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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 17 de novembro de 2014 a 23 de novembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 614‘Una historia de amor’ na tela e no palco
A partir de uma detalhada e inédita compilação de dados sobre o cinema e o tango da Argentina - das suas origens à atualidade -, a pesquisadora da Unicamp Natacha Muriel López Gallucci identificou muito mais que uma história comum entre estas duas expressões artísticas e culturais. Ao longo de toda a história, o tango dançado e o cinema rodado na Argentina mantiveram, de fato, “um romance intenso e cheio de tensões”, revela a estudiosa que acaba de defender tese de doutorado sobre o tema.
Com as performances do tango no cinema, afirma Natacha Gallucci, o povo argentino começa a se ver na grande tela e, quando isso acontece, ele observa, gosta, critica e se aprimora. Ela sustenta que as imagens cinematográficas produzidas pelo cinema argentino, desde o período mudo até a atualidade, contribuíram e influenciaram a codificação gestual do tango dançado. Além disso, acrescenta, a transmissão oral dos conhecimentos sobre o tango desenvolveu uma filosofia do corpo no país.
Filósofa natural de Rosário, município da província de Santa Fé, na Argentina, Natacha Gallucci acaba de defender tese de doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Na pesquisa, ela promove uma discussão estética a partir da relação entre o cinema argentino e as performances do tango.
“Já no início do século 20, o cinema e a dança do tango começam a se entrelaçar e a se difundirem, utilizando um as ferramentas do outro, e gerando uma linguagem imagética própria. Nesta época, por exemplo, muitos diretores de cinema eram também poetas, músicos, pintores ou cenógrafos teatrais. A maioria, imigrantes, pertencia à boemia deste ritmo nascente que era o tango. Por consequência, não é estranho que a linguagem do tango tenha sido capturada como uma das principais linguagens do cinema argentino e se tornasse um ‘modelo de representação’. Na pesquisa, constatei as hipóteses que afirmam existir uma espécie de conúbio, de casamento entre estes dois dispositivos”, reconhece a pesquisadora.
O estudo foi orientado pelo professor Francisco Elinaldo Teixeira, que atua no Departamento de Cinema (Decine) do IA. Este é o segundo doutorado da pesquisadora, que já defendeu tese em 2008 na área de estética e filosofia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
Natacha Gallucci é coreógrafa e intérprete com formação em danças clássicas e folclóricas pela Escuela Nacional de Danzas Nigelia Soria, da Argentina. Ela dirige uma companhia de tango no distrito de Barão Geraldo, em Campinas, e coordena o Grupo de Trabalho (GT) Tango & Cultura do Rio de La Plata desde 2004. O GT oferece um espaço de pesquisa teórica e prática como parte dos projetos de extensão no Espaço Cultural Casa do Lago da Unicamp.
O espetáculo Tango, uma filosofia do abraço – resultado da sua pesquisa doutoral - foi contemplado pelo Projeto Performance 2014 do Centro de Integração, Documentação e Divulgação Cultural (Ciddic) da Unicamp. A apresentação acontece nos dias 26 e 27 de novembro, respectivamente, nos espaços culturais Maria Monteiro e Casa do Lago. Sob a direção artística e coreográfica de Natacha Gallucci, o espetáculo apresenta diversos fragmentos fílmicos e performances em tango dança e canto. Haverá a participação do Quinteto de Cordas da Orquestra Sinfônica da Unicamp. Os arranjos e a direção musical são do pianista argentino Joel Tortul.
A coreógrafa explica que durante a pesquisa constatou a necessidade de historiar a fundo o sentido filosófico da transmissão oral do tango. Deste modo, de acordo com ela, foi possível interpretar “esse furor atual que gera uma quantidade imensa de documentários de tango, mesmo com pouco dinheiro e uma recessão econômica na Argentina.”
“O tango, já antes do século 20, era uma manifestação ritualizada, transmitida popularmente no Rio de La Plata. Nas primeiras décadas do século é adotado pelo teatro portenho e pelo cinema, que o difundiu de maneira massiva. Apesar das resistências sociais à sua forma corporal de criação inédita até então, o tango se dissemina, inscrevendo na história mundial da dança um dispositivo corporal vinculado ao seu abraço fechado, íntimo e à sua interpretação intempestiva da música que domina a dinâmica da dança”, afirma.
Para a estudiosa da Unicamp houve um “segundo nascimento do tango”, no início do século 20, na Argentina, a partir da chegada do cinematógrafo, aparelho e técnica considerada precursora do cinema. A filósofa lembra ainda como contribuição para este “nascimento” o registro do tango no circo.
