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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 09 de março de 2015 a 15 de março de 2015 – ANO 2015 – Nº 618Coleção reúne obras clássicas
Bibliotheca Latina, da Editora da Unicamp, terá ao todo 19 volumes sobre distintos gêneros literáriosUma obra clássica é aquela que, por conta de sua excelência, é reconhecida e revisitada sem limites de tempo ou espaço.
Estudar os clássicos não se resume, então, a ingressar num ambiente estético e cultural distinto do contemporâneo, a fim de conhecer e analisar dimensões em que uma obra foi produzida. Diferente disso, estudar os clássicos significa tomar contato com referenciais culturais que permanecem vivos, a despeito de terem sido forjados séculos atrás.
Esse é o mote da coleção Bibliotheca Latina, recém-lançada pela Editora da Unicamp, que reunirá 19 volumes sobre distintos gêneros literários latinos consagrados pela tradição. Três deles já foram lançados – “Poesia Didática – Virgílio, Ovídio e Lucrécio” e “Prosa técnica: Catão, Varrão, Vitrúvio e Columela”, organizados pelo linguista Matheus Trevizam, e “Épica I – Ênio e Virgílio”, compilado pelo professor de latim Paulo Sérgio de Vasconcellos.
“Os autores latinos estão vivos ainda hoje, lidos por eles mesmos ou através das obras incontáveis que os imitaram”, analisam Trevizam e Vasconcellos, citando Paulo Leminski e Ariano Suassuna como exemplos brasileiros. “Leminski tem uma obra em prosa que imita as ‘Metamorfoses’ de Ovídio; Ariano Suassuna, que morreu recentemente, retoma a comédia de Plauto”, afirmam.
Embora perenes, os referenciais colocados em cena pelas obras clássicas não devem ser analisados nem interpretados apenas a partir da perspectiva contemporânea. Sua devida compreensão requer que enxerguemos também os clássicos com os olhos daqueles que os forjaram.
Por isso, cada gênero que integra a Bibliotheca Latina é apresentado a partir das teorizações dos próprios antigos, integrando, quando elucidativas, considerações de estudiosos modernos. Além de análises, os livros incluem uma breve antologia das obras analisadas em latim e em português e uma bibliografia comentada de ensaios fundamentais sobre os autores contemplados.
Leia a seguir a íntegra da entrevista concedida por Trevizam e Vasconcellos ao Jornal da Unicamp.
Jornal da Unicamp – Como surgiu a ideia de criar a coleção Bibliotheca Latina?
Matheus Trevizam e Paulo Sérgio de Vasconcellos – A ideia ocorreu do contraste entre a abundância de materiais educativos para o estudo das línguas e culturas clássicas nos meios acadêmicos de outros países, como França e Itália, e a relativa falta de materiais similares no universo não apenas brasileiro, mas ainda lusófono.
Naqueles países, em distintas ocasiões, os organizadores tiveram oportunidade de estudar e desenvolver trabalhos filológicos. Assim, há muitos anos estão disponíveis aos estudantes franceses e italianos de língua e cultura latina (ou grega) obras excelentes e acessíveis, do ponto de vista econômico. Trata-se de séries de renome como a francesa “Que sais-je?” e a italiana “BUR”, as quais têm coberto extensamente o legado da literatura antiga quer do ponto de vista tradutório, quer daquele da abordagem de aspectos literários, linguísticos e culturais.
O estudante brasileiro dessa mesma área de interesse, por sua vez, deve muitas vezes contentar-se com o acesso, em geral caro e mais difícil, a obras importadas, quando não restringir-se a bibliografias desatualizadas, periférica e tardiamente chegadas a nosso meio intelectual, onde os Estudos Clássicos ainda não contam com a mesma tradição existente nos principais polos de pesquisa da Europa e dos Estados Unidos.
JU – Qual o objetivo da coleção?
Matheus Trevizam e Paulo Sérgio de Vasconcellos – A coleção é dirigida a todos os que se interessam pela literatura latina e pelos gêneros literários em que ela se expressou e não apenas a latinistas.
Quem deseja, por exemplo, conhecer algo sobre as origens da tradição épica do Ocidente, mesmo que seu interesse não seja propriamente saber mais sobre uma epopeia como a “Eneida”, poderá se beneficiar dos dois volumes dedicados ao gênero. Daí, nossa preocupação em evitar jargões e tentar atingir um público mais amplo que o dos classicistas.
JU – Como foi a seleção dos gêneros literários e das obras enfocadas em cada volume da coleção?
Matheus Trevizam e Paulo Sérgio de Vasconcellos – A seleção dos gêneros deveu-se a um desejo de oferecer cobertura para os principais tipos de produtos literários compostos em Roma Antiga: assim, a coleção focalizará, além dos primeiros livros sobre os gêneros Épico, Didático e a Prosa técnica, já lançados pela Editora da Unicamp, outros 15 gêneros: a Elegia, a Lírica, a Comédia, a Tragédia, o Diálogo filosófico, o Bucolismo, o Romance, a Historiografia, a Epistolografia, o Epigrama, os Tratados gramaticais, a Sátira, a Fábula, os Tratados de retórica e a Eloquência.
Vale lembrar que, no caso dos Tratados de qualquer teor, de conteúdo “técnico”, as obras assumem características também literárias, apesar dos fins majoritariamente expositivos, porque não havia, em Roma Antiga e na Grécia, absoluta separação entre o trabalho do escritor (preocupado com a elaboração estética do texto) e o do teórico (atento apenas à “passagem de conteúdos”).
