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As muitas conexões do viajante que aportou em Apipucos

Os professores Elide Rugai Bastos, Enrique Larreta e Ricardo Benzaquen de Araújo, especialistas em Gilberto Freyre, analisam nestas e na próxima páginas aspectos da vida e da obra do cientista social pernambucano, a começar pelo interesse renovado sobre seus trabalhos e do papel desempenhado pelo sociólogo pernambucano na historiografia contemporânea. Avaliam também as escolhas feitas por Freyre nos campos estilístico, político e temático


ÁLVARO KASSAB



Gilberto Freyre e José Lins do Rego em passeio pelo Rio Capibaribe, no Recife (Foto: Acervo da Fundação Gilberto Freyre)Jornal da Unicamp – A obra de Gilberto Freyre volta à berlinda, com o relançamento de seus livros mais importantes e com duas biografias no prelo. O que isso significa?

Elide Rugai Bastos – Há, de modo geral, uma retomada de estudos sobre o pensamento social brasileiro. As reedições são um sintoma disso: por exemplo, do Correio Brasiliense, dos viajantes – como o texto de Henry Koster, Viagens ao Nordeste do Brasil – bem como o lançamento de uma coleção pela Biblioteca Nacional denominada Memória do saber. Se consultar a Pequena bibliografia crítica do pensamento social brasileiro, de Ronaldo Aguiar, poderá constatar o grande número de estudos sobre os pensadores sociais brasileiros publicados nos últimos anos.

O caso de Gilberto Freyre é especial, sendo que seus livros sempre tiveram grande receptividade, basta atentarmos para o número de edições de Casa-grande & senzala. Faltava, no entanto, a edição conjunta, elaborada com critério único, dos textos que compõem a Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil e mais Nordeste, que embora formalmente não faça parte desta, compõe sua temática central.

Quanto aos textos no prelo, são muito oportunos. Uma boa parte dos dados sobre a vida de Gilberto é pouco conhecida. Os autores que se dedicaram a esses dois trabalhos são excelentes pesquisadores e fornecerão, com certeza, elementos novos para nossos estudos.

Enrique Larreta – A “virada antropológica” das ciências sociais na última década, com destaque para o conceito de cultura, o pluralismo e a identidade no contexto da globalização, tem, sem dúvida, contribuído para novas releituras de Gilberto Freyre. Contudo, a história da recepção de Casa-grande & senzala revela sua importância constante no contexto brasileiro.

Ricardo Benzaquen de Araújo – Certamente há uma grande retomada. Durante um longo período, Gilberto Freyre ficou marcado por suas posições políticas, não somente por seu apoio ao golpe de 64, mas mesmo antes por seus vínculos com o salazarismo. Como ele sempre foi muito próximo do regime ditatorial de 64, difundiu-se uma imagem dele, e por conseqüência da obra, muito negativa. A minha sensação é de que, nos últimos dez anos, tem ficado mais claro que essas relações precisam ser examinadas com mais cuidado; elas são muito mais complexas do que parecem.

Desde logo, há uma diferença entre o Gilberto que está escrevendo nos anos 30 e o que está produzindo nos anos 70/80. Mais importante ainda: não há obrigatoriamente uma conexão entre posições políticas e criatividade intelectual. Mesmo o Gilberto dos anos 70/80, tão envolvido no apoio à ditadura, produz obras ainda muito interessantes. Mesmo os seus livros mais colados ao salazarismo, por exemplo, têm questões dignas de estudo.

Evidentemente, há um movimento mais geral, que não se limita à obra dele, de chamar a atenção para a existência de relações muito mais complexas entre vida intelectual e vida política. Não só Gilberto, mas nenhum outro pensador pode ser reduzido às suas posições políticas. A mesma coisa, por exemplo, acontece com Oliveira Vianna, com Francisco Campos e com outros intelectuais. Mesmo no plano internacional, há toda uma compreensão de que intelectuais ligados ao fascismo e ao nazismo, por exemplo, produziram ainda assim obra de valor, o que não significa, evidentemente, que nós devamos ter mais simpatia por esse tipo de regime. Mas, enfim, uma coisa não tem relação direta com a outra. Alguns vínculos podem ser percebidos, mas são de natureza muito mais complexa.

