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Um raio X dos efeitos das más
condições de trabalho para a saúde
Pesquisadores do Departamento
de Enfermagem investigam
várias profissões para nortear políticas públicas
ISABEL
GARDENAL
A
Finlândia introduziu no mundo as discussões sobre a capacidade
para o trabalho e a melhoria das suas condições, tornando-se
referência sobretudo para as nações europeias e asiáticas.
A espinha dorsal desse ideário se sustenta em medidas de
promoção à saúde, que são usufruídas naquele país
pelos trabalhadores com idade acima de 45 anos, graças
a incentivos para conceder-lhes uma vida mais longa e produtiva,
implementados mediante propostas de pesquisadores do Instituto
Finlandês de Saúde Ocupacional (Fioh). À luz da lógica,
para os países em desenvolvimento como o Brasil, estas
medidas deveriam iniciar em torno dos 35 anos, já que aqui
o trabalho muitas vezes começa antes e sem as condições
adequadas. Este tema tem suscitado o interesse de pesquisadores
da Unicamp. O grupo de pesquisa Saúde e Trabalho, do Departamento
de Enfermagem da Faculdade de Ciências Médicas (FCM),
reúne no momento 21 projetos de pós-graduação, entre
dissertações e teses, e 30 de iniciação científica,
sinalizando para a importância do diagnóstico e das ações
preventivas.
O termo “saúde do trabalhador”
refere-se a um campo do saber que visa compreender as relações
entre trabalho e processo saúde-doença. Baseadas neste conceito,
tais pesquisas, coordenadas pela professora Maria Inês Monteiro,
docente do Departamento de Enfermagem, estão trazendo como
elemento inovador a proposta de chamar os autores das investigações
para um contexto mais próximo da sua realidade, mais ligado
à família e à região em que residem.
Os pesquisadores fazem uma
verdadeira imersão nas ocupações abrangidas pelo grupo,
que tem como objeto de estudo as condições de trabalho.
Pelo menos nove investigações, concluídas ou em andamento,
abordam a problemática dos trabalhadores que atuam no mercado
de hortifrútis (motoristas de caminhão, proprietários de
bancas e carregadores), feirantes, trabalhadores de flores
de Holambra (SP) e de Andradas (MG), taxistas, profissionais
que trabalham com o processamento de aves e professores
de escolas públicas (leia textos).
Essa linha de pesquisa –
em capacidade para o trabalho – está inserida em projeto
universal do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq) e no Programa de Pesquisa em Políticas
Públicas da Fundação de Amparo ao Ensino e à Pesquisa (Fapesp).
O Grupo de Pesquisa do Departamento de Enfermagem da FCM,
criado há dez anos, tem como finalidades dar todo suporte
a um banco de dados em andamento sobre as condições de trabalho
e também se tornar um paradigma internacional em qualidade
de vida no trabalho, perpassando obviamente a rota da saúde
do trabalhador. Este banco de dados, abastecido pelas pesquisas
da equipe, informa Inês, é o maior em termos numéricos e
em diversidade de áreas nacionalmente, reunindo empresas
públicas, privadas, escolas e comunidade. Comporta cerca
de seis mil registros de pessoas oriundas de empresas de
diferentes portes.
As pequenas e microempresas
têm grande interferência na dinâmica da saúde do trabalhador,
garante a coordenadora do projeto, uma vez que as condições
de trabalho oferecidas a ele nem sempre são adequadas, seja
pelo acesso às informações, pelo modo como o trabalho se
organiza ou mesmo pelo acesso à promoção à saúde no trabalho.
Na década de 90, por exemplo, havia 2,7 bilhões de trabalhadores
no mundo, sendo 1 bilhão em micro e pequenas empresas. Ainda
segundo dados de 2002 do Sebrae, no Brasil estas empresas
empregavam 44% dos trabalhadores formais, além de aproximadamente
13 milhões de pessoas – proprietários e trabalhadores informais.
Também dos novos postos
de trabalho criados nos últimos sete anos, 96% estavam nas
empresas com até 100 empregados. Em 1997, essas empresas
eram responsáveis por 29% do Produto Interno Bruto (PIB)
do país e, em 2000, por 12,4% do total das exportações.
As micro e pequenas empresas – formais e informais – respondem,
portanto, por 60 milhões de pessoas (trabalhadores e empreendedores),
o que na opinião de Inês é um valor significativo e de expressivo
impacto na produtividade do Brasil.
Políticas
Após
a conclusão de uma série de projetos, Inês, que é enfermeira
na Unicamp há 28 anos e que tem uma formação também
nas áreas sociológica, epidemiológica e nas questões
referentes ao trabalho, além de sua proximidade com a área
de ciências humanas, defende que ao menos quatro medidas
seriam necessárias para melhorar as condições de trabalho.
