Edição nº 611

Nesta Edição

1
2
3
4
5
6
8
9
10
11
12

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 17 de outubro de 2014 a 02 de novembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 611

Eça de Queiroz
Embates e afinidades do outro lado do Atlântico

Biografia tida como definitiva mostra como foram as relações do escritor português com o Brasil

Eça de Queiroz, um dos maiores escritores da língua portuguesa, sequer visitou o Brasil ao longo de seus 54 anos de vida. No entanto, a ex-colônia portuguesa marca, de muitas maneiras, sua vida e obra.

Seu pai, José Maria d’Almeida Teixeira de Queiroz, nasceu no Rio de Janeiro, em 1820, quando a família se refugiava no Brasil, na época da Revolução Liberal portuguesa.

Quando jovem, na época em que era delegado do procurador régio da vila de Ponte de Lima, no norte de Portugal, envolveu-se num episódio romântico com a jovem Carolina Augusta Pereira d’Eça.

Do relacionamento, nasceu, em 1845, José Maria, que viria a se tornar o maior nome do Realismo português.

Para não comprometer o bom nome dos Pereira d’Eça, a jovem Carolina - que não era casada com o delegado -, deu o filho à luz na vila de Póvoa do Varzim, onde vivia sua irmã mais velha, para fugir dos olhares indiscretos.

Depois do parto, a mãe regressa à casa da família, entregando o bebê aos cuidados de Ana Joaquina Leal de Barros, uma costureira que se tornou sua madrinha e ama. Ana Joaquina era natural de Pernambuco. 

Aqui começam as relações de Eça de Queiroz com o Brasil, afirma o arquiteto e historiador Alfredo Campos Matos, autor de Eça de Queiroz: Uma Biografia, lançada pela Editora da Unicamp e Ateliê Editorial. 

Apontada como a biografia definitiva do escritor português, a obra foi construída com base numa minuciosa pesquisa documental e iconográfica, combinando o relato da trajetória de vida de Eça de Queiroz com reflexões críticas que permitem aos leitores enxergar o maior nome do Realismo português como um homem do seu tempo, além de aprofundar a compreensão de sua obra literária.

A edição brasileira é mais completa do que as duas anteriores, publicadas na França e em Portugal. “Aproveitei a ocasião [do lançamento no livro no Brasil] para atualizar a obra, pois os estudos queirozianos são inesgotáveis. Continuamente surgem cartas inéditas com novas informações”.

Desse modo, Campos Matos incorporou à narrativa estudos, críticas e comentários extraídos de uma extensa bibliografia reunida por ele ao longo de mais de 50 anos, desde que tomou contato com a obra de Eça de Queiroz na adolescência. 

Todo esse material está organizado em seções ao longo da biografia, que enfocam temas e questões específicas e tão diversas quanto o percurso ideológico do autor, seu interesse pela fotografia até a presença dos perfumes e da música na obra. 

Campos Matos acredita, assim, estar cumprindo o papel essencial de uma biografia: estabelecer as relações entre a vida e a obra do autor. “Via de regra, os biógrafos evitam a apreciação das obras, mas, a meu ver, tais obras são parciais e omitem o que há de mais essencial numa biografia literária, a osmose entre o homem e a obra”.

 

Prado, Bilac e Machado

Em meio às histórias de vida, resenhas de obras, críticas, polêmicas e comentários, delineiam-se, na biografia, as relações de Eça de Queiroz com o Brasil.

Eça de Queiroz teve vários amigos brasileiros, especialmente no período final da vida, em Paris, cidade em que morou com a mulher e os filhos, ocupando um posto consular, e onde morreu no ano de 1900.

Faziam parte de seu círculo de amigos o intelectual Eduardo Prado, bastante influente na época, e o poeta Olavo Bilac. Antes disso, na fase em que viveu em Londres, foi próximo do escritor e diplomata Domício da Gama.

No campo literário, os primeiros contatos com o Brasil ocorreram no periódico As Farpas, publicado em parceria por Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão. Em 1872, Eça escreveu um texto ridicularizando o imperador Dom Pedro II, que havia visitado Portugal. Outro episódio foi a crônica O Brasileiro, que caracteriza o habitante do país como uma figura risível.

“Inicialmente, Eça via o Brasil com o preconceito dos europeus, de um modo depreciativo. Mais tarde, corrigiu essa visão, em parte graças ao convívio com o seu íntimo amigo de Paris, o brasileiro Eduardo Prado, homem de grande cultura”, relata Campos Matos.