Ou seja, sempre notamos nas principais obras antigas, mesmo nos Tratados de mestres como Marco Túlio Cícero (séc. I a.C.) e Júnio Moderato Columela (séc. I d.C.), algum grau de preocupação com a expressividade estilística, ou retórica, dos textos, o que faz desses tratados muito mais do que meros manuais técnicos, comuns no mundo moderno.
Em cada volume, foram escolhidas algumas obras para comentário no interior de cada quadro genérico específico – como a “Eneida” de Virgílio e os “Anais” do poeta arcaico Ênio, para o primeiro volume da Épica. Essas obras correspondem, sempre, a uma amostra do que de mais representativo e acabado se fez no interior do gênero literário enfocado. Os autores contemplados “ilustram” as possibilidades expressivas de cada gênero em seus mais altos pontos qualitativos.
Finalmente, apresentamos aos leitores de hoje autores e obras que tiveram grande influência no Ocidente; conhecê-los muitas vezes é fundamental para entender mais a fundo escritores que fazem parte do cânone literário ocidental.
JU – Qual a visão da literatura antiga clássica se pretende transmitir aos leitores?
Matheus Trevizam e Paulo Sérgio de Vasconcellos – Nossa intenção é transmitir a ideia de uma cultura literária, em Roma Antiga, totalmente diversificada – haja vista o fato do acolhimento a tantos autores, obras e gêneros – e produtora de alguns dos mais importantes monumentos literários do Ocidente.
Também temos uma preocupação de demonstrar que os escritores de Roma Antiga, em verso ou prosa, já estavam, há 2 mil anos ou mais, cientes de todos os mais finos mecanismos da construção artística e comunicativa dos textos.
Desse modo, compreender suas ideias sobre a estruturação de tantos gêneros literários nos oferece verdadeiras chaves de acesso a uma cultura literária bastante desenvolvida e de duradoura permanência até em tempos posteriores, como o Medievo e o Renascimento.
Por outro lado, evita-se cair nos estereótipos ultrapassados que foram muito comuns há alguns anos e que de vez em quando ainda escutamos, sobretudo a noção de que a literatura tem fases semelhantes às de um organismo vivo: nasce, vai-se desenvolvendo, atinge o ápice e morre. Assim, poetas como Virgílio e Horácio representariam a “fase áurea” da literatura latina; Ovídio, a “fase argêntea”, e por aí vai.
Esperamos que nossa abordagem revele como a história da literatura latina é muito mais complexa e dinâmica do que certas categorias comuns nos manuais do passado.
JU – Por que estudar a literatura antiga clássica hoje em dia?
Matheus Trevizam e Paulo Sérgio de Vasconcellos – Por definição, “Clássica” é toda produção cultural cuja excelência a torna perenemente merecedora de reconhecimento e revisitações, sem limites no tempo e no espaço. Que seria do italiano Dante Alighieri e do português Luís de Camões, da “Divina Comédia” e d’“Os Lusíadas”, sem o referencial norteador da Épica virgiliana, representada pela “Eneida”? Como se nutririam poeticamente de temas e situações bucólicos os Árcades mineiros do século XVIII, sem o legado das “Églogas” do mesmo poeta antigo, ou, anteriormente, de Teócrito de Siracusa?
Estudar e buscar intimidade com os Clássicos da Antiguidade, portanto, em nosso como em outros tempos, é continuamente estabelecer contato com referenciais de cultura válidos porque não envelhecem, nem se restringem aos falsos brilhos do modismo.
Nesse sentido, em nossa época, o cinema, a literatura, a música e outros modos adicionais de produção artística recorrem ao universo criativo dos grandes autores antigos (vejam-se, por exemplo, as tantas adaptações fílmicas de Homero...) como foco de derivações de imagens, ideias, temas...
Apenas conseguirá apreciar esse legado cultural criticamente e com profundidade, no entanto, quem dispuser de mínimas chaves de acesso ao mundo antigo, para nós sobretudo alcançável através das palavras de autores como Virgílio, Cícero e Horácio, quando tratamos da cultura romana.
JU – No volume sobre poesia didática, é mencionado que uma das intenções é transmitir a visão que a época tinha sobre o gênero, evitando anacronismos. Esta é uma preocupação presente nos demais volumes da coleção?
Matheus Trevizam e Paulo Sérgio de Vasconcellos – Certamente, um dos objetivos da coleção é desfazer alguns mal-entendidos ainda vigentes no contato do público “leigo”, ou iniciante nos estudos da Antiguidade, com as obras e gêneros antigos.
Assim, não desejamos que, depois da leitura das obras da coleção, os interessados ainda conservem ideias como a absoluta identificação do fazer dos historiadores latinos – como Júlio César, Tito Lívio e Cornélio Tácito – com os pressupostos metodológicos e científicos da moderna historiografia (Quintiliano, por exemplo, chama a obra histórica de “poema em prosa”, uma concepção que jamais associaríamos a nossos livros típicos de história).
Ou que venham a pensar na Poesia Didática como uma produção “impossível”, do ponto de vista constitutivo, diante da contemporânea (e supostamente “natural”) separação entre as obras comprometidas com fins estéticos – ou seja, a literatura em sentido estrito – ou com aspectos secamente expositivos.
Enfim, procuramos incorporar em nossas análises e interpretações a reflexão mais atual sobre o que é literatura e os modos mais refinados de abordá-la. Nesse sentido, nossos manuais pretendem ser didáticos sem recair em simplificações excessivas.
Dessa forma, trata-se aqui de um conjunto de estudos teóricos sobre a literatura Latina, embora introdutórios, destinados a permitir o mais sólido embasamento dos leitores diante das concepções dos próprios autores clássicos a respeito dos gêneros em que desenvolveram seu trabalho criativo.