Uma
pesquisa de fôlego sobre as condições de trabalho e suas
repercussões na saúde dos professores da educação básica,
que começou com um levantamento de teses e livros de toda
a produção do país nos últimos dez anos, culminou com um
livro sobre o assunto. O projeto – encabeçado pela Fundacentro,
instituição vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego
que promove pesquisas científicas e tecnológicas sobre a
saúde dos trabalhadores, e que teve apoio financeiro da
Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação
(MEC) – contou com a coordenação das professoras Aparecida
Neri de Souza e Márcia de Paula Leite, do Departamento de
Ciências Sociais na Educação (Decise) da Faculdade de Educação
(FE) da Unicamp. Reúne em mais de 100 páginas o estado da
arte a partir de temas como o trabalho docente em números,
o mal-estar docente, o estresse emocional, os distúrbios
vocais e a síndrome de Burnout. As primeiras conclusões
foram categóricas: é preciso conhecer mais as causas que
levam os professores a adoecerem, não somente combater as
consequências.
O projeto que coube à equipe
da Universidade, composta por 13 colaboradores (entre eles
professoras da Unesp de Araraquara, pesquisadoras da USP,
doutores e pós-graduandos da FE), além das coordenadoras,
consistiu em uma análise das tendências, nas pesquisas acadêmicas,
sobre o trabalho e a saúde de professores no período entre
1998 e 2007. Para fundamentar o trabalho, as coordenadoras
analisaram 64 resenhas (50 dissertações, 10 teses de doutorado
e 4 livros) elaboradas pelos pesquisadores; o levantamento
foi feito com base no Banco de Dissertações e Teses organizado
pela Capes, no Sistema de Bibliotecas da Unicamp, com base
acervus, e nas bases de dados das bibliotecas das universidades
brasileiras que foram consultadas em meio eletrônico. Foi
empregado também o sítio do Scientific Electronic Library
On Line (Scielo), organizado pela Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (Fapesp).
Para concluir o levantamento,
foram gastos dois meses, exigindo dedicação de seus participantes,
conhecimento teórico e metodológico sobre educação e trabalho.
Mas o trabalho ficou robusto e permitiu dar visibilidade
à produção das universidades brasileiras em torno da temática.
Fruto dos estudos, eles agora estão organizados em dois
volumes – o primeiro com o estado da arte e o segundo com
as resenhas.
Um ponto que sobressaiu
facilmente à análise foi que, embora a escola sendo reconhecida
grosso modo como uma instituição em que as condições de
trabalho são ruins, o professor foi considerado, paradoxalmente,
um profissional com alta qualificação profissional no mercado.
Ainda que soe uma contradição, ficou claro que o professor
não realiza suas tarefas mecanicamente e busca um sentido
para o trabalho que faz. Neste particular, a pesquisa revelou
que o trabalho do professor, organizado em ciclos longos
e flexíveis, favorece o seu controle, ainda que relativo,
sobre o processo de ensino, expressão de criatividade e
inovação.
O material coletado contextualizou
o trabalho docente no presente, ao relacioná-lo às exigências
crescentes da sociedade e ao levar em conta a realidade
social marcada pelas desigualdades sociais, pela violência
e pela falta de perspectiva de futuro dos jovens (grupo
social mais atingido pelo desemprego). Conforme a pesquisa,
esses aspectos têm criado uma crise de identidade nos professores,
que vão perdendo a referência sobre o que devem fazer no
ofício de ensinar.
A importância da escola
no processo de mobilidade social, relata Neri, tem sido
colocada em dúvida, ao mesmo tempo em que o mundo do trabalho
vem valorizando-a como uma possibilidade de acesso ao restrito
mercado de trabalho. Sem garantir, no entanto, a inserção
dos jovens escolarizados. Tudo isso lança uma pergunta que
parece cada vez mais difícil de ser respondida: qual o papel
social da escola atualmente?
A dificuldade de responder
a essa questão tem levado a outra contradição no universo
escolar: entre o cotidiano dos professores e a teorização
do papel da escola. A defasagem entre o trabalho a ser realizado
e a realidade é cada vez maior, segundo as pesquisadoras.
Os autores a caracterizam como “a face oculta de nossa modernidade”
e concluem que, quanto maior for essa defasagem, maior será
o investimento afetivo e cognitivo exigido do professor,
demandando maior esforço e sofrimento psíquico dele.