Além disso, o personagem principal de O Primo Basílio é um jovem bon vivant que retorna a Portugal após fazer fortuna no Brasil e acaba seduzindo a romântica Luísa, esposa de um pacato e metódico engenheiro. O enredo é o mote para uma crítica aos costumes e modo de vida da burguesia portuguesa.  

O livro, o segundo da carreira de Eça de Queiroz, publicado em 1878, foi um sucesso de público, com a tiragem inicial de 3 mil exemplares rapidamente esgotada. A obra fez grande sucesso no Brasil. Mas, antes mesmo de o volume se tornar acessível no país, foi precedido pela sua fama de obscenidade. 

Nesse contexto de alarde e expectativa, Machado de Assis publicou na revista Cruzeiro, sob o pseudônimo de Eleazar, uma crítica aguda às duas obras que marcam o início da carreira literária de Eça de Queiroz, O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio

As críticas de Machado de Assis detêm-se sobre o estilo do escritor português, às personagens classificadas como inconsistentes e sem organicidade e, sobretudo, à suposta imoralidade de O Primo Basílio.

Como descreve Campos Matos, o mais grave, na opinião do escritor brasileiro, era a “medula da composição”: “o espetáculo dos ardores, exigências e perversões físicas”, ou seja, as “cenas repugnantes do Paraíso” – a casa onde os amantes Luísa e Basílio se encontravam.

Essa crítica, de tom moralista e avessa à escola Realista, teria passado ao largo daquilo que, aponta o biógrafo, particulariza a arte de Eça de Queiroz entre seus contemporâneos: a construção de personagens e enredos que traduzem a sociedade portuguesa (e, em certa medida, europeia) do século 19.

Nesse sentido, Luísa, a personagem que Machado de Assis considera destituída de personalidade, retrata uma criatura banal, fraca de vontade e típica da burguesia de Lisboa.

“O que distingue Eça de Queiroz de seus confrades é o fulgor do seu estilo tão original, a sua simplicidade, a ironia que o caracteriza e que faz a sua atualidade espantosa”, reitera o biógrafo Campos Matos. Assim, enquanto um autor como Machado de Assis tende a construir suas narrativas a partir da vida interior de suas personagens, Eça de Queiroz o faz partir da sociedade que pretender criticar e ironizar. 

Divergências à parte, a polêmica teria rendido frutos para ambos. “A partir desse embate tiveram que refletir acerca do rumo literário que iriam percorrer”, assinala o biógrafo. Segundo ele, O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio desabaram sobre Machado como um “cataclismo”. 

“A sua crítica ao Naturalismo, embora predominantemente moral, por outro lado, acabou por fazer com que Eça refletisse e passasse para uma literatura mais despreconceituosa e mais conforme ao seu gênio fantasista”. Machado, por seu turno, pôde sair do seu “casulo romântico, desabrochando numa grande literatura”.

A repercussão da disputa no Brasil, contudo, pendeu favoravelmente para o lado do escritor de Portugal. “Todos os jornalistas do Rio de Janeiro tomaram sua defesa”, afirma Campos Matos.

Vários são os motivos que ajudam a compreender este movimento, assim como a extrema popularidade que Eça de Queiroz ganhou no Brasil a partir do final do século 19 – processo detalhadamente analisado na biografia, a partir da análise de obras de autores brasileiros e portugueses que estudaram as relações de Eça de Queiroz com o país no século 20.

 

A modernidade em perspectiva

Os temas alinhados com o emergente mundo urbano e moderno, a perspectiva crítica e irônica e o estilo de Eça de Queiroz são alguns dos elementos que colaboraram para tornar o escritor português extremamente popular no Brasil – talvez até mais do que em Portugal. 

“A recepção de Eça em Portugal na sua época sofreu variações ao longo do tempo. Não nos esqueçamos que, depois de 1888, data da edição de Os Maias, Eça não voltou a publicar nenhuma obra em livro. Caiu um pouco no esquecimento, o que não aconteceu no Brasil”, conta Campos Matos.

Segundo ele, foi necessário chegar a 1945, data do centenário de seu nascimento para reacender o interesse pelo escritor, com ensaios de interpretação e novas edições da sua obra, o que a consagrou definitivamente em Portugal. 

No Brasil, em contrapartida, a paixão por Eça de Queiroz deu origem a um neologismo, criado por Monteiro Lobato: “ecite”, que designa um sentimento de fascínio e simpatia pela “escrita eciana” que abrange não só a obra como o autor, e tudo aquilo que lhe diz respeito, detalha Campos Matos.

