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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 20 de maio de 2013 a 03 de junho de 2013 – ANO 2013 – Nº 562Machado, um intruso na Rússia
Quando iniciou as investigações para o doutorado, a pesquisadora Andrea de Barros já previa que a recepção à obra de Machado de Assis na Rússia contemporânea fosse bastante restrita. Sua antevisão se confirmou com os resultados da pesquisa. As razões do quadro encontrado, segundo Andrea, incluem desde a imagem exótica do Brasil no imaginário do leitor/crítico russo – que não corresponde ao Brasil retratado por Machado de Assis – até a sofisticação característica da crítica social machadiana, que não facilita o acesso do leitor estrangeiro, pouco familiarizado com as peculiaridades da sociedade brasileira de meados do século 19, às camadas de significação e entendimento mais profundas do texto.
De acordo com Andrea, além dos aspectos textuais, a configuração política também exerceu um papel decisivo na recepção da obra machadiana. Ela acrescenta que, em diferentes etapas da história russa, ideais de liberdade marcaram o interesse dos intelectuais, escritores e estudiosos pela literatura dos países da América Latina. Por não descrever de forma explícita a condição dos escravos no Brasil, a literatura de Machado não apetecia os leitores russos, mais interessados em narrativas latino-americanas que servissem de espelho para a condição dos servos em seu próprio país. “Sendo assim, condenar a escravidão no Brasil era uma forma indireta de criticar o regime servil que ainda sustentava a sociedade russa.”
Sempre atenta à conjuntura mundial, a intelectualidade russa, a partir de 1917, com a revolução em seu país, e até 1964, com o golpe militar, ainda procurava conteúdos relacionados aos ideais de liberdade, mas Machado, mais uma vez, não se adequa ao horizonte de expectativa daqueles leitores, segundo Andrea. “A atenção recai sobre os escritores regionalistas e modernistas, principalmente aos filiados ao Partido Comunista, como Jorge Amado e Graciliano Ramos, e outros”, acrescenta Andrea. Apesar do considerável aumento no número de escritores brasileiros publicados na União Soviética, eles buscavam na literatura da América do Sul autores que abordassem a questão da liberdade.
A reserva à obra de Machado já havia sido observada por Andrea em 2003, enquanto relia Dom Casmurro (1899) para um curso de leitura e produção de textos. Na mesma época, começou a ler Dostoiévski, simultânea e coincidentemente. Passou, naquele momento a fazer, de forma espontânea e depois sistemática, algumas relações entre os dois autores, não só no âmbito do texto, mas também da história da recepção crítica dos dois escritores dentro e fora de seus países de origem. A investigação deu origem a sua dissertação de mestrado, “A dúvida em discursividade: Machado de Assis e Dostoiévski,” defendida na PUC-SP, em 2007, na qual traçou um diálogo entre Dom Casmurro (1899) e O eterno marido. Ao constatar a disparidade entre o estado da recepção internacional das obras dos dois autores, decidiu então mergulhar entre documentos e evidências que explicassem a ausência de Machado na crítica internacional. “Machado de Assis continuava obscuro diante da crítica internacional, enquanto Dostoiévski mantinha-se, indiscutivelmente, um clássico mundial”, pontua.
Também no campo da pesquisa, apesar de ter sido traduzido e publicado na Rússia, Machado de Assis manteve-se restrito à leitura de poucos pesquisadores, entre os quais se destaca Inna Terterian (1933-1986), do Instituto de Literatura Mundial “Górki” (IMLI) e da Academia de Ciências da Rússia, crítica soviética que mais se dedicou à obra machadiana, segundo Andrea. Dom Casmurro, primeiro romance de Machado publicado na Rússia, inclui uma introdução assinada por Terterian, que também é responsável por verbetes sobre o escritor nas enciclopédias literárias soviéticas e outros textos em coletâneas de literatura brasileira.
Além de Inna, Machado foi estudado também por Maria Nadiarnykh, pesquisadora-sênior do Instituto de Literatura Mundial “Górki”, da Academia Russa de Ciências e principal representante da atual crítica russa a Machado de Assis e à literatura brasileira, de forma geral.
De acordo com Andrea, críticos como Roberto Schwarz já apontavam a receptividade internacional do repertório machadiano, impulsionada pelo aumento do interesse da crítica norte-americana pela literatura brasileira. As análises do incremento quantitativo e qualitativo de estudos internacionais sobre a literatura brasileira, a partir da revolução cubana, em 1959, sustentam tal afirmação. Ela acrescenta que, como acontece com todas as expressões culturais, a literatura é uma forma de conhecer as ideias, a estruturação das relações sociais, o pensamento político de um país.
Segundo a pesquisadora, o Brasil, no cenário político mundial do final dos anos 1950, passa a ocupar uma posição estratégica na disputa de poder entre as maiores potências econômicas do período – Estados Unidos e União Soviética. A área de estudos latino-americanistas, nos Estados Unidos, foi beneficiada por investimentos e incentivos que, consequentemente, se refletiram na produção da crítica literária americana. No caso específico de Machado de Assis, conforme Andrea, o livro da crítica americana Helen Caldwell, O Otelo brasileiro de Machado de Assis (1961), é um exemplo paradigmático do quanto os estudos americanos tiveram um papel decisivo na recepção internacional da obra de Machado. A obra contém o primeiro estudo que questionou o adultério de Capitu – o que viria a revolucionar a leitura da narrativa machadiana pela crítica mundial.
Andrea lembra que na maior parte do período abarcado pela pesquisa (1960 a 2010), o regime soviético estava em vigor, o que justifica o fato de a crítica da época ser bastante cerceada pelas diretrizes do realismo socialista e pela força explícita e indiscutível da censura. “Nesse contexto ideológico, a leitura da crítica privilegia os aspectos psicológicos da escrita de Machado, visto como o grande mestre do realismo psicológico no Brasil, em detrimento de sua ironia crítica, que parece ter passado despercebida pelos russos.” Nada muito diferente dos críticos brasileiros do mesmo período que, apesar de conhecer de perto e vivenciar as intrincadas relações sociais do Brasil do século 19, não compreendiam as sutilezas do escárnio com que o escritor retratava a sociedade patriarcal latifundiária brasileira, comenta Andrea.
Andrea esclarece que o projeto inicial da tese incluía uma comparação entre a recepção crítica de Machado de Assis, na Rússia, com a de Dostoiévski, no Brasil, mas a ausência no Brasil de estudos aprofundados sobre a recepção machadiana na Rússia a estimulou a enriquecer o grande conjunto de estudos machadianos com um tema que fosse mais proveitoso. Mas, mesmo satisfeita com a contribuição dos resultados da tese, se confessa instigada a explorar ainda mais o duo Machado e Dostoiévski. “Ainda pretendo dar prosseguimento aos diálogos entre os dois escritores, desta vez dentro do campo maior das relações culturais entre Brasil e Rússia”, confessa
Publicação
Teses: “Machado de Assis na Rússia: estudos de recepção literária”
Autoria: Andrea de Barros
Orientação: Francisco Foot Hardman
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)
Comentários
Nossa senhora, que
Nossa senhora, que pesquisadora linda, com todo respeito.