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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDFCampinas, 14 de dezembro de 2015 a 31 de dezembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 646
Primeiros Passos
A Coleção Biblioteca Infantil Melhoramentos, com um total de 100 exemplares, acaba de completar um século em 2015. Idealizada pelo educador campineiro Arnaldo de Oliveira Barreto (1869-1925), ela foi lançada em 1915, tendo como primeiro livro O Patinho Feio, de Hans C. Andersen, que até 1958 havia vendido 135 mil exemplares. O livro A Menina do Narizinho Arrebitado, primeira obra de Monteiro Lobato, foi lançada apenas em 1920. Quando isso aconteceu, a coleção de Barreto já era muito lida. “Não é justo atribuir só a Monteiro Lobato os louros pelo estabelecimento da literatura infantil brasileira”, conclui Maria das Dores Soares Maziero em tese de doutorado, defendida na Faculdade de Educação (FE).
“A importância de Lobato é que ele foi um criador. Barreto não, mas continuou com uma tradição de Charles Perrault e dos Irmãos Grimm. Fez adaptações e foi criador quando convidou o artista gráfico F. Richter para ilustrar as histórias, quando editou livros em formato reduzido, com histórias contadas em poucas páginas, que despertavam o interesse das crianças. Ele também fez a divulgação das obras, deu visibilidade à coleção e levou-a às escolas e às crianças”, destaca ela.
Segundo a pesquisadora, graduada em Letras pela PUC-Campinas e que em sua tese foi orientada pela professora da FE Norma Sandra de Almeida Ferreira, há muito ainda para se estudar sobre a literatura infantil brasileira, sob o aspecto da leitura. “Uma pena é que muitas outras obras, a exemplo do que ocorreu com essa coleção, se perderam, o que não significa que elas não existiram. Então o meu trabalho mostra, além do valor da coleção, uma possibilidade de pesquisa, tendo em vista a recuperação de 193 livrinhos de diferentes edições, possível graças ao advento dos sebos virtuais.”
O presente estudo abordou a Coleção Biblioteca Infantil Melhoramentos, da Editora Melhoramentos, que em 1915 era Weiszflog Irmãos e que até hoje é a editora que mais publica obras para as crianças no Brasil. Eram livros inovadores na época, por se tratar de volumes pequenos, contrastando com os de tamanho maior, encontrados até então para as crianças. Os volumes, em série, traziam no máximo quatro histórias em cada livro.
Do ponto de vista do conteúdo, Barreto não trouxe inovação, porque a coleção que ele idealizou reunia histórias que as crianças já conheciam: O Patinho Feio, Branca de Neve, Cinderela, mas, quanto ao formato, o livro trouxe uma nova proposta. Era quase um livro de bolso, em um tempo em que esse formato não havia se popularizado.
Maria das Dores diz que o subtítulo de sua tese brinca com a ideia dos livros serem pequenos e de serem para o público infantil: “Histórias de ternura para mãos pequeninas”. “O tamanho sugere que as crianças podem ler sozinhas, ao contrário dos livros maiores, que pressupõem que um adulto leia para elas.”
Uma das sacadas da coleção foram as ilustrações, feitas pelo artista tcheco Franz Richter que, radicado no Brasil, tornou-se Francisco Richter, Franta Richter ou apenas F. Richter. Tais ilustrações eram inéditas, visto que na época não havia no mercado livros tão coloridos, exceto os estrangeiros. O Patinho Feio foi o primeiro livro editado a quatro cores no Brasil, por isso quiçá tenha ficado tanto tempo no imaginário dos leitores.
A linguagem era simples. Barreto procurou esse resultado, pelas experiências que teve com a educação de crianças. Atuou como professor, inspetor de ensino e diretor da Escola Normal Caetano de Campos, na cidade de São Paulo. Em Campinas, dirigiu o Colégio Culto à Ciência, de 1906 a 1911.
“Meu estudo se restringiu à primeira fase (de 1915 até 1925) da coleção, coordenada por Barreto, no esforço de situá-la no panorama da literatura brasileira para a infância e de levantar possíveis contribuições para a formação deste gênero no Brasil”, comenta.
FOCO
Ao pesquisar em seu mestrado mitos gregos na literatura para crianças no Brasil, a doutoranda teve a curiosidade de saber qual havia sido a primeira publicação para crianças nesse universo. Encontrou O Velocino de Ouro, no Centro Mário Covas, em São Paulo, que conta a história de Jasão em busca da pele de ouro de um carneiro, que tinha propriedades mágicas.
Tempos depois, em buscas feitas na Estante Virtual, encontrou uma primeira edição de O Velocino de Ouro, de 1915, juntamente com outros três títulos da coleção. Foi o que faltava para instigá-la a querer saber mais. Verificou haver uma lista de títulos publicados.
Começou a colecionar a série. Achou curioso que, ao pesquisar os livros que falavam da literatura infantil no país, não achava informações pormenorizadas sobre a coleção que tinha despertado sua atenção. Só havia descrição de que ela tinha sido lançada em 1915 e terminado em 1958, e que seu idealizador era Barreto.
Apenas uma das obras pesquisadas se referia nominalmente aos 28 títulos da primeira fase. Contudo, não apareciam minúcias sobre o conteúdo das histórias. Foram quatro anos para a pesquisadora reunir a coleção completa, obtida em sebos. Nesta saga, encontrou várias edições dos mesmos títulos.
AVALIAÇÃO
Maria das Dores avaliou sobretudo a materialidade dos livros (o projeto gráfico). Observou a capa, as ilustrações, o modo como se trabalhava com a linguagem e com o conteúdo: o tipo de histórias que o editor escolheu e se elas já tinham aparecido em outras obras.