Antes disso, em 1893, uma enquete realizada pela revista A Semana, do Rio de Janeiro, sobre os seis melhores romances de língua portuguesa dava indicações claras da popularidade do português no Brasil. A lista final inclui três obras de Eça de Queiroz: Os Maias, em primeiro lugar, seguido de O Primo Basílio. Em terceiro lugar, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e, em quarto, A Relíquia.

Estudiosos citados na biografia apontam uma diversidade de fatores para a popularidade do autor. Para José Lins do Rego, Eça de Queiroz foi um mestre das gerações do começo do século 20, pelo sentido revolucionário de seu estilo, em contraposição ao Romantismo. 

Ele colocava em xeque as normas clássicas de composição literária, dando colorido, elegância e leveza a temas e valores até então desconhecidos e considerados menores, analisa o crítico literário José Maria Belo, citado na biografia. Mais do que isso, Eça de Queiroz era irreverente, contrapondo-se a fórmulas e preconceitos estabelecidos.  

Assim, pontua o autor da biografia, se estabelecia uma relação de cumplicidade entre o autor e seu púbico e, mais do que isso, vêm à luz características que fazem de Eça de Queiroz um autor atual, na visão do biógrafo: “Para o século 21, a obra de Eça é um magnífico exemplo de independência intelectual, inteligência crítica, universalidade e humanismo”.

 


Eça indispensável

WILTON JOSÉ MARQUES
willjm@uol.com.br

 


Vez ou outra, aparecem no cenário crítico obras que se transformam, quase que de imediato, em referenciais fundantes, tal a profundidade e a seriedade com que seus autores se debruçam sobre determinados assuntos. É certo que tais livros andam escassos por aqui, sobretudo pela sanha produtivista que tem rondado a nossa academia, que, não importando o assunto tratado, mede a capacidade e o desempenho intelectual apenas pelo número elevado de artigos publicados, o que tem resultado quase sempre num despejar de muita superficialidade no mercado da crítica literária. Assim, quando se tem a sorte de se defrontar com uma obra – mesmo que venha de “fora” – fadada a se transformar em referencial teórico, tal fato é motivo de grande satisfação. Esse é o caso do livro Eça de Queiroz: Uma biografia, de A. Campos Matos, lançado recentemente no Brasil em edição conjunta da Editora da Unicamp e da Ateliê Editorial.

Sem meias palavras, pode-se dizer que o seu autor, o arquiteto e historiador A. Campos Matos (1928), um devotado e longevo estudioso da obra queiroziana, produziu uma vigorosa e abrangente biografia – acompanhada de consistente pesquisa iconográfica – em que nos apresenta aspectos interessantes (e até alguns obscuros) tanto da vida quanto da própria formação intelectual de Eça de Queiroz (1845-1900). Entre outros assuntos, Campos Matos toca em questões que, inclusive, nos ajudam a entender o projeto literário do escritor português, como, por exemplo, sua relação com Ramalho Ortigão, a influência de Flaubert ou ainda, para citar algo mais próximo, a polêmica com Machado de Assis. 

Além propriamente da biografia, é igualmente importante observar que o autor complementa o livro com mais duas partes interessantes: seja tratando de alguns temas específicos que ajudam o leitor a compreender e, ao mesmo tempo, ter dimensão precisa do lugar que Eça de Queiroz ocupa na cultura luso-brasileira, discutindo, por exemplo, seu percurso ideológico, seu trabalho como jornalista, a repercussão de suas obras no Brasil e em Portugal ou ainda sua relação não muito amistosa com Fernando Pessoa; seja através da apresentação de acurado panorama das obras publicadas por Eça, oferecendo ao leitor não apenas um breve resumo de cada uma como também um útil levantamento bibliográfico das primeiras repercussões críticas.  

Fruto de pesquisa minuciosa e persistente, o que obviamente implicou um necessário tempo de maturação intelectual, o livro Eça de Queiroz: Uma biografia, de A. Campos Matos, é, sem sombra de dúvidas, uma contribuição importante que veio para ficar, integrando-se à categoria de textos fundamentais da bibliografia queiroziana. Por fim, convém destacar que sua leitura não deve se restringir apenas aos estudiosos da obra de Eça de Queiroz, a quem, aliás, é obrigatória, mas, sobretudo pela elegância e fluência da escrita, a todo e qualquer leitor interessado em literatura. Numa palavra: indispensável.


Wilton José Marques é professor de Teoria Literária e Literatura Brasileira da UFSCar.

 

 

SERVIÇO

Título: Eça de Queiroz: Uma biografia
Autor: A. Campos Matos
Páginas: 600
Edição: Editora da Unicamp e Ateliê Editorial
Preço: R$ 110,00