Ela cita o exemplo do curta-metragem Tango argentino, dirigido por Eugenio Py e produzido pela Casa Lepage & Cia, cuja exibição em 1906 gerou ampla repercussão na Argentina, Europa e Estados Unidos. Esse “acontecimento”, conforme a pesquisadora, operou como um ritual de passagem que mostrou uma técnica corporal nascente, fazendo confluir pela primeira vez o tango e o cinema.
Resistência e tensões
A expressão corporal do tango gerou resistências sociais na Argentina, sobretudo a partir da revolução industrial europeia. Com a consolidação de uma nova classe, a burguesia industrial, o tango tornou-se uma forma de resistência ao trabalho em série por meio do conceito de improvisação. A estudiosa esclarece que esta nova classe preconizava a valsa europeia como uma máquina perfeita, produto da engrenagem dos corpos feminino e masculino trabalhando em sincronia.
“O processo de criação em tango está associado a uma forma de conhecimento subjetivo. A sua busca performática se insere em um contexto cultural ritualizado. A famosa cadência acessada pelos dançarinos de tango é produto da tensão intrínseca a sua prática em cujo núcleo filosófico se encontra a afirmação da diferença, a concatenação dos corpos como fontes pulsionais do sujeito criativo na crítica ao ideal de unidade e mecanicidade”, argumenta.
A consolidação do tango dança remete ao contexto cultural rio-platense no processo que vai da independência da colônia espanhola (1810-1818), passando pelo conflito da Guerra do Paraguai (1864-1870), até as primeiras ondas migratórias. A técnica corporal do tango, segundo Natacha Gallucci, é produto do rearranjo de modos de expressão corporal existentes no folclore local que pouco a pouco se recriam a partir da leitura gestual e da apropriação da grande imigração europeia. Paulatinamente, estes imigrantes “definem” o tango como a maneira própria de dançar da classe nascente argentina.
“O surgimento do tango como dança acontece em um momento de reestruturação social na Argentina. A dança conhecida hoje como tango teve sua formação associada, em grande medida, ao abraço praticado nos bailes dos quartéis, onde as mulheres acompanhavam os batalhões de mestiços e pardos enviados a lutar nas fronteiras. Terminada a Guerra da Tríplice Aliança, essas práticas se deslocam para os espaços de convívio próximos dos quartéis reinstalados em Buenos Aires”, contextualiza.
Filmes selecionados
A coreógrafa e intérprete analisa, no estudo, a relação entre as imagens fílmicas e o registro do corpo no tango dançado em 30 filmes argentinos selecionados. Desta produção cinematográfica foram extraídos 200 fotogramas para uma investigação minuciosa que permitiu identificar os principais repertórios coreográficos do tango registrados pelo cinema.
A estudiosa ressalta que os fotogramas servem como apoio visual para o leitor que não sabe dançar nem conhece o cinema argentino. “Em paralelo aos fotogramas extraídos, realizamos um estudo fotográfico que sintetizou aspectos chaves da codificação das células coreográficas do tango dança aportados pelo cinema na construção de sua linguagem cênica. Foram considerados o enquadramento do casal, a divisão estrutural do corpo e o processo de criação em tango para cinema. O estudo fotográfico serve como um guia de leitura dos processos de criação corporais do tango no cinema argentino extensível à formação pedagógica de novos performers.”
Os 200 fotogramas extraídos foram analisados considerando as referências de cinco métodos pedagógicos que refletem sobre o aspecto social da dança, a construção cênica por meio da improvisação e os valores filosóficos do corpo na transmissão da dança. Os métodos são de autoria dos dançarinos e coreógrafos Sebastián Arce e Mariana Montes; Victoria Colosio; Juan Carlos Copes; Rodolfo e Glória Dinzel; e Nicanor Lima.
Entre os filmes analisados, a filósofa destaca que alguns foram restaurados recentemente pela Funarte (Fundação Nação das Artes), no Brasil, e pelo Museo del Cine, da Argentina. “Há material cinematográfico do período mudo que parecia perdido e foi recentemente achado e restaurado. Quando eu comecei a pesquisa em 2009, parti de um conjunto de mais de 200 filmes, reduzindo este número para 30 na análise final. A justificativa para a seleção está ligada ao vigor com que estas produções representam para a consolidação de uma linguagem característica na história audiovisual argentina.”
O período coberto pelo estudo corresponde à fase do cinema mudo (1900-1933), clássico industrial (1933-1955), moderno e contemporâneo (1955-atualidade). A filósofa analisa a evolução coreográfica e os estilos do tango nos principais diretores e coreógrafos de cada período. Também foram realizadas 200 horas de entrevistas a realizadores audiovisuais, historiadores e bailarinos da Argentina.
Publicação
Tese: “Cinema, corpo e filosofia: contribuições para o estudo das performances no cinema argentino”
Autora: Natacha Muriel López Gallucci
Orientador: Francisco Elinaldo Teixeira
Unidade: Instituto de Artes (IA)