JU - Gilberto Freyre ainda exerce influência sobre a historiografia brasileira atual? Se exerce, qual seria?

Elide Rugai Bastos – Sem dúvida trata-se de um grande autor e sua contribuição iluminou vários aspectos da sociedade brasileira. A utilização de fontes historiográficas não convencionais, metodologia que aplicou pioneiramente no Brasil, está bastante presente na historiografia brasileira contemporânea, embora nem sempre essa inspiração provenha de sua obra.

Os estudos do cotidiano, da vida privada, também são característicos de seu trabalho. Outra vez vale assinalar o fato dessa perspectiva estar presente nos estudos contemporâneos, remarcando, ainda, ser de variada procedência essa forma de abordagem.

Enrique Larreta – Eu não sei se o programa de pesquisa de Gilberto Freyre inspira hoje aos historiadores brasileiros. Gilberto Freyre foi um pioneiro na incorporação das ciências sociais, particularmente a antropologia, na pesquisa histórica. Tem caráter de clássico da história cultural reconhecido por grandes historiadores como Fernand Braudel, Asa Briggs, Peter Burke e outros.

Ricardo Benzaquen de Araújo – Sobretudo no que se refere à produção mais recente acerca do período colonial, há todo um conjunto de colegas trabalhando em torno de relações de parentesco, chamando a atenção para questões que envolvem relações entre sexo e cultura, contatos entre raças etc. Há todo um conjunto de temas, examinados hoje em dia, que tem, evidentemente, muitos vínculos com a contribuição de Gilberto Freyre.


JU – Apesar de Freyre ter lecionado em universidades norte-americanas durante alguns períodos, ele sempre preferiu permanecer no Recife. De que maneira isto influenciou seu pensamento e sua produção?

Elide Rugai Bastos – Gilberto sempre confessou gostar de viver no Recife. Oliveira Lima, em suas cartas dos anos 1920, o aconselhou a ficar em São Paulo ou no Rio quando de seu retorno ao Brasil após os estudos nos Estados Unidos. No entanto, ao retornar ao Recife, passou a exercer uma notável liderança entre intelectuais e artistas. Passou, então, a influenciá-los sobre a importância da temática regional, o que viria a caracterizar, também sua obra.

Essa permanência possibilitou que pudesse manipular extensa e variada gama de documentos da região, o que marca de forma positiva e original a sua obra. Isso não o faz um autor limitado ao conhecimento de uma região, embora esse traço também seja muito importante. Gilberto coloca o regionalismo no quadro da questão nacional.

Enrique Larreta – A residência permanente no Recife assegurou-lhe uma audiência permanente local e nacional. Logo nos anos 40 sua obra muda parcialmente de foco orientando-se na direção dos estudos civilizatórios sobre o trópico, adotando um caráter mais ensaístico e especulativo. Todos seus livros são interessantes, mas Casa-grande & senzala e Sobrados e Mucambos são suas obras mais completas.

Ricardo Benzaquen de Araújo – Na verdade, nunca examinei a obra sob essa perspectiva – a influência de Recife na reflexão de Gilberto Freyre. Claro que Recife é um tema muito importante, mas a minha sensação é a de que não há nenhuma relação direta entre a qualidade da reflexão e o fato de que ele tenha permanecido basicamente no Recife. É perfeitamente possível para qualquer intelectual manter-se na sua aldeia e produzir uma obra extremamente sofisticada, desde que ele tenha mínimas condições de acesso a bibliotecas, arquivos e, obviamente, talento para desenvolver as suas pesquisas. No caso de Gilberto, não vejo nenhum prejuízo no fato de que ele tenha permanecido no Recife.

Agora, até que ponto esse vínculo com a cidade se faz presente na reflexão dele, não saberia dizer exatamente. Claro que está presente como ponto de partida, como uma referência, inclusive como um tema a ser examinado. Não tenho muitas dúvidas, porém, de que a partir daí ele desenvolve todo um conjunto de argumentos que certamente tem a ver com o debate sociológico internacional, que ele acompanhava perfeitamente. Talvez seja interessante algum tipo de investigação nessa direção.

