Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDFCampinas, 14 de dezembro de 2015 a 31 de dezembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 646
Em dueto, a música e a matemática
Pesquisa utiliza modelos matemáticos para analisar as características sonoras da flauta andinaAinda que as pessoas não se deem conta, a matemática está relacionada a uma série de outras áreas, a música entre elas. As escalas musicais podem ser compreendidas, em boa medida, por meio dos números. Ocorre que o vínculo entre a matemática e a música pode se tornar ainda mais estreito. A primeira pode contribuir, por exemplo, para a preservação da herança artística e cultural deixada pela segunda. É isso o que revela a dissertação de mestrado do engenheiro eletricista Aldo André Díaz Salazar, defendida na Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC) da Unicamp. O autor utilizou modelos matemáticos para analisar as características sonoras da quena, uma tradicional flauta andina. O trabalho foi orientado pelo professor Rafael Santos Mendes.
Nascido no Peru, Díaz também é músico. Seu instrumento preferido é o teclado. A opção pela quena como objeto de investigação nasceu da constatação de que existe uma linha de pesquisa, em nível mundial, voltada à análise de instrumentos musicais de origem aborígene. “Há diversos estudos em torno instrumentos de origem asiática e europeia, mas pouca coisa sobre instrumentos andinos. Eu optei por pela quena, por ser uma flauta milenar, de grande valor cultural, que remonta à época da civilização inca. Trata-se de um instrumento que ainda é utilizado pelas culturas andinas, desde o Equador até o Chile”, explica.
Ao longo da pesquisa, o engenheiro eletricista utilizou modelos matemáticos para analisar as características sonoras da flauta andina. O esforço de Díaz foi identificar atributos que caracterizam o instrumento e que o diferenciam de outros. “Por isso, também analisei as características da flauta doce e escaleta, para ter parâmetros de comparação”, acrescenta. Um dos aspectos investigados pelo pesquisador foi o espectro dos sons emitidos por cada um dos instrumentos.
Dentre os atributos identificados, o principal foi o que os especialistas classificam de “ruído espectral”. Trata-se do som produzido naturalmente por instrumentos melódicos como a quena. “É um ruído inerente ao instrumento. No caso da flauta andina, ele está ligado ao sopro. No do violino, está relacionado à fricção do arco com a corda. Em termos mais simples, o sopro imprime um selo específico ao som da quena, que eu procurei identificar e distinguir”, diz.
Em engenharia elétrica, prossegue Díaz, o ruído é frequentemente considerado um sinal indesejado. No caso de uma ligação telefônica, o ruído interfere negativamente na comunicação. Em se tratando de um instrumento musical, no entanto, o ruído é o elemento que lhe confere personalidade própria. “Se manipularmos o som de modo a extrair esse ruído, o ouvido humano será capaz de perceber que aquele instrumento está emitindo um som ‘artificial’”.
Ao comparar a sonoridade dos três instrumentos, Díaz constatou a existência de diferenças claras entre eles, mesmo quando produzem a mesma nota musical. Segundo o engenheiro eletricista, a quantidade de harmônicos, que conferem características ao som, varia de um instrumento para outro. “Cada harmônico está associado à frequência que o instrumento produz numa nota. Se eu tocar a nota lá na flauta e a mesma nota no violão, os sons gerados apresentarão diferenças de timbre. Esse timbre, por sua vez, está relacionado a inúmeras características, uma delas o ruído espectral”, pormenoriza.
Na avaliação que fez dos três instrumentos, Díaz identificou que as quantidades de harmônicos da flauta doce se aproximam mais da quena. “A flauta doce tem entre 12 a 19 harmônicos, enquanto que a quena tem de 7 a 12. Já a escaleta produz uma quantidade bem maior de harmônicos, entre 20 e 48, visto que o seu som é gerado a partir do acionamento de uma palheta. Esse mecanismo interfere na quantidade de harmônicos. Em termos de ruídos, também foi possível constatar que a quena e a flauta doce apresentam maior similitude”, informa.
O uso de modelos matemáticos para a identificação dos atributos dos instrumentos musicais pode contribuir, conforme o engenheiro eletricista, para o desenvolvimento de sonoridades expandidas em relação aos métodos tradicionais de produção sonora. “Em outras palavras, este tipo de estudo pode levar à produção de sons musicalmente interessantes cuja geração seria impossível por meios mecânicos, como através de tubos de ar ou cordas ou, ainda, manipular seus atributos, de maneira a gerar efeitos musicais”, infere.
Outra aplicação possível, acrescenta Díaz, é o uso desse tipo de ferramenta com vistas à preservação da herança musical de uma sociedade, no caso a andina. “Uma possibilidade é gerar um conjunto de padrões que representem as características da quena. Isso, por sua vez, poderia gerar um banco de dados para preservar o som do instrumento. Esse repositório também poderia servir como ferramenta pedagógica para o ensino de música tanto num conservatório quanto na universidade”, ilustra o autor da dissertação.
OSSO DE CONDOR
A quena é um instrumento de sopro tradicional da cultura andina. Escavações arqueológicas encontraram exemplares dessa flauta que datam de 2.500 anos. Ainda hoje, de acordo com Díaz, a quena é tocada em países latinos, notadamente no Peru. “Nos anos 70 e 80, a quena foi o principal instrumento musical de exportação do Peru. Por causa do seu timbre único, ela tem sido utilizada em variados gêneros, da música de concerto ao rock, passando pelo jazz e música pop”, informa. Apesar dessa importância, reconhece o engenheiro eletricista, a quena é mais popular no exterior que no Peru.
De acordo com o pesquisador, as flautas mais antigas normalmente eram fabricadas com ossos de animais, como condor e veado. “Atualmente, são utilizados outros tipos de materiais, como bambu, madeira ou plástico. Obviamente, o tipo de material, a dimensão, o design e até mesmo o padrão dos orifícios tonais podem interferir nas características sonoras do instrumento. A quena nada mais é que um tubo perfurado. A diferença é que ela não tem um canal de insuflação, o popular bico. Tem simplesmente uma embocadura em formato de V ou U. A técnica consiste em soprar de tal maneira que a coluna de ar atinja o fio da embocadura e produza o som”, ensina.
Díaz fez a graduação em Engenharia Elétrica no Peru. Ele conta que decidiu dar continuidade aos estudos na Unicamp a partir das informações recebidas de amigos que já estudavam na Universidade. “Em determinado momento, fiz contato com o professor Rafael Mendes e manifestei meu desejo de desenvolver uma pesquisa com esse tema. Como ele também tinha interesse no assunto, acertei minha vinda para cá. Considero um privilégio estudar numa instituição como a Unicamp, que tem uma excelente infraestrutura de ensino e pesquisa”, avalia o autor da dissertação, que contou com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Atualmente, o pesquisador dá sequência aos estudos no doutorado. Ele continua trabalhando na área de processamento de sinais, mas desta vez a investigação está relacionada a imagens e não mais a som. “A ideia, no futuro, é juntar som e imagem para buscar resultados ainda mais interessantes. Gostaria de convidar outros estudantes para ingressar nesse campo da ciência, que apesar de muito interessante, ainda é pouco explorado”, finaliza.