Em primeiro lugar, implementar políticas públicas da saúde
do trabalhador. Em segundo lugar, garantir informações
e condições adequadas de trabalho, desde o ingresso do
trabalhador no mercado formal ou informal. Em terceiro,
incentivar a educação formal, conciliando-a com os horários
de trabalho. E, por fim, proporcionar o acesso à formação
permanente a todos os trabalhadores.
A legislação trabalhista
brasileira, vigente no país desde 1978, é baseada em normas
regulamentadoras, as NR, que vão sendo atualizadas pelo
Ministério do Trabalho conforme a necessidade e que estabelecem
as atividades mínimas que têm que ser concedidas em diferentes
áreas. Ela representou importantes avanços na esfera das
Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (Cipa), do
programa de prevenção de riscos ambientais, do programa
de controle médico de saúde ocupacional, ergonomia e trabalhador
de saúde. Inês reconhece, porém, que mesmo com os avanços
representados pelas NR, ainda faltam garantias do governo
em relação ao atendimento dos trabalhadores em micro e pequenas
empresas. Nas grandes empresas, já se concede inclusive
serviço de saúde do trabalhador na própria instituição.
A ideia, explica, é que o Estado consiga dar suporte à população
que trabalha, pensando em sua saúde como um todo e olhar
para a especificidade do seu trabalho.
Inês enfatiza que o grupo
de pesquisa Saúde e Trabalho tem estimulado um olhar para
a problemática da produção justa e sustentável, para os
aspectos de saúde do trabalhador e para a disseminação das
informações resultantes dos projetos e da formação profissional,
começando pelos alunos do Programa de Iniciação Científica
Jr. (PIC Jr.), passando pelos bolsistas-trabalho (SAE-Unicamp),
alunos de graduação, de pós-graduação, bolsistas de iniciação
científica (Pibic-CNPq e SAE-Unicamp), e mestrandos e doutorandos
que desenvolvem estudos nos locais que utilizam como campos
de estágio. “Fazemos o diagnóstico junto com a comunidade
que estudamos. Os dados são analisados. Eles ficam com uma
síntese para ser utilizada durante o planejamento das ações.
Outros alunos dão continuidade à pesquisa, ao ampliar os
projetos de intervenção. O intuito é o benefício que a proposta
traz, buscando identificar os principais problemas e auxiliar
na mudança da realidade, como forma de inserção dos alunos
e docentes da Universidade e de retribuição à sociedade.”
O que já foi investigado
Mercado
de hortifrútis
Um
projeto da Fapesp sobre as bases para a implementação
de um serviço público em micro e pequenas empresas
no mercado de hortifrutigranjeiros e de flores, coordenado
por Inês, recolheu o depoimento de 1.006 trabalhadores
de todas a frentes de trabalho da Central de Abastecimento
de Campinas (Ceasa-Campinas). Um deles foi a de carregadores.
A pesquisa mostrou, em linhas gerais, que a média de
idade deles era elevada; transportavam os produtos da
Central com carrinho manual, que tinha peso em torno
de 500 quilos a cada viagem; levantavam muito cedo (por
volta das 3 horas), em geral não se alimentavam; e
muitos trabalhavam adoecidos, por serem autônomos.
A análise dos dados
teve colaboração do sanitarista Heleno Rodrigues Correa
Filho, do Departamento de Medicina Preventiva e Social,
coordenador do grupo de pesquisa Epidemiologia e Trabalho.
Inês revela que os dados foram produzidos para a pesquisa
da Universidade e para a Ceasa ao mesmo tempo, a fim
de orientar o seu planejamento e as medidas a serem
tomadas.
Na Ceasa, foram
investigados os motoristas de caminhão que faziam rota
curta (no Estado de São Paulo) e rota longa (Nordeste
e Sul), na dissertação de mestrado de Valéria Masson,
cujo pai é motorista de táxi. Os principais problemas
enfrentados por eles, segundo a pesquisa, foram, entre
outros, lesões musculoesqueléticas, várias horas de
viagem, poucas horas de sono e uso de medicamentos para
se manterem acordados. A autora do estudo também enumerou
a exposição a produtos químicos como agrotóxicos e produtos
para o amadurecimento das frutas, exposição excessiva
a combustíveis, estresse, logística de prazos para venda
e entrega das mercadorias e trabalho heterogêneo, mesclando
diferentes culturas, classes sociais e ambientes.
Já Ângela Ferreira,
que é psicóloga, se interessou por entender a trajetória
profissional dos proprietários em termos de saúde –
donos dos boxes ou das “pedras” (estruturas abertas,
semelhantes a galpões) –, que, de acordo com ela, em
sua maioria estava envolvida literalmente em todas as
etapas do trabalho, sofrendo muito desgaste.