JU - Fala-se muito da distância entre Freyre e Sérgio Buarque. Esta separação deveu-se mais às obras dos dois ou ao percurso político de cada um?

Elide Rugai Bastos – Raízes do Brasil foi publicada como primeiro volume da coleção Documentos Brasileiros, concebida e dirigida por Gilberto Freyre. Surge em 1936, no mesmo ano da primeira edição de Sobrados e mucambos. Com direções diferentes, os dois livros dedicam-se a discutir o processo de urbanização no Brasil. As edições posteriores de ambos apresentam revisões substantivas, onde o contraponto das posições dos autores aparece claramente. Sérgio Buarque, em alguns artigos critica a perspectiva adotada por Gilberto, marcando fortemente sua oposição quanto às suas explicações. Por exemplo, assinala os limites da extensão de uma pesquisa direcionada ao Nordeste à explicação de outras regiões do Brasil. Eu acabo de publicar um breve artigo comparando as diferentes edições e os debates que as acompanham.

São posições teórico-metodológicas diferentes. Certamente, as posições políticas de ambos os opõem, também.

Enrique Larreta – Nas primeiras épocas existiram muitas áreas de contato (cultura popular, literatura e o modernismo). Raízes do Brasil foi publicado em uma coleção dirigida por Gilberto Freyre. Sua primeira edição registra forte influência “freyriana”. Posteriormente, a orientação de Sérgio Buarque se centrou nos aspectos democratizantes e sociais da modernidade, no entanto, Gilberto Freyre teve como preocupação a integração de tradição com modernidade dentro de uma orientação conservadora, se bem que não reacionária.

Ricardo Benzaquen de Araújo – Está aí certamente um tema dos mais fascinantes. Eu próprio tenho me aventurado, não exatamente a pesquisar, mas a escrever alguns artigos pequenos sobre o assunto. Desde logo, é evidente que a comparação entre as obras deve ser feita com muito cuidado. São obras produzidas ao longo de algumas décadas e que mudam de perspectiva. O que eu poderia dizer é que, sobretudo nos trabalhos produzidas no período grosso modo associado ao modernismo – Raízes do Brasil, por exemplo, que foi publicado três anos depois de Casa-grande & senzala e no mesmo ano de Sobrados e mucambos (é sempre bom lembrar que Raízes foi publicada na coleção coordenada por Gilberto Freyre) – há uma articulação fortíssima entre os dois autores e, conseqüentemente, entre os dois textos. Há muitos pontos de contato.

Isto não significa, evidentemente, maior ou menor influência. A questão talvez não seja essa, até porque todo grande intelectual sempre repensa as suas influências. Mas há certamente vários pontos de contato, ainda que trabalhados em direções distintas. Mais adiante, certamente, a obra de Gilberto vai para alguns lados que não são exatamente os mesmos perseguidos por Sérgio, embora a minha sensação é a de que ainda continue a haver alguns vínculos. Claro que houve um afastamento político – Sérgio caminhou mais para a esquerda, Gilberto foi mais para direita. Talvez exista mais esse tipo de divergência do que propriamente uma questão de oposição intelectual, no sentido mais estrito do termo, que tenha eventualmente afastado os dois. Há trabalhos e pesquisas sendo feitos nessa direção.

JU - A chamada escola paulista de sociologia questionou muitas das teses freyrianas, sobretudo no âmbito das questões étnicas. Passado já algum tempo da polêmica é possível demarcar o que permaneceu desse questionamento?

Elide Rugai Bastos – Algumas importantes teses da chamada escola paulista de sociologia representam um contraponto à interpretação freyriana. O ponto de partida – a afirmação da impossibilidade de discutir-se a situação racial sem articulá-la à condição escrava e à herança do escravismo na configuração da sociedade brasileira – já mostra a polêmica desenvolvida. Ainda, a escolha do universo da pesquisa – o sul do país – se dá a partir do estabelecimento de uma necessária relação com o desenvolvimento do capitalismo e dos arranjos que definem a sociedade, diferentes da situação do Nordeste.

