Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 10 de novembro de 2014 a 16 de novembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 613Pesquisa investiga alcance da ‘universidade empreendedora’
Dissertação analisa cinco grupos envolvidos com pesquisas aplicadas, em quatro áreasTradicionalmente focada no ensino e na pesquisa, a universidade vem sendo cada vez mais chamada a transferir conhecimento para resolver questões socioeconômicas e contribuir para o desenvolvimento do país. Vem daí a concepção de “universidade empreendedora”, em que os acadêmicos exercem papel central neste processo, ao interagir com atores externos para criar um ambiente propício a projetos colaborativos com a sociedade, sobretudo com os setores produtivos. Da mesma forma, os estudantes de pós-graduação, recém-doutores e pós-doutorandos dividem este protagonismo, enquanto executores das pesquisas.
Nathalia Dayrell Andrade é autora de dissertação de mestrado em que investiga como o empreendedorismo acadêmico influencia a formação e a escolha da carreira dos jovens pesquisadores. O trabalho intitulado “A universidade empreendedora no Brasil: uma análise das expectativas de carreira de jovens pesquisadores juniores” teve a orientação do professor André Luiz Sica de Campos e foi desenvolvido junto ao Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT), do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp.
Partindo da análise contextual com base em dados quantitativos secundários do mercado de trabalho acadêmico no Brasil, e sobretudo por meio de estudo qualitativo, Nathalia Andrade analisou cinco grupos envolvidos com pesquisas aplicadas, em quatro áreas afeitas à produção de tecnologia: física, biologia, biotecnologia e tecnologia da informação, que também são áreas de excelência da Unicamp (notas 6 e 7, as máximas da Capes) e historicamente próximas à indústria. Os grupos, que a pesquisadora mantém anônimos, são casos de sucesso em parcerias e transferência de tecnologia entre a Universidade e empresas.
A autora da dissertação realizou um total de 17 entrevistas, ouvindo os cinco coordenadores de grupos e 12 doutorandos em final de treinamento, recém-doutores e pós-doutorandos. “Fui conversar com jovens pesquisadores que estão na transição para o mercado de trabalho, a fim de saber a sua formação, o que aprenderam com as atividades que não eram estritamente acadêmicas e as perspectivas de carreira. Junto aos orientadores, eu quis entender como funcionavam os grupos, as linhas de pesquisa, convênios e patentes.”
Nathalia informa que o Brasil está formando mais de 10 mil doutores por ano (marca alcançada em 2008), registrando também uma expansão do sistema de ensino superior. E que o governo, por seu lado, vem incentivando atividades empreendedoras por parte das universidades e mais investimentos em inovação pelas empresas, induzindo um ambiente propício para projetos colaborativos, criação de empresas spin-offs e contratação de mão de obra qualificada para pesquisa. “Nos grupos estudados encontramos pesquisas colaborativas, criação de spin-offs por professores e alunos e exploração de propriedade intelectual.”
Nathalia Andrade encontrou duas empresas criadas nos grupos de tecnologia da informação, ambas no mercado. “Em uma delas, muito bem sucedida, o pesquisador diz ter aprendido muito ao desenvolver uma pesquisa mais aplicada e realizado contatos importantes; o outro dono de spin-off também construiu sua rede de contatos e agora tem melhor visão de como idealizar uma pesquisa de interesse do setor produtivo. O sucesso desses grupos de TI se deve a uma particularidade da Unicamp, onde essa área é muito forte em termos de excelência, com inúmeras empresas surgidas da pós-graduação e mesmo da graduação. Mas um professor colaborador também está se dando bem com seu grupo de biotecnologia.”
Embora seu foco tenha sido a área tecnológica, a pesquisadora observou um viés social nas pesquisas do grupo de biologia, todas voltadas para eventuais aplicações em um hospital. “Uma das perguntas do questionário é sobre motivação, que nesse grupo é fortemente social: os integrantes querem continuar trabalhando para resolver problemas da saúde, já sabendo que a pesquisa será absorvida pelo hospital. Além disso, o grupo é extremamente produtivo, com várias patentes, e demonstra excelência acadêmica com notas 6 e 7 da Capes e nível altíssimo de publicações.”
Expectativa de carreira
Nathalia constatou nas entrevistas que é majoritária a expectativa dos pesquisadores de continuar na trajetória acadêmica tradicional, como docente ou pesquisador. “Segundo os resultados, parece não haver uma grande influência das atividades empreendedoras nas expectativas de carreira dos grupos analisados e, quando há, existem obstáculos relativos a oportunidades fora da academia. Também não se percebe relatos de um ganho significativo de qualificação para os jovens pesquisadores que desenvolvem essas atividades. Apenas aqueles que abriram empresas afirmaram ter adquirido qualificações adicionais, que os ajudaram na etapa de entrada no mundo dos negócios.”
Um aspecto pontuado pela autora é a diferença de contexto entre o Brasil e os países desenvolvidos, especialmente na Inglaterra, onde esta pesquisa teve origem (ver matéria nesta página). “Esses países sofrem com a saturação do mercado de trabalho acadêmico: não existem, nem são abertas vagas para professores na mesma proporção da formação de doutores. É um pouco por necessidade, portanto, que os jovens pesquisadores seguem a via empreendedora, criando as próprias empresas e, também, espaços híbridos em que transitam entre a área acadêmica e o setor industrial.”