Segundo Ângela,
notou-se que este comércio passava de pai para filho,
com os jovens imprimindo um novo ritmo ao trabalho.
Curiosamente, em fase posterior, os mais velhos continuavam
acompanhando os familiares nos negócios. Durante as
entrevistas com os proprietários mais antigos, foi possível
compreender a trajetória da agricultura familiar no
Estado de São Paulo, desde a década de 20. A pesquisa
apontou ainda que os proprietários e os carregadores
eram os trabalhadores que mais adoeciam na Ceasa.
Feiras
Filha de feirantes, Simone Mondin estudou, na iniciação
científica, as condições de trabalho e estilo de vida
dos feirantes em Campinas, o que de certa forma a levou
a compreender a vida da sua própria família. As conclusões
foram que estes trabalhadores começavam o dia bem cedo
(por volta das 4 horas); em geral trabalhavam seis dias
por semana (um dia dedicado a compras); possuíam idade
média de 47,8 anos; 56% tinham salários entre R$ 700,00
e R$ 1.500,00; não usufruíam infraestrutura no local
de trabalho como sanitários e recinto para realizar
refeições; ficavam expostos ora à chuva e ora ao sol;
tinham que conviver com a rotina de montar e desmontar
as barracas, limpar o local depois da feira e pensar
inclusive como apresentar melhor os produtos que comercializam.
O estudo deixou claro que os feirantes gostam muito
do que fazem e que os familiares os ajudam mesmo no
período de férias. As feiras atuais, de acordo com Inês,
diminuíram muito e, entre outros motivos, devido ao
crescimento dos supermercados.
Flores
Como desdobramento do projeto Fapesp, Maria Cristina
Stolf Welle estudou no mestrado os trabalhadores de
flores em Holambra, SP, por residir nesta cidade e porque
sua família também atuava no ramo da produção de flores.
Avaliou fadiga e capacidade para o trabalho em empresas
de pequeno e médio porte. Os trabalhadores mencionaram
desgaste pelo excesso de horas trabalhadas, movimentos
repetitivos e posição cansativa. Estes profissionais
entrevistados eram jovens com idade até 40 anos, em
geral com baixa escolaridade. As mulheres tinham maior
percepção da fadiga do que os homens.
Para observar se
as condições dos trabalhadores de flores eram as mesmas,
Giuliana Bin, Flávia Nemézio e Stênio Trevisan Manzolli
identificaram, na iniciação científica, os riscos entre
trabalhadores de flores na cidade mineira de Andradas.
Os alunos verificaram também outras peculiaridades:
grande migração de outros Estados brasileiros, longas
jornadas de trabalho e horário de almoço maior para
as mulheres (uma hora além do horário normal), sob alegação
de que elas tinham que preparar a refeição em casa.
Homens e mulheres ganhavam salário mínimo.
Taxistas
Luciana
Tiemi tem o pai taxista e procurou avaliar na sua iniciação
científica, com bolsa CNPq, as condições de trabalho
e estilo de vida de motoristas de táxi na cidade de
São Paulo, em bairros da zona oeste. Verificou que
cerca de 70% dos motoristas de táxi tinham 40 anos
ou mais, todos eram do sexo masculino na amostra colhida
e 54% dos motoristas trabalhavam 14 horas ou mais sem
parar. Reclamavam de sua grande exposição à violência
e não tinham infraestrutura como banheiro, local para
fazer refeições ou para descansar entre uma corrida
e outra. Um dos taxistas entrevistados tinha mais de
70 anos e trabalhava como motorista há 54 anos. A maioria
apresentava sobrepeso e obesidade e pouco mais da metade
apenas conseguia tempo para realizar algum tipo de atividade
física.
Processamento
de aves
No mestrado, Eliane Goes escolheu estudar uma indústria
de grande porte no processamento de aves do interior
do Paraná, como subprojeto do edital universal do CNPq.
A entrevista foi realizada com 1.567 trabalhadores.
Eles tinham média de idade de 29 anos, baixa escolaridade,
presença de dor e 46,5% referiam lesões musculoesqueléticas.
Uma das problemáticas foi que os trabalhadores eram
jovens e dispunham de baixa capacidade para o trabalho.
Apresentavam problemas de deslocamento até o local do
trabalho (demorando horas para fazer o percurso até
a empresa e depois para retornar para casa), permaneciam
muito tempo em pé, realizavam movimentos repetitivos
e tarefas monótonas de corte das aves.