O eixo interpretativo mais questionado em relação às afirmações de Gilberto Freyre é o da presença de uma democracia étnica que resulta em democracia social na sociedade brasileira. A retomada do termo “racial” pelos pesquisadores uspianos, em especial por Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, tem a ver com a perspectiva política da análise. Visam mostrar como o preconceito racial é uma das faces de um processo mais amplo que marca as relações sociais no Brasil, apontando para os limites da democracia no país.

Essas diferenças têm a ver, também, com elementos teórico-metodológicos que opõem esses autores a Freyre. E, certamente, uma certa frieza nas relações entre eles diz respeito às posições políticas assumidas por Gilberto em relação aos acontecimentos políticos de 64 e à ação da ditadura militar.

Enrique Larreta – A escola paulista de sociologia, de influência marxista e funcionalista, orientou as ciências sociais no estudo das estruturas de classe. E nesse aspecto destacou as conexões classe/raça. Por outra parte, sua perspectiva teórica limitou sua compreensão dos processos culturais na consciência étnica e nacional. A perspectiva de Gilberto Freyre sobre essa temática me parece mais profunda e complexa.

Ricardo Benzaquen de Araújo – Trata-se de uma questão difícil. Esse afastamento absoluto entre Gilberto Freyre e Florestan Fernandes – e seus discípulos –, é um tema que deve ser mais examinado. Há documentos que chamam a atenção para existência de alguns pontos de contato. Como, por exemplo, Florestan convidando Gilberto para participar da banca de teses de alguns dos seus mais queridos estudantes. Sem dúvida, se a gente olha as coisas mais de perto, esse tipo de oposição, que parece tão estabelecida, pode vir a ganhar novos matizes. É preciso pesquisá-la de forma mais minuciosa

Na verdade, conheço pouco esse debate para poder dar uma resposta mais completa. Contudo, cabe assinalar que também havia uma crítica à falta de rigor em Gilberto, crítica que, eventualmente, parece-me até bastante correta. É preciso, porém, não confundir a crítica à falta de rigor com a crítica ao ensaísmo, que já é uma outra coisa. Com freqüência, do ponto de vista de quem formula a crítica, tem-se a sensação de que os dois argumentos são idênticos – ensaísmo implicaria obrigatoriamente falta de rigor. Não me parece que seja o caso, discordo fortemente dessa interpretação. Acho perfeitamente possível se encontrar um rigor no ensaísmo, que será inevitavelmente diferente daquele que costuma caracterizar uma pesquisa documental ou de campo. Nesse sentido, não me parece que a crítica ao ensaísmo tenha produzido um resultado dos mais fecundos. O que não significa que não se deva criticar o ensaio nem, sobretudo, deixar de cobrar rigor que lhe é próprio.

Desse modo, tenho a impressão de que esse é um debate levemente infeliz. É necessário examinar com mais cuidado esse debate entre “ensaio versus pesquisa”, entre Gilberto e Florestan. O clichê da oposição pura e simples não me parece suficiente, a essa altura da vida.

JU – Até que ponto as posições políticas assumidas por Freyre, sobretudo nos anos 50 e 60, trouxeram prejuízo à compreensão de sua obra, que foi praticamente colocada à margem do que foi estudado pela academia no período?

Elide Rugai Bastos – Creio que, para calibrar a resposta, devemos separar os dois momentos referidos em sua pergunta. Primeiramente falarei sobre os anos 60 e 70. Durante o período de repressão, inúmeros temas e autores ficaram fora dos debates intelectuais, políticos e acadêmicos. Uma temática que deixou de ser abordada, naquele momento, foi a das interpretações do Brasil, por motivos que podemos compreender no quadro da censura imposta pela ditadura. Para lembrar um exemplo, os livros de Florestan Fernandes, mesmo aqueles sobre teoria sociológica, ficaram fora da circulação.

