Edição nº 599

Nesta Edição

1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 02 de junho de 2014 a 08 de junho de 2014 – ANO 2014 – Nº 599

Entre o apagamento e a preservação

Paradoxalmente, tombamento colabora para a deterioração de patrimônio histórico de Campinas

No bairro Vila Industrial, região sul de Campinas, funcionou aquela que foi uma das primeiras vilas operárias do Brasil. Não são imóveis representativos da pujança da elite cafeeira, como os encontrados no centro da cidade e que foram quase todos transformados em comércio, mas sim antigas indústrias, curtumes, hospitais e as casas, geminadas, de dois ou três cômodos, que abrigavam trabalhadores das proximidades. Trata-se de patrimônio tombado pelo poder público, mas ainda distante de receber o devido reconhecimento. O que atrai novos habitantes e empreendimentos é a localização privilegiada, “a cinco minutos do Centro”.

Da antiga Vila Riza, por exemplo, conjunto que ficava às margens do complexo da estação ferroviária e onde hoje funciona o novo terminal rodoviário de Campinas, sobraram apenas quatro exemplares de residências, após a demolição em 2007. Havia sim um processo de tombamento, mas foi arquivado. Há ainda a Vila Manoel Freire. Esvaziada pelo risco de desabamento das casas, foi depois de anos de abandono ocupada por moradores de baixa renda. Houve vários projetos para tentar salvar o patrimônio, mas todos deram em nada, e a vila está em ruínas. Não funcionou a ideia de um centro cultural e malogrou a implantação de moradias populares, projeto que seria financiado pela Caixa Econômica Federal.

Existem alguns conjuntos de casas nas ruas Francisco Teodoro, Venda Grande e Alferes Raimundo. A Vila Manoel Dias continua lá, escondidinha e ocupada, na maioria das casas, por imigrantes nordestinos. De todos os bens tombados na cidade pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Artístico e Cultural de Campinas (Condepacc), desde o ano de sua criação, em 1987, o bairro Vila Industrial abriga muitos. A vila é operária porque, entre o final do século 19 e início dos 20, o bairro era considerado periférico. Por isso, abrigava cemitérios, hospitais, fábricas e população de baixa renda. Hoje, mudou. Há inclusive um túnel que encurtou consideravelmente a distância com o Centro. A verticalização das habitações predomina no bairro. A vizinhança ainda se encontra, mas somente dentro do condomínio. O bairro transformou-se, sobretudo, em um local de passagem.

Para encontrar a pensionista Déa Magali, é preciso andar a pé, passear pelos conjuntos da rua Alferes Raimundo, e parar para observar, porque logo ela abre a porta para ver o que está acontecendo. É uma das moradoras mais antigas do local. Está ali há meio século e não hesita em dar sua opinião sobre o tombamento das casas, inclusive a dela. “Foi uma porcaria”. 

O pesquisador da Unicamp Rafael Roxo dos Santos é outro morador do bairro. Mora em uma casa alugada que foi construída há cem anos. E, durante os passeios a pé pela Vila Industrial, começou a observar e tentar entender porque o tombamento “não funciona”, pelo menos na opinião da dona Déa.

“O tombamento não garante uma intervenção direta sobre o bem porque o próprio poder público alega que não tem recursos. Assim, o tombamento entra em conflito com os interesses do proprietário, que está preocupado com a renda do imóvel”. Rafael é geógrafo e autor da dissertação de mestrado “A Vila Industrial e o patrimônio histórico arquitetônico de Campinas-SP: entre a conservação e a reestruturação urbana”. Seu trabalho conclui que, em vez de proteger o bem, às vezes o tombamento acaba contribuindo para a sua degradação.

Quando o bem é tombado, explica o pesquisador, o imóvel deve ser preservado de acordo com novos parâmetros, o que torna a manutenção cara. Outra questão é o desconhecimento do proprietário em relação à lei de tombamento. Muitos perdem certos benefícios como, por exemplo, isenção do IPTU ou transferência de potencial construtivo, que seriam formas de amenizar os custos pela preservação do bem. 

“A pergunta que norteia o estudo é porque, apesar de tantos bens tombados, não se consegue a conservação”, questiona Rafael. Há conflitos de interesses em relação ao bem e transferência de responsabilidades. “Com a medida de proteção, os proprietários abandonam o imóvel porque acreditam que quem tem que preservar e fazer a manutenção é o poder público. Se há inquilinos, acabam se tornando inadimplentes. O poder público, por sua vez, não arca com o ônus e, por meio do conselho do patrimônio público, aplica multas ao proprietário. Ele não paga e nada acontece, o imóvel fica inviável. No fundo está a questão da propriedade, que ainda é maior que o tombamento e a memória”.

