Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 29 de junho de 2015 a 02 de agosto de 2015 – ANO 2015 – Nº 630Tese compara políticas de habitação popular na AL
Modelo da Venezuela é mais eficiente do que os adotados no Brasil, no México e na Colômbia, constata pesquisadoraComparada às políticas de habitação popular adotadas por Brasil, Colômbia e México nas últimas décadas, a da Venezuela, implantada após a eleição de Hugo Chávez (1954-2013), foi a que se mostrou mais eficiente, ao realizar quase uma “reforma agrária urbana” que evita o banimento da população de baixa renda para as periferias, e que realiza também a criação de conjuntos habitacionais que buscam ser sustentáveis e criar novos núcleos urbanos, diz a pesquisadora Beatriz Mioto, autora da tese de doutorado “As políticas habitacionais no subdesenvolvimento: os casos do Brasil, Colômbia, México e Venezuela (1980/2013)”, defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp e orientada pelo professor Wilson Cano.
“É engraçado dizer isso”, disse Beatriz, referindo-se à conclusão de que a experiência venezuelana, nesse campo, é a mais interessante. “É sempre amedrontador dizer isso, porque a Venezuela é sempre atacada. Acho que o importante da Venezuela, mais do que a experiência em si, é o fato de o Estado ter financiado e ter investido bastante dinheiro por um bom tempo. Daqui para frente, com a crise causada pela oscilação do preço do petróleo, não sei como vai ser”.
A pesquisadora lembra que a política venezuelana teve início depois das fortes enchentes do final de 2010 e do início de 2011, que deixaram centenas de milhares de desabrigados. “Era preciso dar uma resposta urgente para o problema social”, disse.
“Até então havia uma política muito mais de readequação dos bairros, de reforma, não uma política de habitação em si, mas quando vem essa enchente, com muitos desabrigados, principalmente em Caracas, surge essa política habitacional. E, a despeito de todos os conflitos da sociedade venezuelana, há um consenso de que se precisa botar dinheiro para resolver esse problema urbano e melhorar a vida de todo mundo. O que é diferente da visão de dar casa para pobre, onde não se entende que, ao melhorar a moradia popular, está-se melhorando a vida de todo mundo”.
ENFRENTAMENTO FUNDIÁRIO
A pesquisadora explica que o governo venezuelano conseguiu lançar mão de mecanismos para aproveitar espaços de áreas urbanas já consolidadas para fazer política habitacional. “Talvez seja muito forte chamar isso de uma reforma agrária urbana, mas houve meios muito importantes para enfrentar o setor privado, na questão da terra urbana”, disse ela. “Então, fez-se um censo das terras urbanas em Caracas, especificamente, ideia que deveria ser extensiva para todo o país”.
Nesse censo, as terras urbanas foram classificadas e, à medida que eram tidas como de uso inadequado – “por exemplo, você tem um depósito abandonado no meio da cidade que só serve para manter aquela terra como reserva de valor”, cita a pesquisadora – a área torna-se passível de desapropriação, mediante pagamento.
“E o preço dessa terra não era um preço absoluto, dado apenas pela localização, mas era um preço, digamos, formado relativamente a terrenos com as mesmas características topográficas e de tamanho, e não só pela localização, que é o que torna a terra sempre mais cara. Então de fato houve enfrentamento, não com o setor privado de edificações em si, mas com o capital imobiliário em geral, da especulação”.
Outra experiência venezuelana, que ainda estava dando os primeiros passos quando da elaboração da tese, é a da construção de condomínios sustentáveis, que embora não fiquem em áreas já urbanizadas ou centrais, buscam se converter em novos centros, evitando que a população tenha de se deslocar por grandes distâncias para chegar ao trabalho. “A ideia, no discurso da burocracia estatal que entrevistei, e das visitas que fiz, era fazer desses condomínios, um pouco mais afastados, novas centralidades urbanas, mais ligadas a coisas como sustentabilidade, agroecologia”. A construção desses conjuntos conta com parcerias internacionais, incluindo mão de obra, tecnologia e capital da China.
PARA O CAPITAL
Já no caso de México, Colômbia e Brasil, as políticas são feitas sem enfrentamento fundiário, e em parceria com o capital privado. O caso brasileiro, disse Beatriz, é onde há maior participação do Estado como agente financiador, seja por meio de bancos públicos ou políticas como a do FGTS.
Essa abordagem comum aos três países, de acordo com a pesquisadora, gera dificuldades como a transferência de populações para as periferias, por conta do preço da terra, a concentração de problemas sociais e de segurança nos conjuntos populares e questões quanto ao tamanho inadequado das unidades e de qualidade das obras.
