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Baixar versão em PDF Campinas, 17 de novembro de 2014 a 23 de novembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 614A poesia como rito de passagem
O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), como parte de uma política para este período de aprendizagem escolar, significa uma verdadeira revolução no futuro da educação no país. A avaliação tende a consolidar o que determinam as diretrizes da lei federal, definidas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), pelo menos no que diz respeito ao campo das “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”, segundo avaliou, em tese de doutorado defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), a pesquisadora Cynthia Agra de Brito Neves.
Para entender a importância do Enem, Cynthia foi para a França, estudar o ensino médio nos lycées e a avaliação final dos estudantes franceses, a qual seria, hipoteticamente, semelhante ao exame brasileiro, o chamado Baccalauréat, apelidado de le bac ou le bachôt. A França foi escolhida porque, durante anos, foi a principal referência para os currículos brasileiros e, ainda hoje, é um país determinante nos debates das ciências humanas. As avaliações, como o bac e o Enem, porque acabam por determinar o currículo escolar do ensino médio de ambos os países. “O ensino médio brasileiro agora não direciona suas aulas apenas com o argumento ‘isso cai no vestibular’, mas também ‘isso cai no Enem’”, reflete a pesquisadora, mesmo reconhecendo que, em sua área, a proposta do Enem não é o de uma prova que privilegie o conteúdo.
Na França, Cynthia assistiu em torno de 40 horas/aula em dois lycées. Aqui no Brasil, mais 50, em duas escolas particulares e uma pública na região de Campinas. “Minha pesquisa é aquela que chamamos qualitativa, subjetivista, e conta com a transcrição de todas as aulas a que assisti em diários de classe. Contrastei os dois ensinos, recolhi material didático, observei as dinâmicas de salas de aula, sempre focando para como circulam os gêneros poéticos em classe, como o professor trabalha com isso e como os alunos recepcionam as poesias”.
A preocupação da autora da tese com os gêneros poéticos tem muitas razões de ser. Na introdução do trabalho ela já defende o resgate do ensino de poesias em sala de aula. “Afinal, ‘(...) a palavra poética funda os povos. Sem épica não há sociedade possível, porque não existe sociedade sem heróis em que reconhecer-se’”, salienta, utilizando as palavras do escritor Octávio Paz.
Cynthia concorda com os estudiosos que fazem críticas ao ensino da língua preocupado apenas com os usos funcionais, “numa perspectiva comunicativista ou utilitarista da linguagem que, centrada nas temáticas do cotidiano, valem-se de recursos e textos tirados da mídia (jornais e revistas), ou de outros discursos não literários, como se fossem os únicos importantes na formação linguística e educacional”, escreve.
De modo geral, a pesquisadora afirma ter constatado mais semelhanças que diferenças entre o ensino-aprendizagem dos gêneros poéticos em sala de aula no Brasil e na França. “Tanto lá quanto cá, há uma supervalorização do aspecto formal do poema. Pede-se, em primeiro lugar, para o aluno reconhecer se aquele poema é um soneto, em seguida, identificar a rima e a métrica. Além disso, há uma insistente busca pelas figuras de linguagem, então o aluno se vê obrigado a descobrir a metáfora, a achar a antítese, ou seja, pratica-se uma leitura ‘eferente’ em vez de uma leitura ‘estética’ - eis o ‘pecado’ de alguns professores”, critica.
Os alunos, por sua vez, tentam fugir desse formalismo “burlando” as aulas com perguntas inusitadas. Cynthia conta que na França os estudantes perguntavam, por exemplo, se Charles Baudelaire era homossexual, se usava drogas; no Brasil, se Fernando Pessoa era esquizofrênico, se era bipolar, e dessa forma, “atrapalhavam” o professor, sempre preocupado em concluir a programação da aula.