O tipo de história escolhido por Barreto foram os contos de fada, adaptados de Andersen, dos Irmãos Grimm e de Perrault. Ele também adaptou livros mais extensos, como Memórias de um Burro, da Condessa de Ségur, com 316 páginas, condensadas em apenas 71.
Ela também mapeou as transformações das obras. “Os livros da primeira fase eram de capa dura, bege e com o desenho de uma avozinha contando histórias às crianças, elemento identificador da coleção. Na fase final, a capa era azul e de papelão, com uma ilustração que aparecia no interior da obra.”
Enquanto a primeira fase chamava para uma unidade maior, a oralidade (a avó estava contando histórias para as crianças), a segunda (sob a coordenação de Lourenço Filho, que prosseguiu com a série depois de 1925) chamava para o mundo da leitura. Para saber a que se referia aquela ilustração, a criança teria que ler o livro. As duas fases tinham traços bem distintos.
Lourenço Filho promoveu mudanças na linguagem, encurtou histórias, tirou expressões que traziam medo às crianças, remodelou a coleção. “Mas eu me centrei nos livros da primeira fase, que foram publicados do modo como Barreto tinha planejado”, ressalta. Foi ele o idealizador da coleção, o responsável pela adaptação dos textos, o editor e, como tinha trabalhado em jornais de Campinas (foi até proprietário de O Correio de Campinas, juntamente com Alberto Sarmento e Basílio de Magalhães), fez também a revisão e as correções das provas tipográficas.
Os dois editores se destacaram muito no cenário da literatura nacional. Porém, do ponto de vista da educação, Lourenço Filho foi o mais renomado, afirma. Integrou a Escola Nova e não se sobressaiu só no campo das obras infantis. Publicou uma biblioteca pedagógica e tinha influência muito forte na Editora Melhoramentos.
Já Barreto vinha da geração dos pioneiros ligados à Escola Normal Caetano de Campos. Teve importante atuação na fundação dos grupos escolares e na reforma do ensino primário do Estado de São Paulo, entretanto morreu cedo, aos 46 anos.
GARIMPO
A coleção deixou de ser publicada em 1958. “Reunir todos os exemplares foi uma tarefa difícil. Acredito que não exista um conjunto de tantas edições da coleção nem em bibliotecas públicas como a Monteiro Lobato, em São Paulo, onde há muitas obras infantis antigas. Meu faro de pesquisadora e a persistência de procurar diariamente os títulos nos sebos virtuais ajudaram a alcançar este resultado”, relata.
A doutoranda fez contato com livreiros de vários Estados brasileiros e recebeu muitos livros do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. “Os de capa azul, que ainda faltavam, consegui em um sebo de Belo Horizonte, que os havia comprado de uma professora aposentada. Já os de capa dura são os mais raros e difíceis de encontrar, tanto que não tenho todos os títulos publicados na primeira fase apenas com esse tipo de capa.”
Ao abordar o valor desses livros, Maria das Dores sublinha que a Biblioteca Infantil Melhoramentos foi muito relevante para a formação da literatura infantil brasileira. Ela considera que o fato de os livros serem seriados acabou motivando o gosto pela leitura. Como na contracapa já vinham os números publicados, a criança fazia a coleção sabendo quais seriam os próximos títulos.
Muitos desses livros comprados dos sebos traziam dedicatórias que, avaliadas por Maria das Dores, puderam indicar o público dessas obras. Eram crianças com idade entre seis e 13 anos. Elas indicavam que os livros eram presenteados principalmente por mães, pais, professoras. Em vários deles, a pesquisadora encontrou dedicatórias das professoras a alunos, dizendo que o presente era pelo desempenho, dedicação e assiduidade.
Maria das Dores deduziu que esses livros circularam tanto na família quanto na escola. Viu, inclusive, dedicatórias bastante sugestivas, como uma em que quem deu o livrinho de presente assinava como Papai Noel, sendo a obra endereçada para um amiguinho.
Ela revela que, por uma coincidência, obteve vários livros que pertenceram a um mesmo leitor. Recorda o caso de uma garota, da década de 1930, que escrevia com letra floreada, na página de rosto: “Este livro pertence à menina Olga Badini”.
Tinha também um garoto, o Caíto, da década de 1940. A madrinha deu a ele alguns livros da Biblioteca Infantil Melhoramentos. Na dedicatória, algumas páginas estavam coladas. “Aí, como era com caneta tinteiro, fui até o espelho e consegui ler. Recomendava que Caíto lesse sempre, pois a leitura enobrecia. Acho que ele não queria ler aquilo e colou. Ficou só com uma parte da dedicatória: ‘ao Caíto, no seu aniversário, um presente da madrinha’”.
Para Maria das Dores, as dedicatórias foram muito esclarecedoras. Alguns livros pertenceram a bibliotecas, vindo acompanhados por carimbos e regulamentos. Outros, foram de crianças que os ganharam em ocasiões especiais. Muitas colavam nas páginas iniciais cromos, decalques e registravam o nome com seu próprio carimbo. “Esses livros fizeram um percurso que mostrou que eles circularam por vários espaços e foram muito destacados na época. Mas, por serem livros menores, e não tão caros, eles talvez não tenham tido a merecida valorização”, reflete.
Publicação
Tese: “Arnaldo Barreto e a Biblioteca Infantil Melhoramentos (1915-1925): histórias de ternura para mãos pequeninas”
Autora: Maria das Dores Soares Maziero
Orientadora: Norma Sandra de Almeida
Unidade: Faculdade de Educação (FE)