.Um
grito de alerta
O brasileiro precisa cuidar melhor da voz,
atentando para rouquidão e dores; País é
um dos líderes em mortes por câncer de laringe
FRANCISCO
BELDA
er
preocupação com a saúde vocal não
é um hábito do brasileiro. Mas basta o uso
constante da voz, aliado a fatores como o tabagismo e
o consumo de bebidas alcoólicas, para que se crie
uma situação de alto risco, talvez irreversível.
O problema geralmente começa com uma rouquidão,
algumas dores, e acaba indo muito além. O Brasil
já ocupa o segundo lugar no ranking mundial de
mortes causadas por câncer de laringe, atrás
apenas da Índia. São 15 mil casos diagnosticados
por ano, mais da metade deles fatais. E, mesmo feita a
ressalva de que muitos países ainda carecem de
dados para comparação, minimizar a dimensão
das moléstias vocais no País é como
remar contra a maré.
Pensando
nisso, profissionais de saúde que lidam com o tema
em todo o país deram, entre os dias 16 e 21 de
abril, um grito de alerta. Foi a terceira edição
da Semana Nacional da Voz, uma iniciativa da Sociedade
Brasileira de Laringologia e Voz. Só em Campinas,
a campanha envolveu 200 pessoas, entre médicos
otorrinolaringologistas, fonoaudiólogos, enfermeiras
e assistentes, todos voluntários. A palavra de
ordem foi prevenção. Em seis dias, mais
de três mil pessoas receberam orientação
e exames gratuitos em 15 postos de atendimento montados
em pontos estratégicos da cidade. Resultado que,
de tão positivo, já transportou a idéia
para países como a Argentina e a Espanha.
Este
trabalho busca condições de inferir números
reais em termos de freqüência, incidência
e mortalidade em decorrência de patologias vocais,
aponta o professor de Laringologia da Faculdade de Ciências
Médicas (FCM) da Unicamp, Reinaldo Gusmão.
Coordenador local da campanha, ele acredita que a incidência
de câncer de laringe entre brasileiros seja ainda
maior que a apontada pelas estatísticas oficiais.
A gente sabe que no Brasil esses estudos são
incompletos, ressalta.
O
esforço para reverter tal quadro passa necessariamente
pela orientação da população
e a reciclagem dos profissionais da rede primária
de saúde. O diagnóstico precoce é
feito através de um exame médico simples
e, freqüentemente, o primeiro sintoma é a
alteração vocal, que pode ser percebida
pelo fonoaudiólogo, afirma Aline Wolf, fonoaudióloga
e também coordenadora da campanha. Segundo ela,
quando o problema é prontamente detectado, o sucesso
no tratamento é praticamente certo, sem necessidade
de se recorrer à extração da laringe.
O recomendado é que se procure um médico
ou um fonoaudiólogo sempre que houver rouquidão
por mais de 15 dias.
Incidência
Reinaldo Gusmão identifica três fatores
que, em ordem de importância, contribuem decisivamente
para a incidência de tumores na região de
laringe. O principal é o tabagismo, presente em
cerca de 90% desses diagnósticos, conforme estimativa.
O álcool e o cigarro geralmente vêm
acompanhados de uma certa indisciplina alimentar, um certo
descuido geral, ressalta. Mas ele confirma que apenas
o hábito do fumo já funciona como um bombardeio
direto sobre a região que envolve as pregas vocais.
Além dos gases do cigarro, há o problema
da alta temperatura e dos produtos químicos que
são tragados pelo organismo.
Outro
fator que dificulta o combate ao câncer de laringe,
segundo o médico, é a dificuldade de acesso
da população aos especialistas, o que faz
com que o diagnóstico seja muitas vezes tardio
e o tratamento, então, pouco eficaz. Para
um povo que tem fome, que ainda morre de desnutrição,
falar em precaução com a saúde da
voz é bastante complicado, ressalta, apontando
ainda para a precariedade estrutural da rede pública
de saúde, tornando mais difícil a assistência
médica primária.
E neste mesmo sentido influiria, de forma geral, o despreparo
de agentes de saúde do país. Muitas
vezes não se identifica a rouquidão como
um dos principais sinais do câncer, diz Gusmão.