Professores
Outro subprojeto do edital universal do CNPq foi de
autoria de Tatiana Giovanelli Vedovato. No mestrado,
deu atenção às atividades dos professores tanto no ensino
fundamental como no médio de escolas públicas de Campinas
e de São José do Rio Pardo, depois de decidir saber
mais sobre a profissão de sua mãe, que é professora
do ensino fundamental. Em seus achados, observou que
os professores demonstravam desgaste elevado, relatos
de estresse frequentes no trabalho e carga horária pesada,
incluindo as atividades extraclasse. Abordavam queixas
sobre movimentos repetitivos na sala de aula e dificuldade
para conseguir mudar os métodos de trabalho. Os salários
variavam entre R$ 800,00 e R$ 1.500,00 para 54,7% dos
entrevistados e até R$ 799 para 21%, apesar de 96% deles
terem referido formação superior completa.
Curso de especialização capacita 34
profissionais
Por conta da
sua vocação para a pesquisa e da sua liderança,
a Unicamp foi escolhida pela Secretaria Municipal
de Saúde de Campinas para sediar um curso de
especialização em Saúde do Trabalhador Multiprofissional.
Criado pelo Centro de Referência em Saúde do
Trabalhador de Campinas (Cerest), sob responsabilidade
de Andréa Marques Tavares, o curso foi coordenado
por Inês, da parte da Unicamp, e pela professora
Márcia Hespanhol Bernardo, representando o Cerest.
Trata-se de um convênio que se presta a viabilizar
a iniciativa de capacitar profissionais que
atuam no Sistema Único de Saúde (SUS) na área
de abrangência do Cerest.
Trinta e quatro
participantes, provenientes de dez diferentes
profissões, concluíram a primeira edição do
curso no ano passado, que teve duração de 18
meses, com o objetivo de qualificar melhor os
profissionais da área pública que atuam nos
centros, distrito e serviço de saúde do trabalhador
de hospital público na área de saúde do trabalhador.
O conteúdo programático incluiu o estudo de
tópicos como o processo de trabalho, a epidemiologia,
a bioestatística e a saúde do trabalhador. A
monografia de conclusão de curso exigia do aluno
uma reflexão do cotidiano de trabalho, com aplicação
no seu próprio ambiente de atuação.
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Ações preventivas atenuam
problema
O
médico Juhani Ilmarinen, a socióloga Kaija Tuomi e colaboradores,
os primeiros profissionais a avaliar as condições de
trabalho na Finlândia, na década de 80, fizeram um amplo
estudo com trabalhadores do serviço público do país
porque pretendiam entender o adoecimento e a idade de
corte para a adoção de medidas preventivas à sua saúde.
Os especialistas perceberam que os problemas decorrentes
das condições de trabalho inadequadas ampliavam muito
entre cinco e dez anos. Pelo pioneirismo de Juhani e
Kaija, ganhou força a concepção de tentar manter a pessoa
ativa e com saúde no trabalho bem como nas atividades
da vida cotidiana. Mesmo depois da aposentadoria, este
conceito finlandês prossegue incentivando que as pessoas
continuem a desfrutar boas condições de vida.
Quando
visita a Finlândia anualmente e busca as respostas que
também motivaram os precursores a pensarem no trabalho
sob uma nova ótica, Inês constata que, no Brasil, invariavelmente,
as condições de trabalho não são ainda satisfatórias
e que os trabalhadores de micro e pequenas empresas
não têm sequer informações sobre os mecanismos que envolvem
o seu processo de trabalho e os riscos e perigos aos
quais estão expostos nas suas práticas diárias.
E
a realidade pode demorar para evoluir? Inês é otimista
e acredita que não. Utiliza a Coréia do Sul como exemplo
emblemático. O país saiu de uma situação econômica caótica
para uma mais confortável em dez anos de desenvolvimento.
A solução, acredita, pode estar na educação. “Com ela,
é possível as pessoas garantirem a construção de sua
própria autonomia.” Na Finlândia, relata, as autoridades
fazem o máximo para oferecer qualidade à saúde do trabalhador.
Quando ele adoece, promovem o seu afastamento, como
acontece em outros países, entretanto a política vigente
é a de procurar preservá-lo com ações preventivas para
que isso não ocorra ou aconteça menos. E, ao retornar,
deve ser recebido com condições adequadas para continuar
trabalhando.
Até
por causa da complexidade do tema, Inês comenta que
os projetos da Unicamp conseguiram construir parcerias
bem-sucedidas. Com apoio da Fapesp, a Universidade de
Massachussets, Umass, Lowell, EUA, e o Fioh, com sede
em Helsinki, capital finlandesa, encurtaram as distâncias.
Docentes das três instituições têm efetuado intercâmbio,
com viagens periódicas para conhecer o andamento dos
trabalhos em cada país. Inês, uma incansável pesquisadora
do assunto, incentiva agora as produções que contemplem
novas categorias de trabalhadores, para ampliar o conhecimento
e as ações que, a exemplo da Finlândia, podem ser também
modelos em capacidade para o trabalho no restante do
mundo.
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