Ora, estudar um autor requer que se estabeleça um diálogo com seus contemporâneos, seguidores, intérpretes, influências teóricas, posições políticas, recepção da obra. Seria impossível estudar Gilberto sem fazer referência ao conjunto de debates que se estabelecem sobre os temas e as diferentes interpretações. Vários desses estudos e autores foram censurados. Isso não ocorreu com Gilberto e vários de seus livros apareceram, no período, sob a égide da universidade. Cito o importante texto Como e porque sou e não sou sociólogo, de 1968, editado pela Universidade de Brasília, onde também o autor proferiu, em 1966, uma série de palestras sobre Futurologia. Atuou fortemente na área de educação e cultura, integrando o Conselho Federal de Cultura desde sua criação no governo Castelo Branco, até o final do governo Figueiredo. Recebeu em 1971, da UFRJ, o título de Doutor Honoris Causa; o mesmo título lhe foi concedido em 1972 e 1973 pelas UFPE e UFPB.

Nos anos 50, não creio que Gilberto tenha sido colocado à margem dos estudos acadêmicos. Por exemplo, foi convidado por Florestan Fernandes a participar das bancas de doutorado de Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, conforme pode ser conferido pela correspondência recebida por ele. Lembro-me que da banca de Ianni participaram Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda. Seria natural a presença de Gilberto, que não aceitou o convite.

Nessa década muitos de seus textos foram publicados, dos quais destaco aqueles que têm referência direta com o mundo acadêmico: a segunda edição ampliada de Sociologia, Ordem e Progresso, e a escritura da Introdução à segunda edição de Sobrados e mucambos. Nesses trabalhos, Gilberto estabelece um debate com as diferentes leituras de sua obra e responde a várias críticas. Esses três livros foram objeto de resenhas, artigos o que mostra que faziam parte da polêmica estabelecida no campo das ciências sociais. O fato de muitas dessas abordagens serem críticas não significa marginalização do autor. Devemos lembrar que a polêmica é constitutiva do trabalho intelectual!

Enrique Larreta – Sua obra encontrou-se inevitavelmente envolvida nos conflitos ideológicos do século 20. Sua subestimação da democracia é um ponto fraco de sua teoria social, e em certas épocas deixou-se tentar por soluções autoritárias.

Ricardo Benzaquen de Araújo – Não tenho muitas dúvidas de que isso lhe trouxe algum prejuízo. Agora, só para matizar um pouco mais a questão: de um lado, não foi só a obra dele que sofreu dificuldade, até já citamos alguns outros autores que também foram vítimas de preconceito, por assumirem posições políticas que não eram aquelas então dominantes no meio intelectual. Além disso, há um segundo ponto que se refere mais especificamente ao Gilberto. É preciso ainda levar em conta que ele não recebe críticas apenas do ponto de vista político, mas também críticas que se referiam mais diretamente à sua produção intelectual, levantando, de novo, essa questão do “ensaio versus pesquisa”.

A minha sensação é a de que esse segundo tipo de crítica agiu poderosamente para dificultar uma melhor compreensão do trabalho de Gilberto. Hoje em dia, porém, há todo um esforço no sentido de tratar essas questões com maior generosidade intelectual, pesquisando, repito, diferentes tipos de rigor, várias alternativas, sem abrir mão, é lógico, da preocupação com a seriedade acadêmica.

JU – O uso de imagens literárias e de relatos de viajantes são recorrentes no conjunto da obra de Freyre. Quais foram os prós e os contras dessa escolha?

Elide Rugai Bastos – Gilberto Freyre escreve muito bem, tem uma narrativa fluente, usa metáforas e figuras de linguagem excelentes, afastando-se muito das formas de abordagem do ensaísmo da década de 20. É um prazer lê-lo. Trabalha, como já assinalei, com documentos não convencionalmente utilizados por aqueles trabalhos. São cartas, diários, anúncios de jornais e magazines, letras de canções, folhetins, relatos familiares; entre essas fontes encontram-se os relatos dos viajantes. É certo que essa riqueza documental funciona positivamente em sua pesquisa. De outro lado, a utilização das mesmas, conforme já assinalou Sérgio Buarque de Holanda, sem a devida correlação com dados estatísticos, por exemplo, pode levar a um viés interpretativo que não dá conta da realidade.

