Inédito
Carta ao pai
Na pesquisa para a biografia de Gilberto Freyre, o professor Enrique Larreta descobriu os cadernos do curso desenvolvido em Stanford em 1931, que constitui o laboratório de escritura de Casa-grande & senzala. Na seguinte carta a seu pai, Gilberto comunica o entusiasmo de seu descobrimento das contribuições do Brasil.
Fixar-me aqui ou em qualquer parte fora de Pernambuco, está absolutamente fora do meu programa. Mas não adianta a falar neste ponto. Com relação ao Brasil, acho que você carrega muito as cores. Não há que estranhar que o Brasil atravesse uma fase como a de agora. Poderá mesmo prolongar-se por muito tempo assim. Mas nada nos autoriza a concluir que somos o “país perdido” de que se fala há tempos. Poucos países tão interessantes como o Brasil; a aventura brasileira de miscigenação é uma das grandes aventuras modernas (moderno no amplo sentido histórico) - uma aventura nacional tão interessante quanto a russa ou a americana. Ele é grande demais para que aos seus processos de ajustamento falte a violência dramática que em fenômenos geológicos um tanto parecidos a este nosso, social, étnico, econômico, caracteriza os terremotos. Não creio que desde Cristo ninguém nem nenhuma nação tenha feito ao mundo, à fraternidade dos homens, tamanha contribuição como a que há de resultar de mistura de raças no Brasil. O brasileiro não é todo defeito nem mestiçagem; qualidades excelentes já se sentem nele; vão se esboçando e afirmando na confusão. O período é doloroso porque é de transição. Ainda não desapareceu de todo o preconceito de branquidade; a vergonha de ser mulato ainda se manifesta em pretensões ridículas. A época ainda é de novos -poderosos, novos cultos, novos ricos, arrivismo em várias expressões. Mas sem deixar de haver nisto alguma coisa de interessante, ao lado do muito que há de doloroso -principalmente para filhos e netos de senhores de engenho. Devemos levantar a vista acima das coisas do momento, e impregnarmo-nos do ar, do grande ar de aventura, que sopra sobre o Brasil, onde cores, sangues, tradições se misturam para um resultado único, excepcional. (Stanford 16 de abril de 1931)”
Gilberto Freyre na praia de Boa Viagem, no Recife, em 1917
Continuação das páginas 5 e 6