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Baixar versão em PDF Campinas, 13 de abril de 2015 a 26 de abril de 2015 – ANO 2015 – Nº 622Pesquisa investiga perfil psicológico de motoboys
Psicólogo entrevistou 194 profissionais para fundamentar tese defendida na FCMJovens de todas as idades não escondem que têm um verdadeiro fascínio por motos. E muitos as utilizam em sua atividade profissional, como é o caso dos motoboys. Para corresponder a um anseio de trabalho, a escolha por atuar nessa frente acaba fazendo deles vítimas de uma excessiva pressão social pela velocidade, um símbolo da sociedade pós-moderna. “Só que a pressa que eles têm não lhes pertence. É nossa. Esses jovens apenas exemplificam a sociedade veloz. Representam uma metáfora da própria vida e são a ponta da lança”, concluiu o psicólogo Alex de Toledo Ceará em pesquisa de doutorado defendida na Faculdade de Ciências Médicas (FCM).
No estudo, orientado pelo psiquiatra Paulo Dalgalarrondo, Alex abordou as diversas dimensões sobre os motoboys especificamente da cidade de Campinas. Traçou um perfil sobre a questão da saúde mental, da constituição da identidade, como esses jovens percebem o trabalho na sociedade, como eles se sentem como motoboys, as características da sua personalidade e o uso de substâncias psicoativas. Foram alvos da investigação 194 sujeitos, todos na faixa etária entre 18 e 34 anos.
Esses motoboys, contou Alex, eram jovens com média de 22 anos, em busca do primeiro emprego e que encontram nessa atividade uma certa facilidade de ingresso no mercado de trabalho. Carregam características como um espírito de aventura e de exposição a riscos, um desejo aguçado de liberdade. “Mas junto com isso vem a necessidade de trabalho e de se submeter a tarefas de alta periculosidade, pelo fator de exposição a riscos para quem vive no trânsito.”
Em geral, esses rapazes atuam basicamente fazendo entregas de alimentos, sobretudo nas grandes redes de fast foods e em pizzarias. Na maioria, trabalham como deliveries em restaurantes dos bairros centrais de Campinas e na área mais periférica.
Além desses motoboys que entregam alimentos, há outros que trabalham com a entrega de documentos – os chamados mensageiros, os quais percorrem de modo singular longos trajetos em suas motos, dividindo-se entre a região de Campinas e a cidade de São Paulo.
PERFIL
A categoria de mensageiros foi identificada por Alex ao notar a diferença de papéis no exercício profissional: uns entregavam alimentos e outros, documentos. “Todavia, a responsabilidade é a mesma nessas duas categorias. O que difere é o trabalho”, reparou.
Nas entrevistas pilotos, o pesquisador observou que os motoboys cumpriam uma longa jornada de trabalho e tinham que fazer as entregas em curto espaço de tempo. Havia sempre uma urgência, segundo Alex, tanto por parte do entregador quanto por parte do cliente.
Eles percorriam grandes distâncias diariamente e, alguns, quando chegavam em casa, se mostravam exaustos e estonteados, mas eufóricos e sem conseguir relaxar, comentou o doutorando. Estabeleciam conexão direta entre o sofrimento psicológico, a relação com o trânsito e o desgaste emocional, o que pode aumentar significativamente o risco de acidentes.
Alex obteve informações sobre o uso de drogas, outros transtornos mentais e dificuldades psicoemocionais. O casamento desses dados favoreceu a formação de um perfil dos motoboys avaliados.
Esses jovens apreciavam o que faziam, averiguou o psicólogo, relatando dificuldade de trabalharem em outra atividade que não a de motoboy, uma vez que não viam com bons olhos o trabalho em um espaço fechado e com hierarquia. Isso não era para eles.
O trabalho nas ruas era uma forma de viver sem grandes cobranças de seus empregadores. Por outro lado, reconheciam que eram alvejados por uma pressão muito perigosa, que podia inclusive levá-los a acidentes fatais.
Uma questão que o pesquisador lhes perguntou foi se eles já tinham sofrido algum acidente? A resposta foi sim para 29,8% dos 194 sujeitos avaliados.
É sabido que, desde 2007, as motos passaram a matar até mais que os automóveis no país; e, na última década, 65.671 condutores de motos perderam a sua vida em acidentes por trauma.
Os dados estatísticos da tese foram bem específicos. Em São Paulo, nos últimos três anos, de 10% a 20% dos acidentes com vítimas fatais estiveram ligados aos motoboys. “Então não se trata da maioria dos acidentados. Seria estranho que fosse, porque a frota de motos em São Paulo é gigantesca: só na Capital totaliza um milhão. Duzentos mil são motoboys.”