Enrique Larreta – Foi um pioneiro no uso de livros de viajantes como fontes, e também da história oral e a imprensa da época, inclusive estrangeiros. O “olhar do outro” como modo de conhecimento social interessou-lhe sempre. Essas fontes nem sempre foram contextualizadas com precisão, desde o ponto de vista do rigor historiográfico contemporâneo.

Ricardo Benzaquen de Araújo – Não vejo nada contra. Um dos pontos mais positivos da obra do Gilberto é o de, nos anos 30, em um diálogo com algumas correntes da antropologia e da história, tentar incorporar todo um conjunto de documentos que, até aquele momento, não eram tão considerados. Não são apenas relatos de viagens ou textos literários, pois ele vai lidar com narrativas populares, com receitas de doces, receitas de farmácias etc. Enfim, ele tenta recuperar um imenso conjunto de materiais que não eram muito levados a sério. Isso, claro, tem a ver com o fato de que ele se esforça, pioneiramente entre nós, por fazer um tipo de história que se interessava sobretudo pela análise da vida cultural, no sentido antropológico do termo, o que evidentemente o leva a considerar com seriedade estes novos documentos. Se ele estivesse operando sob uma perspectiva estritamente econômica e política, certamente as fontes seriam outras, talvez mais convencionais.

Mas, ao contrário, como ele define o seu objeto pela cultura, ele lança mão de um notável conjunto de textos que até então não havia sido adequadamente examinado. Gilberto tem acesso, por exemplo, ao arquivos da Inquisição, copiados por Capistrano de Abreu e que ficam sob a guarda de Paulo Prado. Trata-se de uma fonte extraordinária sobre a vida íntima, não apenas sobre a vida sexual, dos habitantes da Colônia, assim como os recém-mencionados relatos de viagem.

Quanto ao aspecto literário, não tenho a menor dúvida de que Gilberto escreve notavelmente bem, assim como vários outros autores da época, entre os quais Sérgio Buarque. E escreve de uma maneira muito coloquial, de certa forma fiel ao elogio modernista da linguagem oral. Há um certo esforço em aproximar a maneira como se falava da maneira como então se escrevia. Creio inclusive que esse esforço em tentar informalizar a linguagem é um dos poucos pontos de contato entre Gilberto e alguns autores mais canônicos do Modernismo paulista, Mário de Andrade em particular, que também tinha um projeto semelhante. Agora, não diria que o trabalho de Gilberto possa ser avaliado como uma obra literária, mesmo porque esta última sempre importa em um desenvolvimento ficcional. A imaginação de Gilberto, ao contrário, estava presa, com maior ou menor rigor, a um conjunto de dados coletados por ele. Não que ele não fosse um cientista social arguto, perspicaz e imaginoso. Mas trata-se de um tipo peculiar de imaginação, que não opera no mesmo registro que aquele que vai envolver a ficção. É preciso, portanto, aproximar a discussão sociológica de todo o conjunto de debates acerca das estratégias narrativas que fundamentam a dimensão retórica, persuasiva dos argumentos apresentados nos seus textos, mas não se pode, de modo nenhum, confundir esse tipo de perspectiva com aquela que caracterizaria a obra de arte, já que aí há um compromisso estrito com a ficção. Limites podem e devem ser ampliados, mas nesse caso precisam ser mantidos, mesmo que retrabalhados de uma forma mais ambígua e complexa.


JU – Qual o lugar da identidade nacional brasileira num mundo marcado pela globalização?

Elide Rugai Bastos – Creio que sua pergunta tem a ver com a atribuição generalizada da intenção de definir a identidade nacional operada pelos chamados clássicos de 30. Não acho que a questão tenha a centralidade que se atribui. Definitivamente, isso não faz parte dos objetivos de Caio Prado Júnior; diria que não é, também, a finalidade da reflexão de Sérgio Buarque de Holanda. Nos trabalhos de Gilberto Freyre penso que existe anterioridade da idéia de formação sobre a de identidade nacional. Basta ver que em Casa-grande & senzala, embora constate as diferenças comportamentais de ameríndios e africanos, ressalta a importância do critério histórico-cultural sobre o fisiológico e psíquico. Aliás, essa é uma grande inovação analítica que introduz, mostrando os limites da sociobiologia.