Um panorama a ser considerado,
e que permeou o levantamento, foi a necessidade ainda do
estabelecimento de um vínculo afetivo e emocional para o
exercício da atividade docente. Entretanto, o trabalho sugeriu
que este vínculo está sendo bloqueado pelo jogo de interdições
que caracterizam a atuação dos profissionais da educação.
“Isso define o aparecimento de sofrimento psíquico, que
ocorre quando o investimento, afetivo, emocional e cognitivo,
não tem retorno, como nas relações entre professor e aluno”,
exemplifica Neri. “Mas isso não fornece base e argumentos
fortes para responsabilizar a qualificação da força de trabalho
dos profissionais da educação pelas mazelas e pela baixa
qualidade do ensino no Brasil”, esclarece.
Achados
Durante o levantamento, a equipe da Unicamp cruzou dados
sobre o número de professores e sua escolarização com o
nível de ensino. Atualizando esses dados com os do Censo
de 2007, temos que dos 1.882.961 professores brasileiros
que davam aulas no ensino básico, 75% estavam concentrados
no ensino fundamental, sendo que 36% davam aulas para as
quatro séries iniciais e 39% nas quatro séries finais. Ainda
na educação infantil e no ensino fundamental, professores
com escolaridade equivalente ao ensino médio eram quase
a metade, embora a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB) de 1996 indicasse que todos deveriam ter
nível superior.
Os dados apontaram que possuíam,
em 2007, formação profissional em nível superior: 65% dos
professores da educação fundamental (quatro séries iniciais)
e 42% das creches. Dentre os professores do ensino fundamental
(quatro séries finais) e ensino médio (antigo segundo grau),
que historicamente são formados em cursos de licenciatura
de nível superior, 15% ainda não possuíam esta escolaridade.
A escolarização dos professores
brasileiros, menciona Márcia, mesmo tendo passado por um
período de investimento em políticas de formação profissional,
ainda conta com um contingente expressivo que não tem ensino
superior. Estes dados foram obtidos do Censo Escolar da
Educação Básica, de 1997, por não estarem disponíveis para
consulta, à época, o último censo. Cabe aqui uma ressalva
de Márcia: os dados mudaram do Censo do Professor, realizado
em 1997, para o Censo da Educação Básica de 2007. “Em 1997,
apenas 50% dos professores brasileiros tinham escolaridade
de nível superior. Hoje são 70%”, informa.
Ao avaliarem a diversidade
regional do território brasileiro, as pesquisadoras perceberam
pouca participação da esfera federal na oferta do ensino
básico. Esse achado continua válido com a atualização dos
dados para 2007: a escola pública continua em 2007 majoritariamente
municipal, em relação ao país todo, com 44% dos professores
brasileiros trabalhando nestas escolas. No Nordeste eram
59%, no Sudeste 35%, no Sul 37%, no Norte 53% e no Centro-Oeste
42%.
Abordando a distribuição
dos docentes por sexo, o Censo da Educação Básica, de 2007,
revelou que o espaço da educação básica era particularmente
feminino. Dentre 1.882.961 docentes, 1.542.925 eram do sexo
feminino contra 340.036 do sexo masculino. Em termos percentuais,
isso representava um universo de 82% de mulheres e apenas
18% de homens. Uma tendência que persiste na sociedade é
que o perfil predominantemente feminino se modifica quando
os professores percorrem os diferentes níveis de ensino.
Essa participação feminina concentra-se principalmente nos
níveis inferiores, no ensino infantil e fundamental I, onde
elas constituíam mais de 90%, no ensino fundamental II (quinta
à oitava série), onde elas eram 74% e no ensino médio, no
qual perfaziam 64%. “Esta concentração, se considerarmos
as relações de gênero, tem efeitos evidentes sobre a saúde
dessas professoras, se levarmos em conta não somente os
baixos níveis salariais que predominam, mas também as condições
em que as mulheres desenvolvem o trabalho, assim como a
maior incidência de sofrimento mental, estresse emocional
e Burnout entre elas”, pontua Neri.
Se a gestão escolar é democrática,
com mais participação social, tem impactos positivos sobre
as relações de trabalho nas escolas, apontam as pesquisas.
Segundo as coordenadoras da pesquisa, a forma democrática
é oportunidade alvissareira para melhorias das condições
de trabalho, com ações de combate à violência e defesa do
patrimônio público contra atitudes de vandalismo, além de
melhoria da qualidade do ensino. Em escolas geridas democraticamente,
verificou-se inclusive uma maior participação da comunidade
e envolvimento dos familiares nos problemas comuns da escola.