 

Febre amarela

Pensando na formação do bairro, Rafael chegou à história da formação da cidade. A Vila Industrial começa a se delinear com os nomes “Campo de Sant’Anna” e “Immigração” no final do século 19, a partir de uma visão da elite, corrente à época, de que as coisas consideradas insalubres, como o matadouro municipal, os cemitérios, os lazaretos ou hospitais, tinham que ficar afastadas da cidade. As epidemias de febre amarela chancelaram este modo de pensar. Os curtumes vieram depois. 

“A ferrovia chega em 1872, quando já havia dois cemitérios. Posteriormente é montado o lazareto dos morféticos e dos variolosos. Os curtumes mesmo chegam apenas no início do século 20”. Rafael salienta que a ferrovia e a própria estação foram, por muito tempo, empecilhos para o morador do bairro se locomover até o centro da cidade. Isso garantiu um relativo isolamento do bairro, que resultou em certa autonomia, pelo menos até os anos 1980, quando o transporte ferroviário entra em decadência e foi construído, junto ao córrego, o túnel de acesso ao centro. A preservação da unidade arquitetônica se deu de maneira fortuita.

Mas os tombamentos, não. Muitos anos depois a “epidemia” voltou. Desta vez, Febre Amarela foi o nome de um grupo preservacionista de Campinas, liderado por Antônio da Costa Santos, prefeito assassinado em 2001. O grupo realizou uma série de estudos para proteção do patrimônio e denúncias contra intervenções realizadas, sem a autorização do órgão Estadual Condephaat - Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico, que geraram mobilizações da sociedade civil.

Em 1985, o Febre Amarela enviou ao Condephaat um estudo de tombamento para o complexo ferroviário e outros diversos bens culturais da cidade, mas sem resposta, informa o pesquisador. “Pela lei de tombamento é assegurada uma área envoltória de proteção para preservar a visibilidade do bem, portanto uma série de outros imóveis entra no processo também”. Antes, apenas havia sido protegido o prédio da estação. A partir da criação do Condepacc, em 1987, e após as mobilizações, foram decretados diversos tombamentos na cidade. O curtume Cantusio foi o último a ser tombado, em 2012. 

Os tombamentos de bens ligados à história dos trabalhadores é uma tendência mundial, segundo Rafael. Ele afirma que, ao patrimônio mundial, vão sendo incorporados imóveis ligados à prática cotidiana, como as vilas operárias e o patrimônio industrial. Ao mesmo tempo, há mudanças do padrão dos bairros, que deixam de ter as características do tempo passado. “É uma ideia que está relacionada à questão da reestruturação econômica. O bairro que vai deixar de ser bairro e se tornar um local de passagem. Os moradores novos não vão ter muita relação com o local porque eles moram nos condomínios, vão trabalhar, voltam e dormem”.

Rafael percebeu com o estudo que quem faz a manutenção desses bens tombados, contraditoriamente, é o próprio morador pobre, que ocupa, e não tem recurso nenhum. “A casa ainda está de pé porque ele ainda está lá dentro”. Tanto é verdade que os membros do conselho do patrimônio consideram imóveis relativamente conservados, como apurou Rafael, aqueles que se mantiveram em uso. A partir do esvaziamento, a deterioração avança muito rápido. Outra questão colocada no trabalho ligada à preservação é o problema de moradia. “Não se consegue a preservação porque por detrás disso está a ausência de uma política pública intersetorial que vincule preservação, habitação popular, e incentivos culturais para que o bairro se renove em termos econômicos e consiga ter uma dinâmica que dê conta de sustentar essas formas”.

A pesquisa conclui que o tombamento vem como algo emergencial, um recurso utilizado quando o bem está em processo de ruir, para impedir que o proprietário desfigure ou queira demolir o imóvel. “Nenhum incentivo maior é dado e o proprietário é penalizado duplamente porque a manutenção é mais cara e os incentivos são baixos. A própria situação de conflito social na cidade afasta o controle do proprietário, que é demasiadamente penalizado”.

 

 

Publicação

Dissertação: “A Vila Industrial e o patrimônio histórico arquitetônico de Campinas - SP: entre a conservação e a reestruturação urbana”
Autor: Rafael Roxo dos Santos
Orientadora: Maria Tereza Duarte Paes
Unidade: Instituto de Geociências (IG)

Comentários

Comentário: 

Muito bons os argumentos tratados na Dissertação e contribuem imensamente para refletirmos sobre as contraditórias e perversas lógicas que permeiam a produção do espaço nas/das cidades na contemporaneidade.

eupatimj@usp.br

Comentário: 

Parabéns pelo trabalho de resgate da história e da geografia do bairro. Trabalhos como este ajudam na luta pela preservação do patrimônio. São um alerta . Se não tomarmos medidas que de fato surtam efeitos positivos, logo perderemos mais um pedaço de nossa história.

everaldo@unicamp.br