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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 06 de agosto de 2012 a 12 de agosto de 2012 – ANO 2012 – Nº 534Luiz Thomaz Reis:
das selvas à metrópole
Cândido Mariano da Silva Rondon, recém-saído da academia militar como oficial-engenheiro, participou como ajudante do major Gomes Carneiro nas primeiras comissões de linhas telegráficas formadas a partir de 1889. A partir de 1891, com a Proclamação da República, na qual atuou, o então jovem capitão assumiu a chefia da Comissão Construtora de Linhas Telegráphicas do Araguaia e também a Comissão Construtora de Linhas Telegráphicas no Estado de Matto-Grosso (de Cuiabá a Corumbá, prolongando-se até as fronteiras de Paraguai e Bolívia, 1900-1906).
Outra grande empreitada de Rondon foi a chefia da Comissão de Linhas Telegráphicas Estratégicas de Matto-Grosso ao Amazonas, encerrada em 1916, na qual o colocou frente a frente dentro do sertão com vários grupos indígenas de pouco contato com a “civilização”, levando-o a criar o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1910. Chamado inicialmente de Serviço de Proteção ao Índio e Localização do Trabalhador Nacional, esse órgão governamental esteve ligado ao Ministério da Agricultura e já trazia a ideia de integração das populações indígenas ao processo produtivo nacional. Influenciado fortemente pelo positivismo, Rondon deu uma característica humanística ao SPI.
O espírito científico das grandes expedições do século passado influenciou Rondon a levar junto botânicos, zoólogos e outros cientistas para fazerem levantamentos da fauna e da flora. O levantamento topográfico e geográfico foi feito pelo próprio Rondon e seus ajudantes, e ele também fez levantamentos etnográficos da cultura material de alguns grupos indígenas e medições antropométricos dessas populações. Todos esses trabalhos foram publicados com o título de “Publicações da Comissão Rondon” em pequenos e grandes volumes no total de cem publicações. As diversas comissões chefiadas por ele ficaram conhecidas mais tarde simplesmente como “Comissão Rondon”, e sua atuação na Inspetoria de Fronteiras está inserida nesse contexto na nossa análise. O mito rondoniano foi sacramentado por uma ampla produção biográfica e indicado ao Prêmio Nobel da Paz por Albert Einstein.
Depois de vários insucessos, Rondon aceitou a proposta de um jovem oficial que o acompanhava, então tenente Luiz Thomaz Reis, para formar a Secção de Cinematographia e Photographia da Comissão Rondon, em 1912. Major Reis, como ficou conhecido, viajou para a Europa para comprar equipamentos, começando seus primeiros registros em 1914. Reis será o principal cineasta da Comissão Rondon e a criação de uma seção especializada em documentação em material fotossensível foi uma ação inovadora para os padrões da época, necessitando altos investimentos e apropriação de uma tecnologia especializada inexistente no país, principalmente se levarmos em conta que o uso desse material se daria em péssimas condições ambientais, no sentido das dificuldades de transporte e também da alta umidade.
Se, por um lado, a persuasão atingia as autoridades através das fotografias presentes nos muitos relatórios, as apresentações dos filmes e os artigos publicados nos principais jornais do país visavam principalmente outro grupo formador de opinião, a elite urbana sedenta de imagens e informações sobre o sertão brasileiro, e Rondon alimentava o espírito nacionalista construindo etnografias fílmicas de um ponto de vista estratégico.
O material fotográfico mais consistente foi publicado em três volumes nos respectivos anos de 1946, 1953 e 1956, com o título de “Índios do Brasil”, assinado pelo próprio Rondon, e boa parte da publicação são de fotogramas cinematográficos. A documentação fotográfica dos grupos indígenas da Amazônia foi feita quando Rondon estava na chefia da Inspectoria de Fronteiras, entre 1934 e 1938 (para ele... “A filha mais dileta da Comissão Rondon”).
Rondon tinha forte apoio dos órgãos de imprensa nos quais sempre publicou artigos sobre seus trabalhos e completando seu marketing projetava os filmes de Reis em apresentações públicas, seguidas de conferências. Um dos poucos álbuns que pude examinar no Forte de Copacabana, “A Campanha do Paraná. 1924-1925”, com 211 fotografias do então capitão Thomaz Reis, mostra aspectos tomados durante a ação das Forças em Operações de Guerra contra os rebeldes da Coluna Prestes, nos estados do Paraná e Santa Catarina, sob o comando de Rondon. O filme realizado nessa campanha nunca foi encontrado.
A imagética rondoniana é um produto em si mesmo, com um desenvolvimento semiótico da imagem cinematográfica e fotográfica que escapou das esferas específicas de atuação de Rondon para persistir como uma permanência retiniana até os dias de hoje pela sua dinâmica visual interna: uma imagem-conceito.
