Edição nº 536

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 20 de agosto de 2012 a 26 de agosto de 2012 – ANO 2012 – Nº 536

Tesouros cartográficos


Em 1994, o historiador e professor da Unicamp Paulo Miceli publicou O ponto onde estamos – Viagens e viajantes na história da expansão e da conquista (Portugal, séculos XV e XVI). A obra, que em 2008 ganhou sua quarta edição pela Editora da Unicamp, invadia a privacidade das naus integrantes das expedições que zarpavam de Portugal na época dos descobrimentos e revelava um cotidiano muito diferente das descrições epopeicas com que se emolduravam as viagens marítimas no período da expansão europeia. Nas páginas do livro, o épico cedia lugar ao trágico e ao grotesco, relatando a rotina de desconforto, fome, sede e epidemias que assolava exércitos de homens miseráveis a bordo de frágeis embarcações. Ao concluir o trabalho, Paulo se deu conta que havia descrito viagens em um mundo imaginário, porque não tratara do cenário percorrido pelos navegadores. Nessa lacuna acabou encontrando um novo tema de pesquisa, cujo resultado é o livro O desenho do Brasil no teatro do mundo (Editora da Unicamp, 264 páginas), em que apresenta ao leitor a trajetória da representação cartográfica da Terra, desde o final da Idade Média, com ênfase nas características da cartografia produzida sobre o Brasil no período colonial.

À maneira de um grande atlas, a publicação, no formato 28 x 36 cm, reúne reproduções primorosas de mais de uma centena de trabalhos desenhados a partir do século 15, como mapas manuscritos, cartas xilogravadas e outros produzidos em grandes tiragens por renomadas casas impressoras dos Países Baixos.

O conteúdo visualmente impactante é o somatório de alguns anos de pesquisa em acervos cartográficos depositados em instituições brasileiras (como a Biblioteca Nacional, a Biblioteca do Itamaraty, o Museu da Marinha e o Arquivo Histórico do Exército) e do exterior, especialmente em Portugal, embora o levantamento, apoiado pelo CNPq e pela Fapesp, tenha se estendido para Espanha e França. Contribuiu também para o enriquecimento do estudo o período em que Paulo atuou como consultor do Instituto Cultural Banco Santos, onde ajudou a organizar o acervo cartográfico e publicou, em 2004, com o apoio da entidade, o livro O tesouro dos mapas.

“O meu foco não foi produzir uma história da cartografia, mas evidenciar como o Brasil foi sendo reproduzido nesse esforço da humanidade em desenhar a Terra”, explica Paulo, que se inspirou para o título de seu livro na obra-prima Theatrum orbis Terrarum, (ou Teatro do Globo Terrestre) do cosmógrafo flamengo Abraham Ortelius (1527-1598), considerado o primeiro atlas moderno da História.

Além da preocupação em proporcionar uma organização temática à ampla coleção de mapas publicada, ele salienta ter tomado o cuidado em produzir um texto que se distanciasse da linguagem acadêmica e tornasse o estudo acessível e de leitura agradável a qualquer leitor interessado no assunto. Colabora, para isso, o fato de ter elaborado uma obra permeada de episódios pitorescos, como os casos de plágio e até roubo de mapas entre artesãos concorrentes, reveladores de que a história da arte e da técnica da cartografia também abriga em seu interior atos pouco edificantes para algumas biografias.

 

Brasilia barbarorum

O livro analisa a representação cartográfica de quatro regiões do território brasileiro: a Amazônia, as zonas litorâneas do Nordeste – no tempo da guerra entre Portugal e Holanda –, o sertão e os confins do sul.

De acordo com o estudo, é possível afirmar que o crescimento da produção cartográfica na Europa foi acompanhado por uma tendência crescente de se representar, integralmente, os territórios do Novo Mundo, com seus países e continentes. Em relação ao Brasil, o território então recém-descoberto surgia como o centro instigador da curiosidade e da imaginação europeia, envolto em uma áurea de exotismo e perigos propagada por cartas e relatos fantasiosos dos viajantes.

Segundo apurou Paulo, as primeiras representações cartográficas conhecidas do Brasil detiveram-se principalmente na vasta costa aberta para o Atlântico, e foi esse o espaço cujo perfil mais rapidamente se incorporou ao conhecimento geográfico europeu.

“As cartas quinhentistas e mesmo seiscentistas, em seu conjunto, eram essencialmente náuticas, pois, mais do que na busca de novas terras, os esforços dos portugueses concentravam-se no estabelecimento mais preciso dos caminhos do mar, sendo importante notar que a posse das costas do Brasil e da África concedia-lhes o domínio estratégico de todo o Atlântico Sul”, lembra o autor.

