Imprensa
O preço da conivência
Tese aponta nível de colaboracionismo de
jornalistas com a ditadura militar
Carlos Lemes Pereira
A fogueira das vaidades em torno da qual ainda dança uma considerável parcela da tribo dos jornalistas brasileiros está ameaçada por uma tempestade: Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, tese de doutorado da historiadora carioca Beatriz Kushnir, 35 anos, aprovada com louvor no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, em outubro do ano passado, desmistifica o dogma segundo o qual as redações dos jornais foram, invariavelmente, barricadas contra a ditadura militar e que a maioria de seus profissionais esteve na linha de frente da luta pelos direitos humanos inclusive a própria liberdade de expressão.
“Eu mesma acreditava nesse mito, tão cultuado na nossa mídia. Tanto que a pretensão inicial do meu trabalho se limitava a dissecar o modus operandi da censura naqueles anos de exceção. Mas, no aprofundamento das pesquisas, deparei com o elevado nível de colaboracionismo das redações da época com o regime”, conta Beatriz, sem disfarçar o tom de desencanto. Contudo, uma quebra de ilusão até saudável, em se tratando de um país que está sempre ante a desconfortável necessidade de retificar os registros de seu passado.
Não que, de forma absoluta, tivesse faltado heroísmo no embate jornalismo versus ditadura. Porém, recolocando a questão, o trabalho da historiadora situa os bolsões de resistência na chamada imprensa alternativa. Ou “nanica”. Na grande imprensa os “jornalões”, como ficaram pejorativamente rotulados a submissão (ou mesmo adesão ideológica, por que não?) era tão descarada que raros foram os veículos que precisaram contar com a presença full time de um censor nas redações. Inclusive, a primeira formação profissional de vários censores era exatamente a de jornalista.
Igualmente impactante para Beatriz foi a descoberta de policiais de carreira que eram destacados para trabalhar como jornalistas. Verdadeiros “cães de guarda” da ditadura soltos no burburinho das redações. Assim, graças a essa multiplicidade de recursos, censurava-se tanto pelo estilo brucutu, do corte daquilo que “não podia ser escrito”, quanto pelo estratagema mais sutil do próprio ato de escrever. Escritura da conveniência dos déspotas de plantão, lógico.
Financiada pela Fapesp com uma bolsa de quatro anos e meio, a pesquisadora começou o doutorado em 1996. Embora os capítulos iniciais tratem da censura desde a Proclamação da República, o principal caminho das pedras foi a vasta documentação do Departamento de Censura de Diversões Públicas da Polícia Federal, no Arquivo Nacional, em Brasília. Foi guiada por essa papelada que a historiadora chegou aos 11 censores que forneceram as entrevistas imprescindíveis para que um trabalho acadêmico acumulasse tamanho teor explosivo.
Primeiro susto “Assim que comecei a investigar quem eram os lendários censores da época, já levei o susto de esbarrar, de cara, com dez jornalistas, somente no primeiro grupo de nomes levantados”, lembra Beatriz. Do time dos 11 entrevistados, pouquíssimos autorizaram a divulgação de suas identidades reais. A maior parte é designada por nomes fictícios. Explica-se: muitos ainda são funcionários de órgãos da segurança pública, ou o que é mais embaraçoso estão devidamente “aclimatados” no meio jornalístico.
Um dos que não se incomodaram em ter o nome verdadeiro revelado é Coriolano de Loyola Cabral Fagundes, atualmente pastor evangélico. No governo Sarney (1985/1990), Fagundes chefiava o Departamento de Censura de Diversões Públicas e acabou ocupando um lugar no epicentro do episódio que precipitou a derrocada da censura: o veto ao filme Je Vous Salue Marie, de Jean-Luc Godard. Na esteira da polêmica que o caso suscitou, com manifestações de protesto pipocando por toda parte, o então ministro da Justiça, Fernando Lyra, viu seu cargo escoar pelo ralo que começava a tragar o entulho autoritário de um regime que já não mais se sustentava.
Digestão difícil
Com revelações bombásticas, mas sempre rigorosamente embasadas na pesquisa científica, é de se indagar por que as 437 páginas da tese de Beatriz Kushnir ainda não atraíram o interesse do mercado editorial. Ela não descarta a possibilidade de existirem barreiras de ordem corporativistas para que todo esse vespeiro se amplie na forma de um livro comercial. “Se o parecista de uma editora for um ‘homem de jornal’, será difícil digerir a tese”. E cita uma personalidade de peso do próprio meio jornalístico: “Como refletiu Jânio de Freitas, num artigo na Folha de S.Paulo, por ocasião dos 30 anos do AI-5, os jornalistas é que ainda contam suas histórias”.
Beatriz adianta que já cogita em procurar editoras universitárias para editar Cães de guarda. Nem sempre as portas das editoras privadas se fecharam para a historiadora, entretanto. A Imago publicou recentemente Perfis Cruzados trajetórias e militância política no Brasil, no qual Beatriz reúne artigos de pesquisadores, militantes e sim! jornalistas, numa reconstituição das várias frentes de resistência que a ditadura enfrentou.