“A partir dos anos 90, principalmente, a ideia é muito mais de prover o crédito para que o mercado faça a habitação. O Estado vira um facilitador que oferece um crédito ou um subsídio ao comprador final. Todo o resto, incluindo a articulação setorial e a localização dos empreendimentos, fica relegado ao setor privado”, descreve ela.
“Isso é um traço comum das políticas, um pouco mais intenso nos casos mexicano e colombiano. Na Colômbia, por exemplo, o governo só dava o subsídio, agora começou a facilitar mais o crédito, porque a família tinha que buscar o crédito no mercado: ou seja, tinha que provar para o governo que é pobre o suficiente para ter o subsídio, e para o mercado que é rico o suficiente para ter o crédito”.
“No México, em geral, quem tem acesso é quem tem emprego formal”, explicou. “O trabalhador informal tem pouco acesso, porque as políticas, a partir dos anos 90, que eram destinadas à população de mais baixa renda, foram sendo ou sucateadas ou sofreram redução de recursos”.
Já o Brasil, diz Beatriz, também tem uma política de viés mais neoliberal, dentro do receituário internacional. “Mas a gente tem o crédito dado por fundos públicos, então o Estado tem muito mais controle”. Ela cita programas envolvendo o FGTS e o Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), ambos no âmbito do programa Minha Casa, Minha Vida.
PERIFERIA
Ao abrir mão do controle da questão do uso da terra, esses países mais alinhados às políticas neoliberais acabam estimulando um processo de especulação imobiliária e de criação de periferias distantes da infraestrutura urbana, disse a pesquisadora. “Aí aparece o condomínio de grande escala, onde exemplo mexicano aí é paradigmático para as construtoras da América Latina inteira: na bibliografia mais recente, fala-se de conjuntos de 15 mil unidades, de 17 mil unidades e em entrevistas me disseram que haviam sido construídos conjuntos de 50 mil unidades, que são cidades novas, afastadas”.
“O modelo mexicano é muito forte nesse sentido”, acrescenta. “São grandes empreendimentos, numa escala de produção enorme, que é a escala que compensa geralmente para as empresas fazerem moradia pra baixa renda. Só que com problemas urbanos muito sérios”.
Beatriz afirma que a política de deixar a decisão sobre moradia popular para os mercados “gera contradições gigantescas, e tende a ter efeitos urbanos bastante complicados”. “Aqui mesmo em Campinas, é só olhar ao redor e ver onde estão os empreendimentos, geralmente em áreas com parca infraestrutura urbana – ou seja, você dá direito a um teto, estrito senso, mas não dá direito à cidade”.
“As pessoas não somem ao final do dia de trabalho”, acrescenta Beatriz. “Elas precisam ir para algum lugar”.
FUNÇÃO SOCIAL
A pesquisadora acredita que a legislação brasileira atual, que contempla a função social da propriedade, já permitiria que o Estado exercesse um controle maior sobre a questão fundiária urbana. “Você pode desapropriar um lugar que não está cumprindo a sua função social, e função social não só no sentido da política social, do atendimento à população carente, função social é se você tem um terreno no meio da cidade que você não constrói nada, só mantém aquilo como reserva de valor”, disse.
“Pode-se usar o mecanismo de IPTU progressivo primeiro, e depois um mecanismo de desapropriação. Então você define as áreas da cidade onde o dono vai ter que dar uma destinação para aquilo, não vai poder segurar indefinidamente como reserva de valor. Há mecanismos legais para fazer isso, com toda a legalidade capitalística do mundo”.
Ela reconhece que a questão, no Brasil, enfrenta resistências culturais – “historicamente, por causa das nossas condições econômicas, a terra virou o que chamo de um refúgio de poupança, e isso em todas as classes”, disse – mas lembra também que esse apego à propriedade legal da terra opera num sistema de “dois pesos e duas medidas”, principalmente no que diz respeito à apropriação indevida de áreas públicas.
“Ninguém vai fazer remoção nas áreas de manancial em São Paulo. Mas quando são os prédios do centro, fechados há 30 anos, esperando o momento em que a região vai ser valorizada, você tem uma polícia, todo um aparato estatal para tirar os ocupadores”.
O censo fundiário urbano feito na Venezuela, lembra ela, mostrou que a grilagem e a apropriação privada do bem público também acontecem no meio urbano. “Caso fosse feito um censo da terra urbana no Brasil, veríamos que tem muita propriedade privada que, em termos de propriedade privada, não é genuína”.
Publicação
Tese: “As políticas habitacionais no subdesenvolvimento: os casos do Brasil, Colômbia, México e Venezuela (1980/2013)”
Autora: Beatriz Mioto
Orientador: Wilson Cano
Unidade: Instituto de Economia (IE)