Os dados do Censo dos Profissionais
do Magistério, de 2003, sugeriram que os professores que
exercem sua função na educação infantil e no ensino fundamental
de primeira a quarta série recebiam os salários mais baixos,
em média R$ 676,00 mensais. Aqueles que atuavam no ensino
fundamental de quinta a oitava série recebiam em média R$
854,56 e os do ensino médio atingiam maiores remunerações:
R$ 1.059,80.
No levantamento, tomando
como exemplo algumas ocupações de diversos níveis de especialização,
depreendeu-se que, mesmo aquelas que requeriam baixa escolaridade
ou formação profissional de nível básico, alcançaram níveis
mais elevados de remuneração, especialmente os de educação
infantil. Entre os docentes do ensino médio, os salários
são, em sua grande maioria, inferiores aos recebidos por
profissionais com escolaridade equivalente ao nível técnico
(veja na página ao lado).
Mal-estar
docente
Uma primeira radiografia demonstrou que a discussão sobre
trabalho e saúde do professor no país avançou significativamente
na última década. Não obstante, prosseguem algumas deficiências
sinalizando para o longo caminho a ser percorrido – a sua
exposição a temperaturas inadequadas, ruídos, superlotação
das salas, cansaço extremo pelas longas jornadas de trabalho,
dupla jornada das mulheres, falta de tempo para si e para
se atualizarem, angústia pelas exigências sociais em termos
de atividades, complexidade das tarefas aliada à falta de
recursos, problemas sociofamiliares dos alunos, ritmo de
trabalho, multiplicidade de tarefas simultaneamente às posturas
desconfortáveis, pouca frequência de pausas, falta de valorização,
burocratização das atividades, falta de diálogo com a administração
das escolas e expansão dos contratos de trabalho temporários
e eventuais.
Conforme Neri, em geral
os professores enfrentam estes problemas respondendo com
atrasos, faltas, queda da qualidade e desinteresse pelo
trabalho, e adoecimento. Um fato intrigante, expõe ela,
é que a legislação trabalhista ainda não reconhece como
doença ocupacional o estresse laboral e os distúrbios da
voz. Somam-se a isso algumas estratégias de resistência
que são adotadas pelos professores: um processo de desinvestimento
subjetivo e individualismo; a recusa à troca de série, método
de ensino e resistência a inovações tecnológicas; atribuição
de culpa aos alunos por seu fracasso escolar; desvio de
função; licença sem vencimento; uso da família como bode
expiatório; recusa para se assumir como professor da escola
pública; e evasão ou abandono da profissão.
A partir do estado da arte,
foram realizadas entrevistas com professores para conhecer
as atividades e condições de trabalho, procurando entender
como elas podem afetar a sua saúde, pelos pesquisadores
da Fundacentro em colaboração com as confederações sindicais
de professores do setor público e do setor privado. Nestas
entrevistas, o professor de uma escola estadual de SP relatou:
“eu trabalho só no Estado. Já trabalhei em escola particular
e no Estado e no município e no Estado. Agora estou com
dois cargos no Estado, não com carga horária integral em
cada um porque não aguento. Mas tem professores que dão
até 64 aulas semanais.” Outros dois professores mencionaram
os dilemas em escolas privadas de SP: “tenho 50 alunos na
sala de aula. Para mim, é normal ter 50 alunos na rede estadual,
mas não na particular” e “é uma jornada estafante demais.
São 20 turmas por semana em escola pública”.
Através de apurada revisão
da literatura, foi possível estabelecer um consenso que
o mal-estar docente é um fenômeno social do mundo ocidental
que possui como agentes desencadeadores a desvalorização
concomitante às constantes exigências profissionais, a violência
e a indisciplina, entre outros fatores, que acabam por promover
uma crise de identidade em que o professor passa a se questionar
sobre a sua escolha profissional e o próprio sentido da
profissão. “Praticamente a totalidade dos trabalhos analisados
faz referência ao mal-estar docente, discutindo como ele
se manifesta em diferentes contextos do ensino básico, em
escolas públicas e em escolas privadas”, conta Márcia.
