Edição nº 571

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 19 de agosto de 2013 a 25 de agosto de 2013 – ANO 2013 – Nº 571

Empreendimentos solidários têm papel na inserção social de grupos marginalizados

Com a ajuda de políticas públicas, iniciativas de autogestão e sem foco no lucro podem ajudar pessoas pouco qualificadas a obter renda

Empreendimentos de economia solidária – com gestão pelos próprios trabalhadores e um foco menor no lucro financeiro que o das empresas tradicionais – podem ter um importante papel a desempenhar para inserir, na sociedade e no mercado, grupos de pessoas que têm ficado à margem do desenvolvimento. Mas, para isso, essas iniciativas precisam do apoio de políticas públicas, diz o doutor em economia Leandro Pereira Morais.

“Há alguns segmentos que, ao se incorporarem para atender a vendas públicas, depois conseguem abrir a venda para o mercado em geral. Graças a terem começado com venda para o Estado, que garantia mercado, garantia demanda. Com isso, as pessoas podiam projetar o que fazer com o excedente”, disse Morais ao Jornal da Unicamp. Ele é o autor da tese de doutorado As Políticas Públicas de Economia Solidária: Avanços e Limites para a Inserção Sociolaboral dos Grupos-Problema, defendida em fevereiro deste ano no Instituto de Economia (IE) da Unicamp, sob orientação do professor Miguel Juan Bacic.

Morais reconhece que o conceito de “economia solidária” (ESOL) ainda é alvo de disputa no meio acadêmico, mas em sua tese ele faz um recorte particular: “São experiências, instituições, organizações que trabalham e que lidam com a inserção de grupos desfavorecidos no mercado de trabalho”, explicou, acrescentando que sua tese está mais especificamente ligada às formas que as pessoas desfavorecidas utilizam pra gerar renda.

Para apontar a necessidade de uma estratégia alternativa de inserção no mercado de trabalho dos chamados “grupos-problema” – analfabetos, analfabetos funcionais, pessoas sem capacitação técnica – a tese de Morais cita dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), segundo os quais o desemprego entre os 10% mais pobres da população aumentou, ao mesmo tempo em que o desemprego geral na economia caía, entre2005 e 2010. Pata os mais desfavorecidos, a taxa passou de23% para 33%. O desemprego dos 10% mais pobres passou a ser 37 vezes maior que o dos 10% mais ricos na segunda metade da década passada.

Mas, se o mercado formal não é capaz de encontrar ocupação para essas pessoas, por que as iniciativas de ESOL seriam? “As experiências de economia solidária não necessariamente darão todas certo”, disse Morais. “Mas, pelo grau de informalidade em que essas pessoas vivem, elas poderiam encontrar, pelo menos por um momento, formas de obter mecanismos de subsistência”. De acordo com ele, a experiência mostra que alguns grupos organizados como ESOL e que se firmam seguem no modelo solidário, enquanto que, em outros casos, o empreendimento solidário opera apenas como um estágio intermediário para a entrada no mercado tradicional.

“A gente vê esses grupos e a economia solidária como uma forma imediata de tentar sair da ausência de renda. Agora, tem uns que chegam nesse ponto e optam por sair para o emprego formal. Outros, por outro lado não: dizem, consegui, estruturei meu negócio de economia solidária, vou me manter com isso e quero disseminar esse tipo de sociedade, que lida com outros valores que não os valores dessa economia tradicional”, descreve.

Embora não veja a ESOL como uma alternativa capaz de substituir o modelo de desenvolvimento capitalista, ou de resolver, por si só, a questão da inserção social dos desfavorecidos, Morais aponta para os empreendimentos solidários como parte de uma disputa simbólica em torno dos rumos da sociedade atual: “Não acredito que a economia solidária seja algo que vá se constituir num novo modelo de desenvolvimento. Mas acho que é um dos elementos que contribuem para repensar o modelo de desenvolvimento atual. A ESOL não é o novo modelo de desenvolvimento, não vai mudar o mundo, mas é um elemento constitutivo para repensar esse modelo, mostra que é possível haver outras formas de organizar a produção e o mercado, que não a economia tradicional voltada para o lucro, para o aspecto financeiro”.

Nos empreendimentos solidários, disse Morais, o lucro, ou excedente, é reinvestido no negócio ou usado para melhorar as condições de trabalho dos colaboradores. “Sempre há espaço para melhorar isso”, afirmou. “O que se faz, com a visão de lucro capitalista, numa empresa tradicional, é ou investe no mercado financeiro, para ter um lucro financeiro sobre o lucro produtivo, ou aguardar meios de rentabilizar isso aí de outras formas que não na própria atividade, e não na melhoria das condições do associado ou do empreendimento”. O diferencial entre a ESOL e a companhia tradicional não estaria, portanto, na presença ou ausência de lucro com a atividade, mas no que se faz com ele.