Nathalia observa que aqui não se vê o mesmo quadro de saturação, ainda, havendo inclusive uma expansão do ensino superior. Ao mesmo tempo, há uma troca de gerações, com muitos professores se aposentando e a abertura de inúmeros concursos para os jovens. “Entretanto, já se registra uma concorrência acirrada nas principais universidades do Sudeste (Unicamp, USP, UFMG, UFRJ), onde se começa a pensar em alternativas de carreira. A questão é que a universidade continua formando pesquisadores tradicionais para alimentar o próprio sistema.”
De acordo com a autora, sua pesquisa confirma a concentração dos doutores na academia, por preferência, mas também por representar uma fonte estável de renda e pela falta de alternativas fora dela. “As alternativas seriam a criação de empresas de base tecnológica ou mesmo a carreira mais híbrida – como exemplo cito o dono de uma empresa de TI que faz pós-doc no Instituto de Computação, com o qual mantém projeto colaborativo, passando suas demandas para o professor e vice-versa. No entanto, havendo um mercado de trabalho acadêmico em expansão fora dos grandes centros, e uma indústria com pouca demanda por pesquisa e desenvolvimento, como convencer esse pós-graduando a não seguir a carreira acadêmica?”.
‘É preciso manter o nível de excelência’
André Luiz Sica de Campos, orientador da dissertação de mestrado de Nathalia Andrade, que é professor de administração pública da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) e da pós-graduação do DPCT, vem trabalhando na relação da universidade com o setor industrial e outros usuários do conhecimento há mais de quinze anos. “Concluindo meu doutorado na Universidade de Sussex, participei do projeto ‘Papéis ocupacionais e carreiras de cientistas acadêmicos envolvidos em colaborações universidade-empresa’, da professora Alice Lam (Universidade de Londres), cujo propósito era observar a atuação de pesquisadores seniores em universidades. Minha contribuição se concentrou nos jovens cientistas e, a partir da amostragem de um estudo de caso, passamos a acompanhar a evolução da carreira deles.”
De acordo com André Campos, o grande dilema enfrentado pelos jovens pesquisadores é frente à inserção no mercado de trabalho científico, principalmente no contexto dos EUA e da Europa Ocidental, onde é muito grande a competitividade. “Muitas vezes, as atividades empreendedoras são o que chamamos de alternativa de carreira, e que exigem competências adquiridas durante o doutorado para poder transitar entre essas duas esferas. Uma observação é que a formação acadêmica menos tradicional, mas de alto rigor acadêmico, é a que prepara melhor o jovem pesquisador para carreiras alternativas.”
Nathalia Andrade conta na dissertação que a chamada universidade empreendedora tem como marco uma lei aprovada nos EUA em 1980, o Bayh-Dole Act, permitindo que as universidades fossem titulares de patentes. Com isso, passaram a entrar amplamente na agenda das universidades as atividades relacionadas à “terceira missão”: produção e comercialização de tecnologia (patentes, licenciamentos, royalties); criação de spin-offs; contratos, colaborações e consultorias para instituições não acadêmicas; colocação de estudantes e fluxo de pessoal da universidade para outras instituições; utilização de equipamentos e laboratórios por instituições não acadêmicas; e networking para o público não acadêmico.
André Campos acrescenta que este modelo implantado desde os anos 80 consiste na criação de centros de pós-graduação nos quais a indústria tenha espaço para colocar suas demandas e necessidades. “Mais especificamente no Reino Unido, já se torna majoritário um movimento para que determinadas áreas, como de ciências da vida, adotem mais centros com este desenho do que o modelo tradicional. Aqui na Unicamp, o Cepetro [Centro de Estudos de Petróleo] é um exemplo desse tipo de espaço e está sendo bastante exitoso, a partir de uma demanda clara da Petrobras.”
O professor da FCA e do IG tem dúvidas se esta seria uma tendência também no Brasil, e mesmo se seria uma tendência positiva, diante da ameaça de desmonte do espaço acadêmico tradicional. “A criação desse ambiente de pós-graduação mais próximo da aplicação ainda está em fase inicial no país, mas isso deve ser feito com muito cuidado, mantendo-se o nível de excelência conquistado ao longo de décadas de trabalho e investimentos, com a inserção internacional, as citações, o reconhecimento dos pares. Uma universidade empreendedora precisa ter todas as peças no lugar: institucionalidade, demanda industrial e excelência acadêmica. O desafio no Brasil é montar esse quebra-cabeça sem desorganizar o sistema.”
Publicações
Artigos
ANDRADE, N. D.; DE CAMPOS, A. L. S.; A formação para o empreendedorismo acadêmico e o mercado de trabalho acadêmico brasileiro, Revista Tecnologia e Sociedade, No. 20, no prelo. 2014.
ANDRADE, N. D. DE CAMPOS, A. L. S. A universidade empreendedora no Brasil: uma análise das oportunidades de carreira para recém doutores (Conferência Internacional Latin American Network for Economics of Learning, Innovation and Competence Building Systems (LALICS): “Sistemas Nacionais de Inovação e Políticas de CTI para um Desenvolvimento Inclusivo e Sustentável”, BNDES, Rio de Janeiro. 2013.
LAM, A.; DE CAMPOS, A. L. S.; ‘Content to be sad’ or ‘runaway apprentice’? The psychological contract and career agency of young scientists in the entrepreneurial university, Human Relations, no prelo.
Dissertação: “A universidade empreendedora no Brasil: uma análise das expectativas de carreira de jovens pesquisadores juniores”
Autora: Nathalia Dayrell Andrade
Orientador: André Luiz Sica de Campos
Unidade: Instituto de Geociências (IG)