Riscos
Esse mal-estar passa a se manifestar em sentimentos negativos
intensos como angústia, alienação, ansiedade e desmotivação,
além de exaustão emocional, frieza perante as dificuldades
dos outros, insensibilidade e postura desumanizada. A profissão
docente é hoje considerada como uma das mais estressantes,
uma profissão de risco, conforme a Organização Internacional
do Trabalho (OIT). E, não raro, os professores partem para
a fuga de olhar o processo sem se reconhecer nele. Nas mulheres,
os principais efeitos do mal-estar são amenorreia, cefaleia,
melancolia climatérica, frigidez, anorexia, bulimia, neurose
de ansiedade e psicose depressiva .
A opção de ouvir professores
de escolas públicas e privadas se mostrou acertada, de acordo
com as coordenadoras do estado da arte, para desmistificar
a ideia de que somente na escola pública há difíceis condições
de trabalho. Serviu ainda para apontar que os múltiplos
empregos são assumidos por professores para conseguir um
ganho razoável no fim do mês. Mas o mais importante foi
evidenciar como as condições nas quais os professores realizam
seu trabalho produzem seu adoecimento físico e mental e
que eles enfrentam estes problemas de forma individualizada.
As autoras reiteram que as pesquisas mostram a necessidade
de o poder público construir políticas públicas que enfrentem
as suas origens em oposição às políticas que pretendem atingir
somente os efeitos, tais como a premiação dos assíduos.
Muitos outros pontos foram
analisados pela pesquisa, entre os quais distúrbios vocais,
que atingem significativamente os professores que fazem
uso da voz como instrumento de trabalho, e a síndrome de
Burnout. Esta síndrome vai avançando com o tempo, corroendo
devagar o ânimo do trabalhador, que vai se apagando. É uma
desistência de quem ainda está lá, encalacrado em uma situação
de trabalho que não pode suportar, mas que, concomitantemente,
também não pode desistir. O trabalhador arma inconscientemente
uma retirada psicológica, um modo de abandonar o trabalho,
apesar de continuar no posto. Está presente na sala de aula,
mas passa a considerar cada aula, cada aluno, cada semestre
como números que vão se somando em uma folha em branco.
Os estudos sobre a síndrome em professores a associam a
respostas individuais aos estressores interpessoais ocorridos
em situações de trabalho. Uma diferença significativa entre
o Burnout e o estresse é que este último afeta somente a
pessoa envolvida, enquanto o Burnout afeta todos os envolvidos
na situação de trabalho e nas relações pessoais, prejudicando
não apenas o professor, mas também os alunos e comprometendo
todo o processo de ensino-aprendizagem. A alta frequência
do Burnout entre os professores brasileiros consiste numa
evidência das difíceis condições de trabalho a que eles
estão submetidos e, em consequência, as precárias condições
de ensino e aprendizagem que ainda estão presentes na maior
parte das escolas do ensino básico do país.
Projeto foi estruturado
em três ações
A Fundacentro é uma
fundação de natureza jurídica de Direito Público que
tem por finalidade principal a realização de estudos
e pesquisas na área da saúde e segurança do trabalho
e a difusão desses conhecimentos. Neste contexto,
o projeto “Condições de trabalho e suas repercussões
na saúde dos professores na educação básica no Brasil”
teve dois objetivos principais. O primeiro foi conhecer
as condições de trabalho desses professores em diferentes
situações de trabalho, como zona rural e urbana; escolas
municipais e estaduais; ensino infantil e/ou fundamental
e/ou médio, grandes ou pequenas cidades, em todas
as regiões do Brasil.
Entendeu-se aqui por condições de trabalho o conjunto
dessas condições, materiais ou não, em que o trabalho
de um grupo de trabalhadores é exercido e compreende
desde as condições contratuais de trabalho e os níveis
de remuneração até as características dos locais,
as especificidades das tarefas e atividades exercidas.
O segundo objetivo foi relacionar as diferentes condições
de trabalho com a saúde dos professores.
O projeto foi estruturado
em três ações: a produção de um relatório, denominado
Estado da Arte, sobre os estudos recentes acerca das
condições de trabalho (já concluída); a análise coletiva
do trabalho ou no que consiste o trabalho dos professores
e no que ele difere conforme as situações em que é
praticado (esta etapa foi realizada nas cidades de
São Paulo, Salvador e Vitória da Conquista (BA), Teresina,
Água Branca, Picos e Luís Correa (PI), Campo Grande,
Belém e Porto Alegre; e a publicação e distribuição
de livros com os resultados finais do projeto. |
O conteúdo completo deste
material está disponível na Internet no site da Fundacentro
(www.fundacentro.gov.br),
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