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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 19 de agosto de 2013 a 25 de agosto de 2013 – ANO 2013 – Nº 571Memórias do degredo
Dissertação mostra como jornais de SP endossaramisolamento compulsório de hansenianos
Marcos Rey era o pseudônimo de Edmundo Donato (1925-1999). Escritor já considerado de respeito nos anos 1960 (ganhou o Jabuti em 1968), ele passou a vender muitos livros para o público juvenil nos 80, tendo adaptado clássicos como A Moreninha e o Sítio do Pica-Pau Amarelo para a televisão – além de Memórias de um Gigolô, grande sucesso de Ibope em 1985. Morreu aos 74 anos, devido a complicações de uma cirurgia. Um mês depois de cremado, a viúva Palma Bevilacqua Donato sobrevoou de helicóptero o centro de São Paulo para espalhar as cinzas sobre a metrópole que foi palco da sua obra. E só então se tornou público que o pseudônimo escondia uma doença que Marcos Rey revelou para pouquíssimos, por conta do estigma e da ameaça de ser internado à força: a hanseníase.
“Isolamento compulsório de hansenianos: o papel dos jornais paulistas na manutenção do degredo (1933-1967)” é o título da dissertação de mestrado de Guilherme Gorgulho Braz, apresentada no Instituto de Estudos da Linguagem, no âmbito do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), sob a orientação da professora Germana Barata. “Eu me envolvi com o tema ao fazer um trabalho voluntário na catalogação do acervo do Arquivo Histórico de Mogi das Cruzes, cidade onde nasci e onde foi construído o Asilo Santo Ângelo, o primeiro dos cinco leprosários que constituíram a rede asilar do Estado de São Paulo.”
O autor da pesquisa lembra que a hanseníase é uma doença estigmatizada desde os templos bíblicos, quando o doente já era isolado da sociedade devido à aversão provocada por lesões nos nervos e na pele responsáveis por deformidades severas. “Cientificamente, nada se sabia sobre a doença, se era hereditária ou transmitida por insetos, se contagiosa ou não. O bacilo causador, Mycobacterium leprae, foi descoberto por Gerhard Hansen apenas em 1873, na Noruega.”
Segundo Guilherme Gorgulho, até o século 19, no Brasil, os doentes sem condições financeiras eram abrigados em asilos ou hospitais de lázaros, mas sem que fossem obrigados a isso – o primeiro “asilo de leprosos” surgiu no Recife, em 1714. “O isolamento compulsório se tornou efetivamente uma política pública com a construção de asilos-colônia devido ao crescimento da endemia nas duas primeiras décadas no século 20. São Paulo era um dos estados com maior incidência, por conta do grande fluxo de imigrantes vindos no período do café, no final do século 19 – grande parte dos doentes era de italianos e descendentes.”
O modelo de internação adotado pelo governo paulista, afirma o pesquisador, foi justamente o norueguês, decisão tomada não de um consenso científico, mas pelo grupo político que galgou o poder a partir de 1930, início da Era Vargas. “Com poucas vozes dissonantes no meio acadêmico, a política isolacionista viria a perseverar por quatro décadas em São Paulo. E o apoio dos jornais foi fundamental para que o degredo dos doentes no Estado fosse extinto apenas em 1967, cinco anos depois do decreto baixado pelo então primeiro-ministro Tancredo Neves.”
A questão, de acordo com Gorgulho, é que São Paulo adotou uma política muito mais restritiva do que Estados como Minas Gerais e Rio de Janeiro, chegando ao extremo de acionar a polícia sanitária para capturar “leprosos” a laço em suas casas. “Foi como uma caçada a animais, com o isolamento em asilos que funcionavam como campos de concentração. Esse modelo de profilaxia internava não só os pacientes contagiantes, mas também os não contagiantes, privando-os de direitos civis e políticos básicos.”
Para implantar sua política, o governo paulista inaugurou uma rede de cinco leprosários: o Sanatório Padre Bento, em Guarulhos (1931); o Asilo-Colônia Pirapitingui, em Itu (1931); o Asilo-Colônia Cocais, em Casa Branca (1932); o Asilo-Colônia Aimorés, em Bauru (1933); e o Asilo-Colônia Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes (1928), que tinha sido construído pela Santa Casa de São Paulo mas acabou encampado pelo Estado.
Imprensa comprometida
A hipótese apresentada por Guilherme Gorgulho na dissertação é que a mídia impressa se engajou na defesa dos interesses do governo estadual, apesar dos descontentamentos dos pacientes e das vozes divergentes de cientistas. “Defendendo a crença de que São Paulo cumpria um papel de ‘grande potência’ no Brasil, os jornais paulistas se mostraram comprometidos com as medidas de controle social que queriam excluir a parcela doente da sociedade. Até os anos 1950, as críticas ao modelo não tiveram espaço nos veículos locais, apenas na imprensa carioca.”
O pesquisador selecionou 199 textos dos jornais O Estado de S. Paulo, Folha da Noite, Folha da Manhã e Folha de S. Paulo, entre 1933 e 1967, período em que vingou a política de isolamento. “Optei por esses jornais porque estavam entre os dez principais paulistas e, também, por possuírem o acervo digitalizado, permitindo a busca por palavras-chave. Fiz uma análise de conteúdo de reportagens, notas, artigos e editoriais. Ao longo do período, 37% dos textos apoiavam a política de isolamento compulsório e apenas 16% eram contrários, enquanto 47% ficaram neutros.”
