Edição nº 581

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 28 de outubro de 2013 a 03 de novembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 581

Da Londres vitoriana ao folhetim carioca


Estava-se em 1890. A Lippincott’s Monthly Magazine, nas versões americana e inglesa, publicava pela primeira vez O retrato de Dorian Gray, único romance de Oscar Wilde, autor extremamente influente no final do século XIX e envolvido em discussões estéticas. Por solicitação da revista, Dorian Gray foi elaborado como um ensaio, sob a forma de romance, que tinha o objetivo de possibilitar a discussão das ideias do Movimento Estético defendido em ensaios por Wilde, que desvinculava da literatura alguns valores caros à classe média vitoriana. Com efeito, a sociedade puritana da época considerava moral e estética na arte como fatores interdependentes.

Wilde dissocia esses dois aspectos, defendendo que a moral podia integrar uma obra, mas não constituir seu objeto principal, que deve ser a preocupação com a estética. É a defesa da beleza por ela mesma, desvinculada de princípios éticos. A recepção da crítica inglesa foi bastante negativa, face à exclusão dos valores tanto morais quanto artísticos dos pressupostos estéticos que o autor defendia e colocava em prática no romance que lhe fora encomendado para servir de exemplo às propostas do novo movimento.

Diante da recepção negativa, Wilde alterou e ampliou a obra, adicionando cinco novos capítulos à edição que seria publicada em livro por Ward, Lock e Company, em 1891. Vinte anos depois, em 1911, o recém-criado vespertino carioca A Noite, de propriedade de Irineu Marinho, publica o romance na forma de folhetim, durante cerca de um ano, em tradução do jornalista, cronista e contista João do Rio, admirador do poeta, ensaísta e dramaturgo irlandês. No Brasil, a editora Garnier lança a publicação em livro, em 1923, após a morte do tradutor.

Embora a intenção da revista fosse contribuir para a discussão das novas concepções estéticas, apresentando-as concretamente através de romance, este acabou sendo recebido pela crítica inglesa sob o viés da imoralidade associada à vida íntima do autor, acusado de ter relações impróprias com homens, à época punidas como crime. O indício de uma afetividade considerada inadequada entre dois personagens, o pintor Basil Hallward e Dorian Gray, agravou-se com a eclosão de um escândalo envolvendo homens da família real que manteriam relações com meninos. A partir desse contexto, é recorrente a discussão sobre a leitura que se faz do romance associando-a à imagem de Oscar Wilde. 

No Brasil o interesse pela biografia de Wilde constituiu-se também uma possibilidade de leitura entre o público familiarizado com os acontecimentos divulgados pelos jornais acerca de sua condenação e prisão por dois anos, em 1895, por manter relações sexuais com um lorde. Mas, ao mesmo tempo, em decorrência do veículo em que foi publicado – um vespertino dedicado a notícias de impacto e forte cobertura policial – o romance recebeu outras leituras. Certamente o público desse jornal era atraído por aspectos do entrecho que revelavam o submundo do crime e pelo caráter de suspense que o envolviam.

As possibilidades de leitura que a própria construção do romance suscita; as compreensões de como as obras literárias se inserem de maneira diversa em diferentes contextos, possibilitando interpretações inesperadas; as conotações sugeridas pelos próprios meios que as publicam e pelas formas que o fazem – certamente são diferentes as motivações de uma revista literária, de um jornal preocupado em manter o suspense do leitor e de uma editora de livros – levaram a pesquisadora Tânia Toffoli a dedicar-se ao estudo de Dorian Gray durante a elaboração de sua dissertação de mestrado em que ela analisa a obra em três tempos e segundo algumas possibilidades de leitura.

O romance, que atraíra há muito a atenção da pesquisadora, a fez refletir, enquanto estudante de letras, sobre a função da literatura. A literatura precisa realmente ter uma função, ou basta que tenha valor estético como defendia Oscar Wilde? Estaria ela dedicando-se a um estudo que não serviria para nada? A essa discussão muito antiga, que ela considera recorrente entre os estudantes de literatura, ela responde, citando Antonio Candido, quando diz que a arte humaniza o homem. Para ela, a literatura permite entender a humanidade, como se dão as relações na sociedade, como os seres humanos se posicionam, pensam, agem, revelam suas vaidades. Em suma, a literatura põe em evidência o ser humano, o humaniza e o distingue dos demais seres vivos.

 

O retrato

Dorian Gray é retratado por um amigo, o pintor Basil Hallward, que inspirado na extrema beleza daquele jovem de 18 anos, pinta-o com tal exatidão que julga ter-lhe captado a própria alma. Um amigo do pintor, o cínico e hedonista Lord Henry Wotton, que passa a gozar da amizade do jovem, o seduz para uma visão de mundo em que o único propósito é o da beleza e do prazer.

