Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 25 de agosto de 2014 a 31 de agosto de 2014 – ANO 2014 – Nº 603Tem samba no prato
Pode um instrumento como a bateria dizer tanto sobre o Brasil? Ainda mais tendo sido importada dos Estados Unidos? Sim, pode, diria Leandro Barsalini, autor da tese de doutorado “Modos de execução da bateria no samba”. As maneiras pelas quais a bateria foi inserida na história da música popular brasileira e como se consolidou uma forma de tocar samba que se tornou hegemônica entre os instrumentistas, traduzem, para o pesquisador, os conflitos entre tradição e modernidade que permeiam a cultura nacional.
Basta olhar para a configuração da música popular urbana nos países latino-americanos e compará-la com o Brasil para perceber as diferenças em relação ao uso da bateria. Para Argentina, Bolívia e Paraguai, afirma o pesquisador, a bateria praticamente inexistiu nesse processo. Prevaleceram os instrumentos típicos e a música mais característica de cada país ficou conhecida sob o guarda-chuva do folclórico ou exótico, na pior das hipóteses. A exceção é Cuba. “Notamos a presença da bateria, mas apenas a partir da década de 1950, quando a música cubana ganhou espaço em Nova York”.
Leandro considera que, com o samba, foi outra história. A música brasileira abraçou a bateria e a incorporou ao samba transpondo, nas baquetas, pratos e tambores, as maneiras de tocar e a sonoridade das cuícas, reco-recos, surdos e pandeiros. A percussão dos instrumentos típicos, que se configurava na época em que a bateria apareceu por essas bandas, foi adequada e, de certa maneira, substituída nas gravações da primeira metade do século passado.
Abriram-se portas para a música dos “brasileños”. Imagens emblemáticas, ressalta Leandro, são as fotos do grupo de Pixinguinha “Oito batutas” antes, e um ano depois de uma viagem que fizeram a Paris em 1922. “Se antes os músicos estão vestidos e organizados com seus instrumentos típicos de maneira bastante formal, um ano depois Pixinguinha não está mais com a flauta, mas com um saxofone e, da mesma forma, os outros músicos aparecem com a bateria em vez do pandeiro, o banjo no lugar do violão e assim por diante”. A postura dos instrumentistas nas imagens já estava muito mais conectada com as jazz bands. Um grupo moderno precisava ter uma bateria.
A assimilação da bateria pelos sambistas se deu em um contexto social que exigia, do Brasil, desenvolvimento e modernização, perto dos anos 1920. “Havia, na cidade do Rio de Janeiro, vários projetos de reurbanização e nessa época também foram importados valores culturais”. O samba começava a se popularizar quando a bateria, instrumento desenvolvido em New Orleans e criado com e para o jazz, chegou ao nosso país, no final dos anos 1920. O baterista Luciano Perrone, quando tocava na orquestra Pan American, dividia o palco com mais oito percussionistas, como contou em depoimento resgatado na tese. “Já no início dos anos 1930, na Rádio Nacional, Perrone passou a tocar samba sozinho na bateria”.
Já existia o instrumental típico do samba, mas repertórios como o de Ary Barroso, por exemplo, foram, em grande parte, orquestrados e gravados no mesmo formato, utilizando a bateria para fazer o trabalho de toda a percussão. “Qual é o sentido dessa substituição?”, Leandro questiona. E supõe que os instrumentos trazidos do morro, feitos de forma artesanal, “exóticos”, trariam uma carga simbólica talvez oposta à aspiração de se construir algo voltado para a modernidade e para o futuro. “Adotar somente esses instrumentos colocando-os na linha de frente da música que vinha se configurando como típica é quase como dizer: ‘isso é rudimentar demais, essa foi uma das diferenças do Brasil’ ”.
Mas, se a presença da bateria no samba também contribuiu para a fixação de uma estética musical que, no início dos anos 1960, teve forte impacto na indústria cultural internacional, a exemplo da bossa nova, paradoxalmente foi apenas quando os instrumentistas brasileiros voltaram ao instrumental típico que ganharam mais espaço e reconhecimento fora do país, anos mais tarde. “Miles Davis não chamou Airto Moreira para tocar bateria mas cuíca, caxixi, etc...”, exemplifica Leandro. Todo este panorama e as relações entre a bateria e a cultura brasileira são praticamente desconhecidos de boa parte dos estudantes de música do país.