Outra curiosa constatação: desde os primeiros anos da colonização, por menor que fosse o grau de detalhamento dos mapas dedicados ao Brasil, o rio Amazonas sempre apareceu destacado pelos cartógrafos, em dimensões exageradas que contrastavam com a paisagem vazia que se estendia para além da moldura costeira.

O vazio da imensa e desconhecida massa continental, aliás, era preenchido pela fértil imaginação dos navegadores. O interior do país ainda permanecia obscuro, retratado nos depoimentos como uma região incógnita e inóspita, habitada por pessoas que se alimentavam de carne humana, exibiam nudez sem pudor e viviam sem respeitar as leis civilizadoras da religião e da política.

Essas imagens acabaram incorporadas pelos cartógrafos renascentistas e materializadas em seus trabalhos por meio de cenas de antropofagia e demais elementos teratológicos, acrescentados às advertências escritas nos mapas, relativas à ameaçadora “terra dos bárbaros”, ou Brasilia barbarorum, conforme denominação dada ao território em um mapa do cartógrafo alemão Georg Seutter.

“A força com que essas representações fantasiosas se inscreveram na cultura europeia pode ser percebida por sua presença ao longo de séculos em algumas das mais importantes produções cartográficas relativas ao Brasil e seus habitantes”, enfatiza o docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Ele observa que na segunda metade de 1600, a cartografia sobre a Amazônia e sobre outras regiões interioranas do Brasil, foi consideravelmente ampliada pelo trabalho dos missionários jesuítas.

 

Em busca de um autor

É necessário destacar, ainda, o capítulo dedicado à belíssima arte resultante das batalhas entre portugueses e holandeses pela ocupação do Nordeste brasileiro. A intensidade dos conflitos, observa Paulo, como não poderia deixar de ser, acabava reproduzida pelos cartógrafos, que desenhavam o extenso cenário em que se travavam as lutas pelo domínio territorial.

Na representação cartográfica da região, houve importantes contribuições da família Teixeira, principal escola cartográfica portuguesa do período que vai da segunda metade do século 16 até 1675. Porém, ressalva o historiador, em que pese a importância que esses e outros registros cartográficos portugueses tiveram para compor o desenho do Brasil, é imperioso ressaltar a significativa produção gerada pela presença holandesa nas costas nordestinas, por conta da excelência de seus artistas, cosmógrafos e engenheiros (Marcgrave, Frans Post e Eckhout, entre outros), aos quais são devidas centenas de mapas, cartas, plantas, gravuras, desenhos e pinturas que mostram as capitanias submetidas ao domínio holandês e suas cidades, vilas e fortificações; as batalhas terrestres e navais; as atividades econômicas predominantes, os espécimes da flora e da fauna; e a diversidade das paisagens.

Paulo enfatiza que O desenho do Brasil no teatro do mundo foi concebido também com o propósito de estimular novos estudos em uma área na qual o país não tem tradição. Parafraseando o dramaturgo e poeta siciliano Luigi Pirandello (1867-1936), com sua intrigante Seis Personagens à Procura de um Autor, ele argumenta que a cartografia, na historiografia brasileira, foi sempre uma grande personagem em busca de um autor.

Iniciativas importantes nesse campo, lembra o pesquisador, foram empreendidos por nomes fundamentais na história da cartografia nacional, como o contra-almirante Max Justo Guedes (1927-2011), criador do Museu da Marinha e autor de inúmeros estudos e ensaios carto-bibliográficos, e pela geógrafa e historiadora Isa Adonias, diretora por muitos anos da Biblioteca do Itamaraty. Ambos sucederam com seus trabalhos os estudos referenciais conduzidos pelo historiador português Jaime Cortesão (1884-1960) durante o período de seu exílio no Brasil.

“A história da cartografia é um projeto que requer um esforço coletivo, contínuo e multidisciplinar, já que o mapa não pode ser analisado apenas pelo viés do historiador; o mapa é um monumento cultural dos mais ricos, é uma obra de arte, é resultado de um saber estratégico, encerra valores filosóficos, políticos e religiosos. Portanto, a cartografia não pode ser um campo de estudos restrito à historiografia; deve merecer a atenção de geógrafos, artistas, etnógrafos, linguistas, sociólogos, filósofos e teólogos”, argumenta Paulo.

Serviço

Título: O desenho do Brasil no teatro do mundo
Autor: Paulo Miceli
Páginas: 264 páginas
Preço: R$ 190,00
Editora da Unicamp

 

Comentários

Comentário: 

A publicação dessa obra feita pela Editora da Unicamp foi excelente, além das qualidades acadêmicas, o livro é uma obra de arte. Parabéns ao autor, à editora e à Unicamp.

maurizius@terra.com.br