Sem autonomia

O Brasil conta com uma Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), órgão do Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE). Morais lamenta, porém, que a secretaria não conte com autonomia financeira, dependendo de parcerias com outros órgãos e ministérios para desenvolver seus projetos.

O economista chama atenção para a necessidade de transversalidade e colaboração entre diferentes setores da administração pública, para que oportunidades de inserção social por meio de estímulo à economia solidária sejam detectadas e frutifiquem. Ele cita casos, no Brasil, de parcerias entre a Senaes e os ministérios da Justiça, para a inserção social de ex-presidiários, e do Desenvolvimento Social, para atuação em áreas de seca do Nordeste, como exemplos. E também há exemplos no exterior.

“Há experiências que estão utilizando na África, em lugares que não tinham eletricidade, saneamento, e estão começando a construir isso usando cooperativas da localidade”, descreveu Morais. “Então, eles garantem ali a inserção dessas pessoas, que ganham alguma experiência laboral nessas respectivas áreas e que vão se inserindo nessas atividades”.

No caso brasileiro, além de uma maior integração entre os órgãos públicos – “há prefeituras onde uma secretaria não sabe do trabalho de outra” – Morais também vê, como necessária, uma revisão da legislação. Segundo ele, há brechas legais que abrem espaço para a formação de “cooperativas espúrias”, ou “coopergatos”, que se valem da estrutura legal para precarizar a situação da mão-de-obra. ”Muitos não aceitam a economia solidária: acham que é uma forma de precarizar o mercado de trabalho, e que não tem nada a ver com uma forma mais solidária de levar a produção e o consumo”, reconhece o autor. “Agora, há cooperativas sérias trabalhando, e fazendo valer valores cooperativos, no Brasil e no exterior. Tem países em que a questão jurídica pega mais pesado, onde se faz um pente mais fino que aqui. Então, acho que tem de separar as autênticas das espúrias”.

Morais não encara formas de apoio mais direto, como uma política de preferência em compras públicas, como ilegítimas ou criadoras de vínculos de dependência entre o empreendimento solidário e o governo. “Quando o governo dá apoio aos bancos ou à indústria automobilística, isso não gera dependência”, exemplifica. “Por que não ajudar? Não ajuda banco? Claro que tudo é mais difícil para a economia solidária, mas há experiências que mostram que isso vem dando certo: começa-se com vendas públicas, e depois passa-se a outros nichos de mercado e isso vai estruturando a forma de atuar do empreendimento”.

No Brasil, o BNDES conta com um Departamento de Economia Solidária. Morais vê a necessidade de as políticas de apoio ao setor se tornarem políticas de Estado, a não apenas de governo, que mudam com a alternância dos governantes.

“Muitas das experiências se regem com políticas de governo, e não políticas de Estado. Quando muda o governo, aí é outro partido, determinados projetos não são levados adiante, projeto que podem até estar dando certo”, disse ele.

Um impulso maior para o desenvolvimento da ESOL, no entanto, ainda depende de mais estudos e da criação de indicadores quantitativos confiáveis. “É bom dizer que essa é uma área ainda em experimentação, que carece de estudos, acompanhamento, avaliação”, afirmou o autor. “Foram investidos tantos milhões, no projeto tal. Que retorno isso trouxe? Não sei, ninguém sabe, porque não tem avaliação e monitoramento. Sabemos que houve mudanças, mas não sabemos quantificá-las”.

A criação de ferramentas de monitoramento é uma missão que cabe tanto ao governo quanto à academia. “Há um nicho aí para as universidades, e algumas já estão debruçando-se sobre isso. Criando laboratórios, estabelecendo, em seus projetos de pesquisa e extensão, formas de calcular isso, produzir uma massa crítica para gerar indicadores que possam avaliar isso. E por que não ter parceria com o governo, financiando parte dessas pesquisas? É um tema que vem, cada vez mais, entrando na agenda das universidades e do poder público”.

O trabalho da tese foi desenvolvido, em partes, a partir de uma consultoria-pesquisa que Morais faz junto ao Centro de Formação Internacional da Organização Internacional do Trabalho (OIT), órgão da ONU, sobre o mapeamento de políticas públicas na área. Esse esforço deu origem à Academia Internacional da OIT sobre Economia Social e Solidária, que já teve três edições realizadas, em Turim (Itália), Montreal (Canadá) e Agadir (Marrocos). “O trabalho continua e estamos estruturando a 4ª Academia que, provavelmente, será no Brasil”, disse o autor.

Publicação

Tese: “As políticas públicas de economia solidária: avanços e limites para a inserção sociolaboral dos grupos-problema”
Autor: Leandro Pereira Morais
Orientador: Miguel Juan Bacic
Unidade: Instituto de Economia (IE)