Gorgulho também foi a campo para entrevistas, uma delas com a médica Maria Augusta Tibiriçá Miranda, filha de Alice Tibiriçá, uma ativista em prol dos hansenianos. “Ela vivenciou com a mãe o momento da implantação da rede de leprosários paulista e sua luta pelo tratamento humanitário aos doentes, através da Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra. Alice Tibiriçá morreu em 1950 e teve sua biografia escrita por Maria Augusta, que se mantém bastante lúcida aos 96 anos.”
A biografia detalha o trabalho da ativista que levava informações sobre a hanseníase por todo o país e também de um atrito com Júlio Prestes em 1928. “Alice foi chamada ao gabinete para que diminuísse a campanha a favor dos hansenianos, pois estaria passando a imagem, sobretudo ao exterior, de que São Paulo era um estado de ‘leprosos’, quando se fazia um esforço para atrair imigrantes. Diante da recusa, o governador mandou fechar as portas do Correio Paulistano para ela, que manteve as atividades de divulgação por meio do boletim da sua entidade.”
A segunda entrevista de Gorgulho foi com o médico André Cano Garcia, que começou a trabalhar com hanseníase em 1947, tendo atuado como clínico em um dos cinco leprosários e dirigido outros três. “Ele contou que os médicos só podiam ser contratados do Estado, pois o atendimento particular era proibido por lei. O ambiente fechado restringia a opinião dos médicos críticos do modelo, que Garcia considerava exagerado. Como das três formas de hanseníase apenas uma é contagiosa, ele achava que os doentes em fase inicial deviam ser tratados nos dispensários (espécie de postos de saúde). Para o médico, que entrevistei em 2011 e faleceu no ano passado, o isolamento acabava com a vida do sujeito.”
Comida na lata
O terceiro entrevistado, o médico e jornalista Julio Abramczyk, repórter da Folha de S. Paulo na última década do recorte temporal da pesquisa, teve algumas reportagens incluídas no corpo da dissertação. O jornalista disse a Gorgulho que nunca sofreu restrições quanto a abordar a hanseníase no jornal e que o fazia do ponto de vista jornalístico, sem dar a devida atenção à questão social e humanitária dos internos nos leprosários e dos egressos.
“Provavelmente, por falta de uma visão social. Ou melhor, por indiferença, porque a coisa estava muito bem escondida”, admitiu Abramczyk. “Eu me lembro que uma vez uma pessoa comentou comigo que havia bandos de hansenianos andando pelas cidades e pedindo comida, que era fornecida em latas pregadas em uma vassoura ou em um pedaço de pau comprido, para não chegar perto.”
Guilherme Gorgulho recorda que em 1943 foi publicado nos EUA o primeiro artigo demonstrando a eficiência das sulfonas para a cura da hanseníase, e que São Paulo acompanhava de perto aquelas pesquisas. “Ainda no final da década de 1940, o Instituto Butantan começou a produzir e distribuir o medicamento aos leprosários e muitos pacientes tiveram alta. Entretanto, os egressos dos asilos continuaram rejeitados, passando a viver como párias da sociedade. A verdade é que, mesmo com a severa política de isolamento compulsório, a endemia acabou crescendo, por causa dos doentes que se escondiam e a alastravam ainda mais pelo Estado.”
Rey e os "gateiros"
Uma exceção encontrada por Gorgulho na imprensa paulista foi uma série de seis reportagens publicadas pela Folha da Manhã em 1949, intitulada “O problema da readaptação social dos egressos dos leprosários”. A série era assinada por um tal Lucas d’Ávila e ilustrada por Waldemar Cordeiro. “Eram matérias fora do comum por causa do tom humanitário, tratando da rejeição aos hansenianos e da falta de moradia e de emprego. Havia muitas citações literárias – o que também era totalmente incomum – como de Maupassant, Hemingway, Michael Gold e Theodore Dreiser.” De acordo com o pesquisador, esses escritores eram os favoritos de Marcos Rey e o título de uma das reportagens, “Os Cavaleiros da Praga Divina”, é o mesmo de um romance que permanece inédito. “Várias coincidências apontavam para o verdadeiro autor das reportagens, que tinha o irmão Mário Donato como editor-chefe do jornal. Marcos Rey viu-se com lepra ainda adolescente. Foi capturado em casa em 1941e levado à força para o Santo Ângelo e depois para o Padre Bento, onde começou a escrever o romance em 1943. Fugiu em 1945 para o Rio de Janeiro, de onde voltou cerca de um ano depois, terminando a obra em 1948. O livro trata dos ‘gateiros’, hansenianos que esmolavam na beira das estradas de São Paulo, dormindo em acampamentos e fugindo da polícia sanitária depois da implantação da política de isolamento compulsório.”
Publicação
Dissertação: “Isolamento compulsório de hansenianos: o papel dos jornais paulistas na manutenção do degredo (1933-1967)”
Autor: Guilherme Gorgulho Braz
Orientadora: Germana Barata
Unidades: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)/ Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) I