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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 07 de maio de 2012 a 13 de maio de 2012 – ANO 2012 – Nº 525No itinerário dos antepassados
Estudos de estruturas e dinâmicas populacionais do passado ajudam a compreender o presente
Dos cerca de cinco milhões de estrangeiros que aportaram no Brasil entre as últimas décadas do século 19 e o início dos anos 1970, mais da metade (2,8 milhões) entrou no Estado de São Paulo. A expansão da cafeicultura e o fim da escravidão, combinados com a necessidade de arregimentação de força de trabalho livre para a lavoura cafeeira, à época em franca expansão, impulsionaram a imigração no território paulista. Italianos, portugueses e espanhóis, representavam cerca de ¾ do vasto contingente estrangeiro no Estado, acompanhados, em menor número, de alemães, japoneses, austríacos e outros estrangeiros.
Embora esse período de grande impacto imigratório seja fonte de inesgotáveis estudos sociais, antropológicos e econômicos, raras são as pesquisas que olham para esse fenômeno pela lente da demografia histórica – gênero responsável por estudos de estruturas e dinâmicas populacionais em uma perspectiva histórica, com o propósito de reunir elementos capazes de permitir análises acerca de transformações que nelas ocorreram ao longo do tempo.
É por isso que, nesse campo, ganha grande importância os trabalhos desenvolvidos pelo Núcleo de Estudos da População (Nepo) da Unicamp. Investigações fundamentais sobre a imigração internacional no Estado de São Paulo, no final do século XIX e primeiras décadas do século XX, viabilizaram a realização de um amplo e inédito mapeamento do cenário populacional paulista a partir da proibição do tráfico negreiro e do começo do fim da escravidão, em 1850.
Coordenadas pela historiadora Maria Silvia C. Beozzo Bassanezi, as pesquisas focam a evolução, a distribuição espacial e as características da imigração internacional no Estado, seu impacto na estrutura e dinâmica demográfica da população paulista, e na trajetória demográfica dos municípios ao longo de um século. Focam também o impacto do processo migratório na dinâmica demográfica interna do grupo e da família imigrante e as redes sociais estabelecidas na terra de adoção.
A imigração
De acordo com ela, os dados sobre a imigração estrangeira e sobre a distribuição espacial dos imigrantes – garimpados em um longo e exaustivo levantamento de fontes manuscritas e impressas – definem um panorama muito expressivo de uma mudança demográfica, que foi também mudança social, cultural, econômica e política, cujos reflexos ecoaram por décadas no território bandeirante.
A imigração em larga escala (fruto da forte política imigratória do governo brasileiro e, principalmente, paulista, que incluía subsídios à viagem e alojamento dos imigrantes) impactou de forma decisiva nas características demográficas do Estado de São Paulo.
A predominância de homens adultos entre os imigrantes, o alto índice de população em idade produtiva e reprodutiva e uma ponderável parcela de imigrantes fazendo parte de unidades familiares, influenciaram o tamanho das populações nativas e modificaram as taxas de nupcialidade, natalidade e mortalidade do Estado de São Paulo. Por outro lado, o processo imigratório como um todo, ao selecionar e direcionar os imigrantes para diferentes contextos regionais, acabou por diferenciar a dinâmica demográfica interna do grupo que emigrou do que permaneceu na terra de origem.
O grande latifúndio cafeeiro do interior paulista era o destino prioritário da massa estrangeira, mas o processo imigratório não modificou apenas o perfil demográfico interiorano do Estado, mas também e muito o da capital.
Impactos distintos
Maria Silvia analisou as influências imigratórias na população paulista particularmente de três localidades que acolheram um expressivo volume de estrangeiros – a capital e as cidades de Santos e Ribeirão Preto – e constatou que o impacto da imigração variou conforme o perfil dos grupos imigrantes recebidos e o contexto socioeconômico e as condições sanitárias dos municípios. Esses municípios divergiam entre si não só quanto ao volume da população imigrante recebida, mas também no tocante à composição dessa população segundo a nacionalidade, sexo, idade e domicílio rural e urbano
Em Santos (segundo maior pólo de concentração de não brasileiros, depois da capital, e onde predominavam os portugueses), a precariedade das condições sanitárias impacta fortemente na mortalidade entre os estrangeiros e seus descendentes, empregados em atividades portuárias. A nupcialidade também é influenciada pela expressiva maioria de homens em comparação ao sexo feminino. Em São Paulo, as acomodações inadequadas dos cortiços onde viviam muitos imigrantes colaboravam para a disseminação de epidemias, da tuberculose e elevado número de óbitos, o que não ocorria com a mesma frequência na zona rural, onde os imigrantes viviam menos aglomerados e podiam dispor de alimentação. Mesmo assim, não conseguiram ficar imunes à febre amarela que assolou especialmente as cidades interioranas, como Ribeirão Preto.
“Percebe-se que o impacto na dinâmica demográfica dessa imigração é distinto em razão de seu volume, de suas características e do próprio contexto local”, aponta a pesquisadora.
