Edição nº 618

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 09 de março de 2015 a 15 de março de 2015 – ANO 2015 – Nº 618

Habilitação incompleta

Estudo aponta que política brasileira de formação de doutores
gera profissionais que não atendem plenamente as necessidades do país

Milena Yumi Ramos, autora da tese

A atual política brasileira de formação de doutores, baseada majoritariamente no treinamento avançado no país com breves períodos de complementação no exterior, está assentada em conceitos e argumentos ultrapassados ou parciais, sem evidências representativas que lhes dê sustentabilidade ou legitimidade. O resultado desse modelo, adotado a partir de meados dos anos 1990, é a formação de recursos humanos que não dispõem de habilidades e conhecimentos que atendam plenamente às necessidades de setores como a academia, as organizações públicas de pesquisa e a indústria. Estas e outras constatações fazem parte da tese de doutorado de Milena Yumi Ramos, defendida no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp.

No trabalho, orientado pela professora Lea Maria Leme Strini Velho, Milena aponta para a necessidade de revisão dessa política, como forma de promover um balanceamento adequado entre a formação no país e no exterior. “A complementação da formação com estágios/períodos curtos de pesquisa no exterior, sem o compromisso da titulação, é válida como experiência e traz benefícios à pesquisa individual. Isso, contudo, não substitui a formação plena no exterior. O país precisa ter uma parcela de seus recursos humanos altamente qualificados conectada estruturalmente aos centros mainstream, pesquisando na fronteira do conhecimento e participando da definição da agenda de pesquisa em especialidades consideradas estratégicas”, defende a pesquisadora, que contou com bolsa de estudos concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Abaixo, os principais pontos da entrevista que Milena, atual pesquisadora da Embrapa, concedeu ao Jornal da Unicamp.

Jornal da Unicamp - Qual tem sido o foco da política de formação de doutores no Brasil? Há um marco temporal que a caracterize?

Milena Yumi Ramos - A partir de meados dos anos de 1990, o país tem enviado cada vez menos estudantes de doutorado ao exterior para formação plena. Em contrapartida, a formação em instituições nacionais, complementada por estágios de pesquisa no exterior, na forma de períodos sanduíche ou pós-doutorados, tornou-se a forma preferencial de treinamento avançado. Essa tendência reflete o entendimento, reforçado por alguns estudos publicados à época, de que o sistema nacional de pós-graduação havia alcançado autossuficiência, isto é, havia se tornado capaz de garantir a expansão e autogestão da instituição científica no Brasil. Até então, a base científica brasileira estava em construção e o treinamento pleno de mestres e doutores no exterior, com o compromisso de regresso, era a estratégia adotada para formar os quadros acadêmicos de alto nível. Houve, portanto, uma mudança no foco da política de formação de recursos humanos para a pesquisa. O treinamento avançado de pesquisadores no país passou a ocorrer excessivamente dentro das fronteiras nacionais a partir de meados dos anos de 1990.

JU - Que estratégias e mecanismos têm sido adotados pelo país em relação a esse tipo de formação? Quais as implicações desse modelo?

Milena Yumi Ramos - A partir de evidências de que pesquisadores brasileiros de elevado desempenho formaram-se em centros de excelência do país ou do exterior, sendo que a maioria cumpriu estágio de doutorado ou pós-doutorado fora do Brasil, o governo definiu um modelo de mobilidade internacional, com foco em curtos períodos no exterior. Esta se tornou a principal estratégia para impulsionar o intercâmbio científico e a colaboração em pesquisa, buscando expandir o perfil e o impacto internacional da ciência brasileira. No entanto, não se levou em conta que tais evidências eram parciais, pois se baseavam em poucos segmentos da comunidade científica brasileira com maior inserção internacional, seja pela dinâmica específica da produção de conhecimento, seja pela história do desenvolvimento desses segmentos no Brasil. Esse perfil não condiz com grande parte da comunidade científica nacional, voltada para dentro do país e para os próprios objetivos da academia.

 Nessas condições, aplicar homogeneamente a mesma estratégia a todas as áreas pode estar colocando em risco a inserção de jovens pesquisadores brasileiros em redes de pesquisa internacionais e, consequentemente, a internacionalização da base de conhecimentos do país de modo mais amplo. Os gestores de C&T já reconhecem, por exemplo, excluídas algumas exceções, que a visibilidade e o impacto internacional da pesquisa brasileira são muito baixos, embora em termos de produção o país tenha tido crescimento extraordinário nas últimas décadas. Além disso, existem dúvidas sobre os benefícios assumidos pelas agências de fomento em relação às chamadas “bolsas sanduíche” de doutorado no exterior e, mais que tudo, sobre a centralidade deste tipo de bolsa nos programas de formação no exterior das agências.