O samba conduzido
Uma baqueta num prato de condução e a outra na caixa, apoiada em seu aro. O corpo já se coloca na posição padrão. Enquanto o aluno atende ao pedido do professor, Leandro, que também é docente do curso de graduação em música da Unicamp, pensa o quanto a bossa nova consolidou esta abordagem, a partir dos anos 1960. O baterista Edison Machado, estudado no mestrado de Leandro, foi um dos precursores deste modo de execução que é o do samba de prato.
Este é o outro lado da pesquisa: uma abordagem metodológica prática, que traz exemplos da diversidade de propostas de execução de um samba utilizando a bateria. Como a tese foi desenvolvida no programa de práticas interpretativas, Leandro não só apresentou dois recitais como abriu a defesa exemplificando, por meio da performance no instrumento, os quatro modos, ou matrizes estilísticas, que ele descreve no trabalho. Na tese física, ele incorporou CDs com quase 50 exemplos com transcrições.
A matriz do samba conduzido é a terceira descrita no trabalho. Neste modo ouve-se bastante o prato, seja de condução ou os do chimbau, tocado com baqueta ininterruptamente. “Nessa matriz, os toques no prato assumem o papel da condução rítmica, a exemplo das platinelas de um pandeiro”. Na abordagem mais presente, ou hegemônica, o instrumentista Wilson das Neves é um grande representante.
O pesquisador sempre faz a relação entre como o samba é executado na bateria e o instrumento típico ao qual está mais ligado. Como na matriz do samba batucado, a primeira delas: “predomina a sonoridade dos tambores e muito também do recurso de construção do ritmo centrado na caixa, geralmente sem esteira, soando um tambor grave”. A relação aqui é com a maneira de tocar pandeiro ou tamborim. E dá-lhe Luciano Perrone.
Na matriz do samba escovado, o pesquisador descreve como são utilizadas as escovinhas friccionadas na caixa. O desenho dos movimentos é semelhante ao modo como se toca um afoxé, reco-reco, ou ganzá. “Procurava-se imitar o vaivém dos instrumentos e isso gerou uma série de desenhos muito característicos para o samba que se diferenciam do jazz, por exemplo, que se baseia muito mais em movimentos circulares. Aqui são movimentos mais lineares”, ressalta. Hélcio Milito, do Tamba Trio, pode ser ouvido como um dos maiores.
No samba fraseado, que constitui a quarta matriz, um nome hoje é Tutty Moreno. “Temos a utilização dos pratos, mas, nesta abordagem “mais moderna” que nasceu na década de 1950 e se desenvolveu nos anos 1960, as funções dos quatro membros do corpo não são pré-determinadas mas dialogam o tempo todo na construção do ritmo, a partir do prato de condução”. A imagem que o pesquisador tem deste modo de execução é de “uma abordagem tão líquida que quase evapora”. Ainda é samba, mas torna-se bem mais difícil fazer aquela relação direta com o instrumental típico ou com as funções constitutivas do ritmo.
Não se trata de criar uma hierarquia ou juízo de valor. “Em todos os modos descobri sutilezas de execuções muito sofisticadas, portanto, não é o caso de dizer se uma matriz é melhor que outra. E também não existe uma linha evolutiva, elas coexistem, muito embora uma seja mais predominante que a outra dependendo da época”, ressalva Leandro.
O valor simbólico da escuta atenta de uma Aquarela do Brasil, por exemplo, pode desvendar as relações entre as propostas de modernização do país e como foi se construindo a própria cultura brasileira, vai concluindo o autor da pesquisa. A música é também elemento detonador de outro processo, resultado da tensão entre local e estrangeiro, tradição e modernidade, manufatura e industrial. “Olhamos para a bateria, como ela transitou e o que representou nesse panorama”.
Publicação
Tese: “Modos de execução da bateria no samba”
Autor: Leandro Barsalini
Orientador: Fernando Augusto de Almeida Hashimoto
Coorientador: Jose Roberto Zan
Unidade: Instituto de Artes (IA)