Disfonias
Apesar de sua letalidade, o câncer está
longe de ser a única patologia relacionada à
falta de cuidado com a saúde vocal. Nesta lista
podem ser incluídos os calos, pólipos e
edemas como causadores de disfonias em geral, que, embora
de tratamento mais simples, requerem cuidado sistemático.
Essas disfonias são alterações da
voz que geralmente decorrem de seu uso constante, sendo
velhas conhecidas de profissionais como cantores, professores
e advogados. A medicina aponta como sendo improvável
a evolução de disfonias ocupacionais até
a incidência de um câncer. De qualquer forma,
a abrangência deste que se considera seu grupo de
risco e os reflexos sociais do problema fazem com que
ele mereça atenção.
Pesquisa realizada recentemente pela Secretaria Estadual
de Saúde do Rio de Janeiro mostrou que 26% dos
professores sofrem ou já sofreram com a disfonia.
Pior: num universo de 120 mil profissionais do magistério
daquele estado, 300 estão atualmente afastados
de seus cargos por problemas relacionados à voz.
Isso representa um custo de R$ 3 milhões
por ano para o poder público, que tem de substituir
esses professores e remanejá-los para outros postos,
completa o otorrinolaringologista Ariovaldo da Silva,
que integra, com outros dois professores da Unicamp, um
programa voltado à prevenção e controle
de disfonias ocupacionais.
Ele
explica que são classificados quatro níveis
de profissionais da voz. No primeiro, que envolve cantores
e atores, por exemplo, a voz é tida como o próprio
instrumento de trabalho. A seguir estariam professores
e operadores de telemarketing, entre outros profissionais
cuja voz, embora essencial, é um meio de atuação.
O terceiro nível é composto por advogados,
médicos, jornalistas, também dependentes
da voz. E, por último, aqueles trabalhadores que
não têm a voz como algo importante do ponto
de vista profissional. A maioria dos problemas que
detectamos está dentro do segundo nível,
com professores principalmente, diz Silva. Cantores
e atores são sempre preocupadíssimos com
a voz, tomam cuidado, enquanto outras categorias às
vezes não sabem de técnicas para o uso adequado
desse instrumento.
Professores
E a correspon-dência prática desta
observação ficou nítida durante a
Semana Nacional da Voz, chegando inclusive a surpreender
alguns especialistas. Praticamente todos os professores
que estamos examinando têm algum problema de disfonia
funcional, apontou o médico residente em
Otorrinolaringologia pelo Hospital das Clínicas
(HC) da Unicamp Marcelo de Oliveira, que prestou atendimento
voluntário na sede da Associação
dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São
Paulo (Apeoesp) em Campinas. Ali, em apenas um dia de
atendimento, foram exa-minados 150 profissionais, número
que só não foi maior devido à falta
de adesão oficial das secretarias de ensino público
à campanha.
O
problema é que não há no país
uma consciência de que a voz é um instrumento
de trabalho e que, como tal, tem que ser preservado,
expõe o médico Luís Miguel Chiriboga,
pós-graduando pela Universidade de São Paulo
(USP) e também voluntário na campanha. A
prevenção é justamente o que diferencia
o primeiro mundo do terceiro, completa o médico.
Ariovaldo da Silva, da Unicamp, amplia a análise,
incluindo, até certo ponto, também a classe
médica nesta defasagem. Só nos últimos
dois anos é que a questão da saúde
vocal deixou de ser apenas uma idéia para ser encarada
como um problema real de medicina do trabalho, indica,
lembrando que o tema deverá motivar um Consenso
Médico de Disfonia Ocupacional ainda este ano.
E
como prevenção continua sendo a palavra-chave,
não há como fugir do diagnóstico
e receituário finais. Tudo isso deve ser
encarado como um grande alerta, sublinha o coordenador
da campanha em Campinas Reinaldo Gusmão. Estamos
jogando uma semente entre a população e
principalmente entre os agentes de saúde, que muitas
vezes vêm de faculdades de medicina sem um bom embasamento.
A idéia é que eles se reciclem e que em
médio prazo esse quadro atual possa se reverter.
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