JU - Que dúvidas são essas?

Milena Yumi Ramos - Sabe-se que, na prática, o “aluno sanduíche” não está formalmente matriculado na universidade estrangeira e que, sendo assim, corre grande risco de ficar solto, sem orientação personalizada, aproveitando consequentemente muito pouco da sua experiência acadêmica no exterior. É razoável, então, esperar que ele se insira na comunidade científica internacional ou que faça avançar a colaboração internacional de seu programa de pós-graduação de origem com a instituição que o recebe no exterior?

Questiona-se também a atitude punitiva das agências aos bolsistas que não retornam dentro dos prazos estipulados e a assumida existência de uma imigração de cérebros. Afinal, se isso de fato ocorre, qual a dimensão desse movimento? É estatisticamente relevante, requerendo medidas coercitivas? Estariam eles imigrando ou circulando? Eles estariam se desvinculando da ciência brasileira ou promovendo a conexão de grupos de pesquisa ao qual estão ligados no Brasil a centros internacionais? São questões sem respostas claras ainda.

JU - Qual o perfil dos doutores que o Brasil tem formado? Que habilidades e competências eles demonstram?

Milena Yumi Ramos - O modelo de formação vigente ainda se baseia em uma estrutura curricular rígida, com muitas horas-aula e projeto de pesquisa individual, no qual a relação orientador-aluno é quase exclusiva. O aluno desenvolve diversas habilidades necessárias à condução de pesquisa acadêmica. Por exemplo: adquire conhecimento especializado, aprende a pesquisar, a organizar e sintetizar a literatura relevante, a formular e trabalhar o problema de pesquisa, a conduzir experimentos e analisar os resultados, a lidar com dificuldades e contingências da pesquisa e, cada vez mais, a escrever e apresentar trabalhos acadêmicos.

JU - Essa formação atende às necessidades da indústria ou mesmo da academia?

Milena Yumi Ramos - Infelizmente, não. Com a emergência da economia do conhecimento, a necessidade de trabalhadores altamente qualificados aumentou muito. Mais e/ou novas oportunidades de trabalho para doutores surgiram nos setores tradicionais (academia e organizações públicas de pesquisa) em carreiras convencionais (docência e/ou pesquisa) ou emergentes (administração e desenvolvimento da pesquisa), em carreiras técnicas na indústria ou em ocupações não convencionais em diversos setores econômicos, em interação com diferentes contextos, perspectivas, práticas, demandas, interesses. Por esse motivo, o doutorando precisa desenvolver competências e habilidades que vão além daquelas estritamente científicas e que têm caráter geral e transferível, isto é, que não são limitadas a uma disciplina ou área do conhecimento, mas podem ser mobilizadas em muitas ocupações diferentes.

Elas incluem, entre outras: participação em ou condução de pesquisa coletiva e transdisciplinar; comunicação intercultural e para diferentes audiências; liderança e empreendedorismo; habilidades gerenciais; habilidades analíticas gerais e de resolução de problemas; habilidades para identificar e processar grandes volumes de dados e informações relevantes e extrair deles conhecimentos úteis. No Brasil, a diversificação da formação avançada ainda não encontra espaço e reconhecimento. O modelo vigente, único, focado na carreira e no desempenho acadêmico, está assentado em uma visão quantificada de qualidade da ciência. Estudos e depoimentos de empregadores de doutores mostram que esse modelo não estimula o desenvolvimento de competências e habilidades transferíveis.

JU - Na sua tese, você aponta que o Brasil tem enviado cada vez menos estudantes de doutorado para o exterior para formação plena. Que números você dispõe sobre esse modelo?

Milena Yumi Ramos - Como comentei antes, houve um entendimento de que o Brasil precisava garantir o retorno imediato e/ou a permanência dos doutores para a expansão e a autogestão da instituição científica no país. Enviar estudantes para treinamento pleno e avançado no exterior significava um custo bem mais elevado e de mais alto risco, já que o investimento poderia ser perdido em caso de imigração. Bancar esse investimento e correr esse risco seriam desnecessários, já que as instituições nacionais se tornaram capazes de dar conta da formação de doutores em quantidade e qualidade. Não há, no entanto, evidências representativas e incontestáveis que deem suporte e legitimidade a esses argumentos.

Além disso, esses argumentos ignoram o fato de que a formação plena no exterior é insubstituível pelo contato com outra cultura, pelo ganho de conhecimentos tácitos e pela integração ao circuito internacional de conhecimento. É possível ter uma ideia da dimensão dessa política observando o número de bolsas de doutorado pleno no exterior implementadas pelas principais agências de fomento à pesquisa e pós-graduação no Brasil comparativamente ao número de doutores titulados no país de 1990 a 2013.