Impulsionado por essa visão, ao se deparar com seu retrato, Dorian se dá conta de que, enquanto o quadro se manterá belo para sempre, ele envelhecerá. Manifesta então o desejo de se manter jovem. E tem atendido o pedido. Influenciado por Henry, Dorian envereda por um mundo de vícios, desregramentos e crimes, mas se dá conta de que, em consequência, ocorre a progressiva transformação da figura retratada, que refletiria a degradação do seu estado de alma, levando-o a esconder o quadro no sótão. O retrato representaria o registro de transgressões e envelhecimento interior, enquanto sua própria aparência permanecia jovem e bela. As várias possibilidades de leitura que a obra de Oscar Wilde sugere levaram à sua adaptação com vistas a vários públicos ao longo dos anos, como o fez Clarice Lispector que nele se baseou para a produção de uma obra destinada ao público infanto-juvenil.

Para Tânia, permeia o romance uma série de discussões sobre o significado da arte, da estética, do belo, da moral através de um personagem extremamente vicioso e de outro de ideias hedonistas e que, por defender conceitos estéticos semelhantes ao do autor, muitas vezes é associado a ele. Para outros, Oscar Wilde não pensava como Henry e utilizava o personagem com ironia e provocação.

Ao propor-se ao estudo, a pesquisadora tinha como objetivo verificar como a descrição remetia à concepção do quadro, supondo que esta fosse muito relevante na construção da imagem em um texto escrito. Ela propunha-se a estabelecer a relação do quadro com a escrita, porque este não pode ser visto, já que se trata de um texto. Com o desenrolar do trabalho ela percebeu que a utilização da descrição não se alongava. As imagens do quadro eram sugeridas e decorriam dos acontecimentos da narrativa.

Daí a percepção de que havia uma ligação muito grande entre a descrição e a narração no romance, na maneira como se desenrolava a narração, como os elementos eram dispostos e de como o narrador se colocava. Tudo contribuía para a descrição do quadro. “Muitas vezes se consegue imaginar a deterioração da figura retratada por sugestão das atitudes e ações de Dorian Gray. Começa-se a enxergar o quadro em função da narrativa e por isso centrei o estudo nela”, explica Tânia.

A pesquisadora, que se propusera inicialmente ao estudo centrado na estrutura formal do romance, ao perceber que havia uma correlação entre o narrador e o autor na maneira como o romance fora construído, passou a orientar o estudo também sobre a maneira como a forma de como ele é construído, determina como a sociedade o recebe e associa a fatores externos à obra. Ela explica: “De certa forma esta decisão constituiu um desvio da proposta inicial mesmo porque minha orientadora trabalha em linha de pesquisa que estuda a circulação das obras e isso passou a me interessar muito”. O trabalho foi orientado pela professora Orna Messer do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Unicamp.

 

Contexto

Ao partir da análise da estrutura da descrição do quadro apoiada na narração, a autora percebeu como a forma do romance corrobora a associação feita pela crítica entre o romance e a biografia do autor. Esse fato, por sua vez, está relacionado à recepção do romance em um primeiro momento na Inglaterra e também com a maneira como João do Rio o traduziu, modificando inclusive trechos para não receber respingos decorrentes da biografia do autor. Essa versão, publicada inicialmente em 1911 no jornal A Noite, possibilita a desvinculação do romance da questão estética e permite sua leitura como enredo de crime e suspense. No bojo da dissertação, ela mostra as conotações que a obra pode ter dependendo do meio, do veículo de publicação e inclusive da tradução.

Tânia detalha: “Não fiz uma pesquisa que trata só do contexto e ou só do veículo, pois a união da estrutura e a relação dela com o contexto é importante, porque muitas vezes a análise não trata do contexto e fica só na estrutura, ou trata do contexto e esquece a estrutura. O retrato de Dorian Gray permite o estabelecimento dessa interpretação devido à sua estrutura. Essa me parece a questão fundamental do trabalho, que é o de procurar mostrar com a forma influi no contexto e este influi na forma”.

A pesquisadora considera a discussão da importância da literatura para a sociedade tema muito atual não só para os que se dedicam a literatura, mas também para toda a sociedade. Para ela a literatura tem papel importante na formação intelectual das pessoas, nas suas transformações, na formação de melhores seres humanos. Ela leva à reflexão de cada um sobre si mesmo e sobre o mundo. “Acho que os estudos de literatura podem contribuir muito para tudo isso, justamente porque despertam pensamentos que talvez não fossem suscitados, que levam a pensar o mundo de ângulos até então desconhecidos. Do ponto de vista da perspectiva histórica, a literatura permite perceber como se viam as coisas antes e porque o tempo e o lugar mudam olhares”, conclui ela.

 

Publicação

Dissertação: “O retrato de Dorian Gray: um romance em três tempos”
Autora: Tânia Toffoli
Orientadora: Orna Messer Levin
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)

Comentários

Comentário: 

Gostei do tema, felicitações à Tânia e orientador pelo trabalho! Não sou da área literária (sou da biologia molecular) e concordo plenamente com a afirmação da autora de que a literatura atua na formação de melhores seres humanos. Ótimo texto, cheguei no final querendo reler o livro e o estudo defendido muito interessante.