O que quero dizer é que, como recurso explicativo, a discussão sobre a identidade nacional tem pouco fôlego. Ela é muito diferente da discussão da questão nacional, onde a constituição histórico-social do povo tem a ver com o lugar que lhe é atribuído no jogo de forças sociais e políticas. Por esse motivo, creio que é a questão nacional e não a da identidade nacional que deve ser pensada pelos analistas face ao mundo globalizado. Creio que temos fugido um pouco do problema...

Enrique Larreta – Nas suas duas obras principais, Casa-grande e Sobrados, Gilberto Freyre não utiliza a noção de identidade nacional. Sua teoria da cultura é complexa, acentua a diversidade regional, local, a pluralidade e os empréstimos culturais. Freyre é o pensador do híbrido e das modernidades alternativas. Enriquecer e fomentar o fundo cultural próprio, incorporando o novo, uma identidade nacional aberta ao mundo, me parece o legado principal de Gilberto Freyre.

Ricardo Benzaquen de Araújo – Antes de entrarmos diretamente no ponto, é importante lembrar que existem várias definições do que seria a identidade brasileira. Gilberto nos propõe uma em que o brasileiro seria composto por diferentes contribuições culturais que não chegam completamente a se fundir, dando origem a um ser inteiramente novo. Ele opera, por conseguinte, com uma noção sincrética de identidade, em que continuaria presente, em cada um de nós, um conjunto muito diversificado de tradições. Estão presentes em sua obra diferentes culturas: européias, indígenas e africanas, cujos legados busca-se, com alguma tensão, articular.

Mário de Andrade, ao contrário, opera como que esses vários legados tivessem se fundido para dar a luz a uma concepção muito bem-definida do que seria o brasileiro. Agora, se procuramos examinar qual seria o papel de uma identidade nacional num mundo marcado pela globalização, a minha impressão é a de que a forma mais interessante de se lidar com isso é justamente participar nela com essa identidade. Qualquer que seja a definição de identidade com a qual se esteja operando, acho que seria uma boa idéia tomar parte da globalização – se isto for inevitável – tentando levar em consideração aquilo que nos definiria de uma maneira mais específica, como se fosse uma espécie de vantagem particular. Não abrir mão dessas características para uma suposta geléia geral, que supostamente homogeneizaria a todos num mesmo plano. É preciso se esforçar para lidar com esse conjunto de transformações, e ao mesmo tempo, manter pelo menos parte disso que seria definido como identidade nacional. De forma alguma devemos abrir mão de algumas características próprias. Até para poder participar de maneira digna e soberana desse jogo.

Colaborou Gustavo Henrique Tuna


Elide Rugai Bastos

Elide Rugai Bastos é professora do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH), onde é diretora do Centro de Estudos Brasileiros (CEB). É secretária adjunta da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Escreveu, entre outros livros, As Ligas Camponesas (1984) e Gilberto Freyre e o pensamento hispânico – Entre Dom Quixote e Alonso El Bueno (Edusc/Anpocs, 2003).


Enrique Larreta

Enrique Rodríguez Larreta é doutor em antropologia social pela Universidade de Estocolmo e diretor do Instituto do Pluralismo Cultural da Universidade Candido Mendes. Recentemente publicou Gold is Illusion (2003) e editou com Guillermo Giucci a primeira edição crítica de Casa-grande & senzala (2003). Entre outros trabalhos, organizou recentemente Real / Simulacra / Artificial: Ontologies of Postmodernity (2003) e Identity and Difference in the Global Era (2002). Sua biografia cultural de Gilberto Freyre se encontra no prelo pela Editora Planeta.


Ricardo B. de Araújo

Doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ricardo Benzaquen de Araújo é historiador, professor e pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), Universidade Candido Mendes, e da PUC-Rio de Janeiro.É autor dos livros Guerra e Paz - Casa-grande & senzala e A Obra de Gilberto Freyre nos Anos 30 (Editora 34, 1994) e Totalitarismo e Revolução - O Integralismo de Plínio Salgado (Jorge Zahar, 1988). Ganhou em 1994 os prêmios Jabuti e Joaquim Nabuco.


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