Desde o pico observado em 1992, houve redução de 83,5% no número de bolsistas de doutorado pleno no exterior, ao passo que o número de doutores titulados no país aumentou em mais de nove vezes.

JU - O modelo de doutorado sanduíche ou mesmo os cursos de pós-doutorados no exterior, que têm merecido maior atenção das autoridades em Educação, não atendem às nossas necessidades?

Milena Yumi Ramos - Atendem parcialmente. É preciso entender que as nossas necessidades são múltiplas. A formação de doutores em instituições nacionais é fundamental e ter programas de pós-graduação de excelência internacional deve continuar a ser uma importante diretriz em Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação. A complementação da formação com estágios/períodos curtos de pesquisa no exterior, sem o compromisso da titulação, é válida como experiência e traz benefícios à pesquisa individual. Isso, contudo, não substitui a formação plena no exterior. O país precisa ter uma parcela de seus recursos humanos altamente qualificados conectada estruturalmente aos centros mainstream, pesquisando na fronteira do conhecimento e participando da definição da agenda de pesquisa em especialidades consideradas estratégicas. Para isso, ainda não há substituto para a formação plena no exterior. Então, temos que encontrar um balanceamento adequado entre formação no país e no exterior, entre formação para o setor acadêmico e para os diversos setores que demandam doutores na atualidade.

JU - Esse modelo brasileiro de mobilidade internacional não tem capacidade, então, de fomentar o intercâmbio científico e a colaboração em pesquisa entre o Brasil e os grandes centros?

Milena Yumi Ramos - No longo prazo, provavelmente não. A colaboração internacional em pesquisa é considerada a forma mais exigente de relação entre pesquisadores, já que pressupõe atratividade, visibilidade internacional e frequentemente requer elevado grau de compromisso dos parceiros. É considerado também o tipo de relacionamento científico mais importante porque compreende todo o processo de pesquisa. Para estabelecer um relacionamento desse tipo, são necessárias algumas premissas: motivações para a colaboração, capacidade, confiabilidade, competências, recursos intelectuais e materiais à disposição, redes científicas e espaços de influência envolvidos, entre outros fatores.

Quando os parceiros já se conhecem mutuamente, a partir de experiências anteriores, algumas etapas são queimadas porque essa avaliação já foi feita. O que fica em jogo são o interesse na manutenção do relacionamento e o objeto da colaboração em si. Estudantes de doutorado e jovens pesquisadores, no entanto, não passaram por essa experiência, nem passarão durante um estágio de pesquisa curto, em que o foco está no desenvolvimento de um projeto de pesquisa individual, definido sem a participação do parceiro no exterior. Nessa situação, ainda que a mobilidade internacional sirva a objetivos pontuais da pesquisa, o desenvolvimento dos contatos internacionais em laços de colaboração mais significativos e sustentados fica dificultado, se não impossibilitado.

JU - Como tem sido a outra via da internacionalização, ou seja, a atração de docentes, pesquisadores e estudantes estrangeiros para cumprirem períodos de estudo e pesquisa no Brasil? Qual a importância dessa via?

Milena Yumi Ramos - Embora incipientes, essas iniciativas começam a ganhar espaço nos programas de pós-graduação brasileiros de excelência. Porém, as instituições brasileiras ainda utilizam procedimentos estritamente tradicionais (endógenos) para a admissão de estudantes e contratação de professores, e definem os níveis salariais burocraticamente, minando sua atratividade internacional. Além disso, carecem de estratégias programáticas e organizacionais de governança e de operações, de infraestrutura e programas de acolhimento, além de apoios de natureza burocrática (adequação estatutária) e de serviços de suporte para receber estrangeiros. Outra dificuldade está relacionada à relativa baixa visibilidade internacional das instituições brasileiras. Além de sua reduzida participação em rankings universitários internacionais e de ocuparem posições distantes da elite mundial, são raros os casos de instituições brasileiras que usam estratégias de exportação, tais como o estabelecimento de campus em outros países, ensino à distância para audiência internacional e escritórios de relações internacionais.

Essa via, do exterior para o país, tem adquirido grande importância em muitos países. A longa história da mobilidade internacional revelou seu limitado alcance e impacto relativamente à população total de docentes, pesquisadores e estudantes no ensino superior. Buscando a ampliação da base de beneficiários como forma de aumentar o contingente de recursos humanos globalmente competentes e com alto nível de qualificação ‒ um imperativo da economia global do conhecimento ‒ iniciou-se um processo de diversificação das formas de internacionalização do ensino superior, no qual as estratégias de “internacionalização em casa” ganharam destaque. Elas incluem, além da mobilidade internacional inversa - atração de estrangeiros para o sistema educacional e de pesquisa nacional -, a infusão da dimensão internacional no currículo, nas atividades extracurriculares e nos processos de ensino e aprendizagem nas instituições nacionais.