A produção cinematográfica de Reis aponta para uma tríade base ideológica da construção imagética do índio na Comissão Rondon e no período inicial do SPI pautada na perspectiva de uma construção de uma imagem oficial do índio, principalmente pela produção cinematográfica, que destacamos abaixo:
1º Recorte: O índio como “bom selvagem”.
Filme: “Rituais e Festas Bororo” (1917).
Neste filme, o objeto cinematográfico é o índio e sua cultura específica. A documentação do ritual funerário Bororo tornou-se um pioneirismo de Reis no campo do filme etnográfico e demonstrou sua capacidade cinematográfica no registro da cultura. Estamos aqui defronte um índio indicial referente às nossas origens antes dos portugueses; um mito de origem para a nação.
2º Recorte: O índio “pacificado”.
Filme: “Ronuro, Selvas do Xingu”(1924).
Neste filme, a natureza da documentação é a ação da expedição de desbravamento do Rio Ronuro e os índios são personagens que aparecem nesse caminho e caracterizados no final como existindo por semelhança aos civilizados depois que são vestidos um a um.
3º Recorte: O índio “integrado/aculturado”.
Filmes: “Os Carajás” (1932), “Inspetorias de Fronteiras- Alto do Rio Negro” (1938), “Viagem ao Roraimã” (1927) e “Parimã, Fronteiras do Brasil” (1927).
Nestes filmes, encontramos a documentação oficial de uma expedição de inspeção das fronteiras e a integração via Estado (SPI) e via religião (Missionários Salesianos). Entretanto, a imagem do índio aparece como um guardião de nossas fronteiras, sendo índio na sua gênese e brasileiro na sua nacionalidade. O índio simbólico foi assim construído como uma superposição de construções imagéticas.
O que mais nos chamou a atenção em Reis foi a sua amplitude cinematográfica, começando na aventura de documentar aspectos do sertão brasileiro, revelando e montando seus filmes, muitas vezes em condições adversas da selva. Reis criou encadeamento de planos, com justaposição de pontos de vistas e a articulação de cartelas, característica do cinema mudo, que prenunciavam as ações, dominando a linguagem cinematográfica. Sua viagem inicial para a Europa por volta de 1912 para comprar os equipamentos e, posteriormente, sua viagem para os EUA, em 1918, para tentar distribuir internacionalmente seus filmes, o colocou frente à cadeia cinematográfica, da realização à distribuição.
No ano passado foi publicado relatório sobre sua viagem aos EUA encaminhado para Rondon, em 1918. O relatório aparece completo no livro “Viagem ao cinema silencioso do Brasil” (Org. Samuel Paiva & Sheila Schvarzman, Editorial Azougue, 2011), infelizmente sem outras informações sobre sua origem, entretanto, é um documento importante no qual Reis relata suas relações com o campo cinematográfico da cidade de Nova Iorque, quando consegue articular e mostrar um programa cinematográfico de média duração para uma palestra de Theodor Roosevelt, atividade esta ligada à Sociedade Americana de Geografia, na qual o ex-presidente relatou sua viagem ao Brasil entre 1914-1915, acompanhado por Rondon e o próprio Reis. O cineasta também apresenta uma análise do campo cinematográfico nos EUA, e assina um acordo com uma distribuidora de filmes (Interocean), depois de muitas tentativas com outras empresas, todas relatadas com detalhes no relatório, tornando-se provavelmente o primeiro cineasta brasileiro a fazê-lo.
Outro relatório posterior, em 1919, também encaminhado para Rondon, Reis relata com detalhes as dificuldades de filmar o ritual funerário Bororo em 1916, descreve tentativas de filmar caçada a onça em Mato Grosso, e apresenta um longo roteiro para ser realizado nas comemorações do centenário da Independência em 1922 (filme não realizado). Nesse relatório informa que no caminho de Cuiabá apresentava os filmes em cidades como Bauru e Corumbá, negociando salas de projeção e bandas de música, com a contabilidade geral, demonstrando os custos e lucros para financiar novos filmes.
A extensa produção de Reis, associada à sua visão da complexidade do campo cinematográfico, perpassando sua habilidade técnica na captação e na montagem, assim como na confecção de roteiro, observações sobre a recepção, e articulação do cinema como empreendimento, e mais ainda, mostrando uma capacidade crítica sobre modelos de distribuição cinematográfica, indica que Reis não era somente um cineasta militar perdido na selva, e sim, além de pioneiro, um cineasta com ampla visão do campo cinematográfico.
Fernando de Tacca é professor do Departamento de Multimeios, Mídia & Comunicação, do Instituto de Artes (IA), e autor do livro A Imagética da Comissão Rondon