Conforme destaca, esses aspectos fizeram com que a experiência imigratória em São Paulo assumisse, em alguns casos, características muito peculiares em relação à manifestação do fenômeno no resto do país. Exemplo é o colonato, típico regime de trabalho que imperou nas fazendas cafeeiras paulistas e que difere dos núcleos coloniais então existentes no sul do país, ilustra Maria Silvia.
Dados compartilhados
Os dados resgatados a respeito da evolução da presença estrangeira em território paulista foram organizados em uma publicação pioneira coordenada por Maria Silvia. Trata-se do Atlas da imigração internacional em São Paulo 1850-1950, publicado em parceria pela Editora Unesp e a Fapesp.
Contendo informações demográficas e socioeconômicas sobre a população estrangeira no período, a obra focaliza a epopéia em que se transformou a trajetória de legiões de estrangeiros dentro do Estado ao longo do centenário coberto pelos estudos. Além de coordenadora, a pesquisadora da Unicamp assina o trabalho em conjunto com os também historiadores Ana Silvia Volpi Scott, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, e Carlos de Almeida Prado Bacellar, da USP, e com o cientista social Oswaldo Mário Serra Truzzi, da Universidade Federal de São Carlos.
O atlas teve o mérito de disponibilizar para a comunidade acadêmica e ao público em geral, em um único volume, informações até então dispersas em diferentes fontes e arquivos. A riqueza de dados é apresentada junto com fotos, transcrições de documentos da época, gráficos e mapas temáticos que contribuem para a melhor percepção da inserção dos imigrantes no território paulista e até de seu acesso à propriedade de terras agrícolas.
A evolução da entrada dos imigrantes no Brasil e no Estado de São Paulo no período não foi linear, deixando entrever quatro momentos mais longos e de maior intensidade, separados por momentos mais curtos, de declínio abrupto.
O primeiro, marcado pelo fim do trabalho escravo e pela entrada maciça de imigrantes, sobretudo italianos, para atender a expansão da cafeicultura, findou por volta de 1902, quando a Itália passou a dificultar a emigração subsidiada ao Brasil. No segundo momento, o fluxo imigratório começou a se recuperar, mas em seguida é interrompido devido, principalmente, à Primeira Guerra Mundial, mas também por causa da gripe espanhola e da geada que, em 1918, dizimou cafezais paulistas e colaborou para aprofundar a crise da cafeicultura desencadeada nos anos finais do século 19.
O terceiro, de menor impacto no ingresso de imigrantes se comparado aos momentos anteriores, foi assinalado pela recuperação da lavoura cafeeira e pelo desenvolvimento de outros setores da economia no pós-Primeira Guerra. O término da política de subsídios por parte do governo paulista em 1927, a crise de superprodução de café e as restrições impostas à imigração pelo governo brasileiro nos anos 1930, com intensa campanha de nacionalização dos imigrantes e seus descendentes, contribuíram para reduzir de maneira significativa a entrada da força de trabalho estrangeira no país.
O pós-Segunda Guerra Mundial aparece como o quarto momento, quando a cafeicultura deixou de ter importância e, em conseqüência, a imigração para essa lavoura e para trabalhos braçais diminui sua proporção em favor dos operários, dos técnicos industriais e dos quadros intermediários necessários à expansão do setor fabril, evidenciando o papel preponderante da indústria na atração de imigrantes.
Classificado entre os dez finalistas ao Prêmio Jabuti, na época de sua publicação, em 2008, na categoria Ciências Humanas, o atlas integra uma trilogia da qual fazem parte duas outras obras complementares.
A primeira é o Roteiro de fontes sobre a imigração em São Paulo 1850-1950, que relaciona as amplas possibilidades de pesquisa dos principais arquivos do Estado. Foram selecionados o Arquivo do Estado de São Paulo, o Memorial do Imigrante, a Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (FSeade), o Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), da Unicamp.
A segunda obra complementar é o Repertório de legislação brasileira e paulista referente à imigração. O livro, produzido com a colaboração de Marina Gouvêa, nasceu da constatação de que a legislação vinculada ao tema não se encontrava sistematizada e não estava facilmente disponível aos pesquisadores, comenta Maria Silvia.
Além dessas, a área de Demografia Histórica no Nepo também tem se dedicado a organizar e sistematizar, em bancos de dados informatizados, uma série de informações sobre imigração internacional no Estado de São Paulo, extraídas de fontes de caráter quantitativo (censos e estatísticas diversas) e qualitativo (relatos de época), alguns já disponibilizados aos pesquisadores em forma de CD Rom.
Atualmente, a pesquisadora do Nepo, entre outras que também abarcam a população nativa, debruça-se em investigações sobre a morbi-mortalidade entre a população imigrante. A expectativa é que os novos achados continuem a contribuir para a compreensão cada vez mais apurada do secular movimento demográfico que configurou até os dias atuais a pluralidade sociocultural paulistana.