Chego a mais de 70 dias de isolamento social procurando vencer um estado de torpor que vem progredindo com o noticiário diário sobre a evolução dos óbitos pela pandemia e o seu alastramento, previsto mas descontrolado, e sobretudo desdenhado pelas autoridades federais – governantes que desdenham igualmente a ciência e os profissionais da saúde, embora a estes deixem a responsabilidade e a esperança de conter a Covid-19. O estado de torpor me impediu, por exemplo, de iniciar esse texto no sábado 23, por ter visto o vídeo da reunião ministerial macabra em que o Verme e seus iguais escancararam aos brasileiros a política de terra arrasada que estão implantando no país, contra o meio ambiente, os povos indígenas e tradicionais, os pobres, a ciência, a arte e os direitos fundamentais, e em prol do capital, da violência policial, do armamento das milícias e, agora, sob a ameaça terrorista de uma guerra civil, escarrada por militares de reserva de mesma laia que deveriam continuar de pijamas cuidando da tosse e das hemorroidas.
Jornalistas, por força do ofício, frequentam círculos de poder em todos os níveis e se acostumam a interpretar as entrelinhas de declarações de autoridades públicas em tomadas de decisão, cínicas porém geralmente polidas. Já o linguajar do Verme e seus comparsas é de quadrilha, inaceitável em qualquer ambiente social – seriam escorraçados do bar que frequento na área central, nem que fosse a taco de beisebol, porque ali se trata de comércio familiar, tocado por duas mulheres bonitas contra as quais nunca ouvi um gracejo sexista, e por onde circulam crianças e mulheres a quem se deve o respeito que não mereceu a carola do conluio ministerial.
No último 18 de maio fiz 21 anos de Unicamp, onde ingressei com a mente fervilhando de ideias para tentar fazer um trabalho de divulgação à altura de uma das melhores universidades da América Latina. “Você vai se enturmar facilmente com os colegas de Campinas e logo vai estar na Unicamp”, torciam os amigos, quando desisti das redações de São Paulo, não só, mas também pela exaustão de coordenar uma equipe grande e de peso na edição das primeiras eleições diretas para presidente, e pela desilusão com a vitória de outro “salvador da pátria”, o “caçador de marajás”, cujo mandato felizmente foi curto – quem sabe a história se repete.
Aquela sensação de torpor foi breve porque eu não via um futuro tão desesperançado como hoje, ao contrário. Trabalhei nos dois diários de Campinas, na assessoria da Prefeitura e em um semanário, antes de ser convidado para a Unicamp. Naquele maio de 1999 fazia o mesmo frio matinal desses dias e, debaixo das janelas da Assessoria de Comunicação, no terceiro piso do prediozinho 5 da Reitoria, havia um frondoso flamboyant vermelho que visitantes japoneses vinham fotografar quando ele floria, enquanto o enorme gramado da Praça da Paz, em frente, recebia as mudas das árvores que hoje nos energizam com sombras reconfortantes; posso dizer que eu e as árvores crescemos juntos aqui dentro.
A Universidade abriu-se como um paraíso para quem vivia o estresse (ainda que instigante e viciante) das redações dos diários. Ao invés de buracos de rua, jogadores com cérebros limitados à circunferência da bola, policiais grosseiros e políticos e autoridades públicas de uma incompetência inimaginável ao cidadão comum, minhas fontes passaram a ser estudantes apaixonados pela convivência acadêmica, pesquisadores, professores, pensadores; em cada entrevista (centenas, pelo menos), uma aula rica e envolvente; se tivesse a capacidade de armazenar na memória tantas informações científicas inovadoras e análises profundas da sociedade e do mundo, eu seria hoje uma sumidade.
Uma das minhas últimas entrevistas tête-à-tête, antes da suspensão das atividades presenciais, foi com Ricardo Galvão, exonerado da direção do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) por ter confrontado o Verme, que classificou de “mentirosos” os dados sobre o desmatamento na Amazônia: “É uma atitude pusilânime e covarde, uma ofensa de botequim”, retrucou o cientista, o que remete ao ambiente em que se transformou o Alvorada. Galvão deu uma daquelas aulas ricas e envolventes, com os retardatários esparramados pelos corredores e o chão do auditório do Instituto de Física. Ele me disse que fora substituído por um oficial reformado da Aeronáutica, conhecedor da área, e que as informações do Inpe continuavam sendo disponibilizadas e fidedignas. De fato, temos aí registros da devastação criminosa incentivada por um ministro que nunca deve ter entrado no mato.
No entanto, o que fazer para reverter os ataques por tantos flancos à universidade pública e aos institutos e órgãos de pesquisa, é a questão que me perseguia já no fumódromo, a pracinha arborizada e de brisa boa onde muita gente faz sua pausa merecida – há tempos atento para o lugar privilegiado e aprazível do meu trabalho. Procurava imaginar o que a reunião ministerial mostrou ser inimaginável: a demolição das estruturas que suportam o Estado, com a demissão e substituição em massa de funcionários e técnicos de carreira, tudo isso embaixo do picadeiro onde os palhaços da corte procuram nos distrair com suas bravatas, agressões verbais e piadas infames.
O confinamento, diante do cenário surreal lá fora, também transforma a indignação em ira, que me causa vertigem, literalmente. Além disso, as tarefas cotidianas não permitem muitos momentos lúdicos que me asserenem. Estou enclausurado com filha e neto: eu cuido da cozinha, elaborando já sem igual prazer o almoço e janta de todo dia; ela, que em home office ainda limpa a casa, vai às compras e se estressa com o filho por causa das aulas à distância; e o próprio Felipe, 9 anos, que não corre pela casa: ele ricocheteia pela casa, como o Papa-léguas do desenho animado da minha infância, narrando suas peripécias heroicas feito locutor de futebol no rádio.
Por vezes, refeito de episódios da ira vertiginosa, embarco em viagens como do meu neto, atrás de um pó de pirlimpimpim com a mágica de trazer sapiência aos ministros e generais, despertando-os para o Brasil real; ou que provoque dormência profunda, acordando-os entubados em hospitais de campanha. Sim, por vezes a ira persiste sobre o estado de torpor. Estou no grupo de alto risco: fumante com enfisema, sedentário, hipertenso, no limite para diabetes e fígado em estágio desconhecido. Contudo, eu me imagino de volta às ruas com a mesma energia da juventude, ao lado dos estudantes e das torcidas de futebol, rodando nas mãos um taco de beisebol.