenvolvimento
e crescimento de organismos pode ser atribuída às interações
dinâmicas e diversas entre hormônios, fatores de crescimento,
contatos entre as células e outros estímulos externos que
coordenam o destino de cada célula através de seus receptores
de membrana. A explosão da pesquisa em transmissão do sinal
intracelular nos últimos dez anos vem decifrando os mecanismos
básicos de sinalização intracelular de um grande número desses
receptores de membrana.
Um dos mais interessantes
aspectos da transmissão do sinal intracelular descoberto nos
últimos cinco anos é a constatação de que muitas vias de sinalização
com diversas ações podem interagir em múltiplos níveis – isto
é frequentemente chamado de crosstalk. A elucidação das vias
de crescimento celular e a observação de que essas vias estão
alteradas no câncer humano levou a procura de inibidores específicos.
A célula é um dos menores
organismos vivos. Além da membrana plasmática, núcleo, ribossomos,
complexo de Golgi, mitocôndrias, cromossomo e DNA, 10% dela
é constituída de proteínas, enzimas e outras estruturas. Uma
das características mais comuns das células cancerígenas é
o seu ritmo rápido de divisão celular, conhecida na biologia
como mitose. A fim de acomodar isto, a célula está em constante
reestruturação. Flexibilidade é a chave.
Em sua dissertação de mestrado,
Guilherme Zweig Rocha descreve o funcionamento do paclitaxel
e os caminhos de sua ação na célula. Três proteínas participam
deste processo. A proteína p53 é citoplasmática e sintetizada
pela própria célula responsável por ativar a maquinaria de
reparo do DNA. A AMPK, sigla de proteína quinase ativada por
AMP, é uma proteína que exerce efeitos sobre o metabolismo
da glicose e dos lipídios. A AMPK é como um sensor energético
e pode ser denominada de proteína-chave da célula. A mTOR
é a proteína responsável pelo crescimento celular, tanto de
células sadias quanto cancerosas.
O paclitaxel entra na célula
e se liga a microtúbulos impedindo a separação dos cromossomos
duplicados e a divisão das duas células filhas. Uma vez que
o número de cromossomos nas células está incorreto, a proteína
p53 é ativada para que a correção seja feita. A proteína p53
é responsável por “verificar” a integridade do material genético
da célula.
Se este material não estiver
da forma correta, a p53 é que ativa a maquinaria de reparo.
Se não for possível reparar o dano, a p53 também dá início
ao processo de apoptose, ou seja, a morte da célula.
“A ativação de p53 leva ao
aumento de proteínas chamadas sestrinas. As sestrinas ativadas
pelo estresse genotóxico causam, por sua vez, a ativação da
proteína AMPK. Essa ativação leva a inibição da mTOR, responsável
pelo crescimento do tumor. A via de sinalização AMPK/ mTOR
parece ser um bom alvo para o bloqueio de crescimento e morte
de células tumorais”, explicou Rocha.
Ao perceberem que tanto o
paclitaxel quanto a metformina atuavam na AMPK isoladamente,
tanto na quimioterapia quanto no tratamento do diabetes, os
pesquisadores resolveram associar os dois medicamentos para
o tratamento do câncer de mama e pulmão. De acordo com os
resultados do estudo, a combinação entre metfotmina e paclitaxel
tem efeito antitumoral capaz de induzir a interrupção do ciclo
celular do tumor cancerígeno.
O tratamento combinado das
duas drogas, descrevem, potencializa a ativação da AMPK e
leva a uma redução drástica de sinalização molecular através
da mTOR, o que diminui a proliferação celular. “Ao invés de
tentarmos inibir a mTOR no final do processo do desenvolvimento
do tumor, achamos melhor dar um passo atrás e potencializarmos
a ativação da proteína AMPK”, explicou Caravalheira.
Primeiramente, as células
de câncer de mama e de pulmão foram tratadas com metformina
e com paclitaxel em testes in vitro. Depois, foram inoculadas
em camundongos com a capacidade de permitir que células humanas
crescessem neles. Os animais foram tratados com metformina
ou paclitaxel separadamente ou com a combinação das duas drogas.
De acordo com a pesquisa,
os animais controle, isto é, sem tratamento, tiveram o tumor
aproximadamente cinco vezes maior que os animais com tratamento
associado. Nos animais tratados apenas com paclitaxel, o tumor
ficou o dobro do tamanho. No tratamento com metformina, alcançou
quase o triplo.
“Observamos que o tratamento
de metformina com paclitaxel resulta na parada do ciclo celular
na fase anterior à mitose e diminui o crescimento tumoral
em animais em relação aos tratamentos isolados e ao grupo
controle. Assim, podemos sugerir que a associação das duas
drogas potencializa a ativação da AMPK e leva a uma diminuição
da atividade de vias de crescimento, proliferação e diferenciação
celular. Esta pode ser uma alternativa mais eficiente para
o tratamento do câncer”, explicou Rocha.
Segundo Carvalheira, em oncologia,
as coisas não são passadas de uma fase de laboratório para
pacientes com tanta facilidade. Entretanto, por meio da aprovação
do Comitê de Ética em Pesquisa e pelos resultados promissores
obtidos nos estudos, pacientes com câncer de cabeça e pescoço
atendidos no ambulatório de Oncologia do Hospital de Clínicas
(HC) da Unicamp e no Hospital do Câncer de Barretos, interior
de São Paulo, já estão sendo recrutados para o tratamento
com esta nova combinação de medicamentos. A escolha desse
tipo de paciente é por causa da facilidade em se conseguir
a biópsia do tumor e analisar o processo bioquímico à luz
da descrição científica de todo a pesquisa.
“A proteína AMPK é um alvo
para o tratamento. É isto que sugerimos no artigo. Nós conseguimos
parar o crescimento do tumor. Temos fé nesta nova combinação
terapêutica”, disse Carvalheira.
Além de Rocha e Carvalheira,
o artigo publicado na Clinical Cancer Research teve
a colaboração de Marília M. Dias, Eduardo R. Ropelle, Felipe
Osório-Costa, Mario José Abdalla Saad, da área de medicina
interna do Departamento de Clínica de Médica, e Franco A.
Rossato e Aníbal E. Vercesi, do Departamento de Patologia
Clínica, ambos da FCM. A pesquisa teve apoio da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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■ Publicação:
Rocha GZ, Dias MM, Ropelle
ER, Osório-Costa F, Rossato FA, Vercesi AE, Saad MJA, Carvalheira
JBC. Metformin amplifies chemotherapy-induced AMPK activation
and antitumoral growth. Clinical Cancer Reaserch, 2011.
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