Uma das diferenças notadas entre os dois países foi a leitura de poesias em voz alta realizada na França. “Os alunos são chamados a ler o poema declamando-o com atenção, enquanto no Brasil, nas escolas em que estive, os estudantes não têm ‘vez nem voz’, a não ser quando sacam do bolso um rap e o declamam inesperadamente, como testemunhei em uma escola da rede pública de ensino”. De acordo com a autora, isso se deve ao fato de que, na França, os alunos do lycée têm o Baccalauréat oral, e nesse exame a leitura de poesias em voz alta é cobrada, o que não ocorre no Brasil. Mais uma vez, as avaliações definem os currículos e não o contrário”, reflete.
Contraste
O contraste entre a educação francesa e a brasileira parte de uma curiosidade histórica. A pedagogia do país europeu influencia a pedagogia brasileira pelo menos desde o século 19. O Brasil praticamente importava o programa do ensino secundário francês e até os livros que eram usados na França eram lidos aqui, especialmente no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, cujo currículo era referência nacional. O ensino da língua francesa se manteve nos currículos brasileiros, com 15 horas de aula semanais, até 1971.
Foi pensando se essa influência perdurava ainda hoje, que a autora elaborou sua hipótese de pesquisa. O Enem teria alguma relação com o bac? O exame francês existe desde 1880. Em 2011, quando Cynthia esteve na França, 71,6% dos alunos tinham conquistado o diploma do bac. No Brasil, salienta a autora, embora o exame seja muito mais recente, hoje mais de 60 universidades federais utilizam só a nota do Enem para o ingresso do aluno e mesmo outras instituições estaduais, como em São Paulo, têm utilizado o exame como parte da nota do vestibular. Além disso, o exame é também utilizado para o acesso a programas oferecidos pelo governo federal, tais como o Programa Universidade para Todos (ProUni), o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o programa Ciência sem Fronteiras.
“O Enem é um exame que trabalha a literatura de uma maneira interessante, sem a preocupação de cobrar datas e movimentos literários, sem insistir que os alunos decorem características de autores e obras, ou seja, não tem aquela preocupação enciclopédica que marcou o nosso ensino das décadas de 1970 a 1990. O Enem propõe questões de interpretação de texto, de intertextualidade, contemplando as poesias e a experiência literária do aluno”.
A autora ressalta que o exame avalia competências e habilidades de leitura e que o “letramento literário” é crucial para que o aluno leia e saiba interpretar o mundo: “a capacidade de se apropriar efetivamente da literatura, da poesia, por meio da experiência estética e da fruição. Quanto mais o aluno-leitor se apropriar do texto e a ele se entregar, mais rica será sua experiência estética, e mais letrado, crítico, autônomo e humanizado ele será”, defende a pesquisadora, fazendo referência a “O direito à literatura”, de Antonio Candido.
O Enem segue a orientação dos Parâmetros Curriculares Nacionais que, como determina a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB n° 9.394/96), substituiu “Comunicação e Expressão” por ensino de “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”. Da mesma forma, não se fala mais em “redação”, mas em “produção textual” baseada em gêneros. Os multiletramentos e as novas tecnologias também são ressaltados nos PCNs.
“Lendo os currículos oficiais encontramos vários pontos que discutem o ensino de língua materna dialogando, por exemplo, com Bernard Schneuwly e Joaquim Dolz, dois professores da universidade de Genebra que propõem trabalhar com gêneros em sala de aula. Estamos dialogando com a Europa o tempo inteiro e isso tem chegado às escolas por meio de livros didáticos recomendados e distribuídos pelo MEC”, diz.
Cynthia também é corretora do Enem e afirma que a concepção de linguagem norteadora do trabalho é a que não admite qualificar um aluno pela quantidade de seus erros ortográficos, “que ele seja penalizado por cada acento que esquece”. Mesmo os vestibulares, acrescenta, muitos não são mais quantitativos. “Sei que esse é um aspecto muito criticado de nosso trabalho, sem razão. Claro que ainda há muito o que melhorar mas creio que o Enem está na travessia certa”, conclui.
Publicação
Tese: “A literatura no ensino médio: os gêneros poéticos em travessia no Brasil e na França”
Autora: Cynthia Agra de Brito Neves
Orientadora: Maria Viviane do Amaral Veras
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)