JU - Recentemente, o físico Rogério Cerqueira Leite, professor emérito da Unicamp, escreveu um artigo na Folha de S. Paulo afirmando que os brasileiros produzem ciência em quantidade significativa, mas que essa produção deixa a desejar em termos de qualidade. Ele considera que publicamos majoritariamente em revistas que não produzem qualquer impacto. Você concorda com essa análise? Esse problema está, em alguma medida, ligado às constatações que você fez na sua tese?

Milena Yumi Ramos - Em parte sim, como já mencionei antes, mas é preciso considerar alguns fatores que interferem nessas afirmações. Existem diversas razões para um artigo ser aceito numa revista científica de “alto impacto” e para receber muitas citações e, assim, ter impacto científico. Um artigo pode não ser aceito, não porque a pesquisa não tenha qualidade, mas porque não é aderente ao escopo daquele periódico, porque trata de um assunto que não interessa ao seu público-alvo ou porque tem problemas de redação científica, por exemplo. As citações estão sujeitas ao “Efeito Matheus” (quanto mais citações um artigo tem, mais visível é e isso aumenta ainda mais as chances de receber ainda mais citações), à visibilidade e reputação do periódico, aos espaços de influência dos autores, à língua em que o artigo é publicado, às bases de dados em que é indexado, entre outros fatores.

No Brasil, como em outros países, de fato há revistas e artigos de qualidade questionável. Além disso, boa parte da produção científica brasileira é disseminada em periódicos nacionais, publicados somente em português. Isso interfere na visibilidade e impacto das pesquisas num mundo dominado pelo padrão e por empresas anglo-americanas. A relativa baixa inserção internacional da comunidade científica brasileira e a estagnação da colaboração internacional em pesquisa, em cuja base está a política de formação avançada (excessivamente concentrada em instituições nacionais), agrava essa situação, como verifiquei na pesquisa da tese, corroborando hipóteses e ideias de outros autores. Isso porque fica comprometida a socialização do doutorando nas redes científicas internacionais numa fase crítica de sua trajetória acadêmica: a transição da condição de estudante para a de pesquisador independente. Se o doutorando não é formado e rapidamente absorvido por um ambiente de pesquisa estimulante, que lhe permita construir vínculos de colaboração, aumentar sua produtividade e visibilidade internacional, corre maior risco de isolamento num sistema de ciência que é globalmente hierárquico.

JU - No seu trabalho você aponta alternativas à política de formação de doutores em vigor?

Milena Yumi Ramos - Foi possível verificar que a política vigente assenta-se em conceitos e argumentos ultrapassados ou parciais, sem evidências representativas e incontestáveis que lhes dê sustentação e legitimidade. Assim, aponto para a necessidade de revisão dessa política a partir do referencial analítico atual, que reconhece a importância da internacionalização, nas suas mais variadas formas – mobilidade de pesquisadores, colaboração física e virtual, contratos de pesquisa supranacionais, participação em organizações internacionais de pesquisa, coordenação e planejamento conjunto de atividades em CTI –, para a produção, visibilidade e impacto do conhecimento. Há diferentes lógicas, modelos e mecanismos pelos quais a internacionalização pode ser implementada e os potenciais benefícios desse esforço não são garantidos ou automáticos. É preciso entender devidamente as opções existentes, seus condicionantes e implicações, sem o que fica inviável dar forma à política relevante. Logo, a definição de uma base conceitual e metodológica consistente e atualizada e a construção de bases de dados vinculadas são requisitos para a boa gestão e efetividade da política.

JU - É exequível uma mudança do atual paradigma?

Milena Yumi Ramos - As análises desenvolvidas na tese têm como pano de fundo a tensão entre duas lógicas distintas que coexistem neste momento: a da chamada Ciência 1.0, focada em publicar o mais rápido possível para assegurar reconhecimento e crédito intelectual num regime de competição entre pesquisadores, e a da Ciência 2.0, focada em compartilhar e colaborar o mais rápido e da melhor forma possível par acelerar e tornar mais eficiente o processo de inovação. Se de fato está havendo transição de uma lógica para outra, é uma questão em discussão, mas me parece importante para a política de CT&I no Brasil aprofundar a atenção para as forças e formulações em jogo, as oportunidades e desafios, as implicações políticas e institucionais sobre o nosso sistema de pós-graduação e pesquisa.


Publicação

Tese: “Formação de doutores no país e no exterior: impactos na internacionalização da ciência brasileira”

Autora: Milena Yumi Ramos

Orientadora: Lea Maria Leme Strini Velho

Unidade: Instituto de Geociências (IG)