CARACTERÍSTICAS
Ao investigar a personalidade, a identidade, o abuso de substâncias e outros transtornos mentais em motoboys, Alex adotou o modelo Big Five, que propõe a compreensão da personalidade a partir de cinco dimensões: neuroticismo (irritação, vulnerabilidade, impulsividade), extroversão (busca de aventuras e sensações, e voltar-se ao mundo externo), abertura (predisposição a novas ações, ideias e valores), amabilidade (ser amável e se colocar no lugar do outro) e conscienciosidade (ser ordeiro e correto).
Avaliando a personalidade, Alex comparou 25 jovens com histórico de acidentes e 25 sem esse histórico. Ele verificou que os acidentados tinham a dimensão “abertura” maior. “Isso me fez pensar um pouco, já que a abertura é uma dimensão mais presente e mais forte nos jovens.”
Com o questionário aberto, pôde perguntar a esses jovens como eles se viam como motoboys. Percebeu que essa é uma identidade juvenil em busca de uma oportunidade, mas também de aventura. Então esses sujeitos iam mais à procura de risco que em outras faixas etárias. Ao mesmo tempo, se sentiam discriminados pela sociedade, como os transgressores do trânsito.
Mas esses motoboys entendiam que a sociedade dependia deles. Tinham ciência de que, se parassem, a sociedade pararia. “Ela criticava porque os motoboys corriam. Só que ninguém aceita pizza fria e nem documento após o horário bancário. Logo, a sociedade depende deles, porém faz com que trabalhem demais”, alfinetou.
DROGAS
Sobre o abuso de substâncias entre os motoboys, Alex ressaltou que esse dado deve ser olhado com muita cautela, visto que a droga mais usada por esses jovens era ilícita – a maconha (20%). E o pior: muitos deles usavam essa substância durante o expediente.
Além da maconha, os jovens contaram que consumiam álcool (8%), cocaína (4%), esteroides (3%), ecstasy (2,5%) e crack (0,5%). “Então temos que refletir mais acerca da influência da maconha na capacidade de dirigir. Hoje nós falamos muito da influência do álcool e pouco da influência da maconha no mundo”, considerou.
Os dados apontaram ainda que os sujeitos que usavam substâncias psicoativas eram mais ansiosos. “Então vejo que isso tem a ver com a busca do alívio. Agora, não é possível inferir que a ansiedade seja a causa desse consumo, mesmo estando associada às drogas”, expressou.
O presente estudo sinalizou que os motoboys que se arriscam mais no trânsito ‘botam pra quebrar’, contudo usam menos álcool. “Esse resultado vai na contramão da juventude que hoje consome álcool em demasia”, contemporizou. “É praticamente impossível ingerir álcool e trabalhar como motoboy.”
Ocorre que o álcool não é o maior vilão e sim a maconha, constatou o psicólogo. Mesmo assim, embora 20% dos motoboys empreguem a maconha com frequência, esse é um número menor do que o encontrado entre estudantes universitários brasileiros, que é de 26%, sugeriu Arthur Guerra de Andrade (2012) na literatura.
Mesmo assim, o que mais chamou a atenção de Alex foi que esses jovens continuassem usando maconha no trabalho como tranquilizante. “É algo grave, entretanto o principal problema observado foi o sofrimento psicológico – o uso de substâncias, a depressão e a ansiedade generalizada”, revelou.
REGULAMENTAÇÃO
Na pesquisa, o autor apurou que a média salarial dos motoboys era de aproximadamente R$ 1.500,00, mas isso às custas de uma carga horária muito apertada, já que esses trabalhadores recebem por entrega. Muitos deles chegavam a trabalhar mais de nove horas por dia.
O psicólogo se posicionou. Espera que a atividade seja melhor regulamentada, que os motoboys tenham mais direitos e que a sociedade reconsidere a cobrança que impetra sobre esses jovens. “Que isso seja levado em conta de maneira mais profissional”, alertou.
Um dos pontos cruciais do seu trabalho é o cuidado para que não haja nenhuma injustiça contra esses rapazes, e eles sejam apontados como “drogados”. É verdade que fazem uso de substâncias, mas estariam sendo mais estigmatizados do que já são, e na maioria das vezes injustificadamente.
O doutorando vê mais esses rapazes como jovens que sofrem, que têm um grande desgaste psicoemocional. “Então o uso de drogas não pode ser visto como um problema central nessa categoria e sim um problema a mais. Isso porque existe um problema ainda maior por detrás dos usuários de drogas – a vida desses jovens”, realçou.
Publicação
Tese: “Personalidade, identidade e abuso de substâncias psicoativas e outros transtornos mentais em motoboys”
Autor: Alex de Toledo Ceará
Orientador: Paulo Dalgalarrondo
Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)